São Jerônimo no estúdio: a solidão existencial

Três faces da solidão nas Meisterstiche de Albrecht Dürer — Parte II

Yuri Pires
8 min readJun 3, 2020
São Jerônimo em sua cela (1511), de Albrecht Dürer.

Se o ambiente de O cavaleiro, a Morte e o Diabo é sombrio, o de São Jerônimo no estúdio é luminoso. Na segunda gravura das Meisterstiche analisada nesse artigo também há o ideal de retirar-se em si (Kempis: 2014), porém esse retiro não parece tormentoso como os ermos por que erra o cavaleiro na gravura anterior. É também diferente de uma gravura de São Jerônimo feita por Dürer dois anos antes (reproduzida ao lado).

Saber quem foi Jerônimo (347–420) pode elucidar algo.

Os estudiosos Dürer e Jerônimo

Jerônimo de Estridão é um dos santos da longa tradição dos eremitas, iniciada por Paulo de Tebas (228–330), cuja biografia escreveu. No entanto, inicialmente Jerônimo não se retirou para o deserto, como Paulo e tantos outros (sobre os padres do deserto, o livro homônimo de Jacques Lacarrière é ótima fonte), mas para uma das ilhas do mar Adriático. Ou seja, isolado, mas não tanto.

O seu eremitério tinha outro propósito para além da contemplação espiritual: o estudo da retórica, da gramática latina e do grego. Posteriormente, viverá ainda em Augusta dos Tréveros (atual Tréveris, na Alemanha) e na Aquileia (na Itália). Nesses lugares e em Jerusalém, para onde seguiu em 388 com o objetivo de traduzir o antigo testamento bíblico diretamente do hebraico, se destacou como polemista e teólogo, sendo um dos participantes do sinôdo de Roma (382) que tratou da disputa pelo patriarcado de Antióquia. Sua morte ocorre entre 398 e 420 (as datas são conflitantes), numa cela eremítica nos arredores de Belém.

Por isso, Jerônimo é quase sempre retratado com livros e objetos ligados ao estudo, seja em um estúdio, como na gravura de Dürer, ou não. Ele figura entre os titulados doutores da Igreja, um grupo de santos cujos feitos intelectuais são memoráveis para o Vaticano, sendo um dos quatro que dão início a esse título, juntamente com São Gregório, Santo Ambrósio e Santo Agostinho.

Os interesses de Dürer também eram variados e os seus últimos anos de vida foram dedicados quase exclusivamente ao estudo e à escrita de tratados sobre medidas, proporções e perspectiva; também estudou matemática e geometria, além da arquitetura de fortificações. Essa variedade de interesses é um traço comum de um certo espírito humanista da época, de que é exemplo máximo Leonardo da Vinci (1452–1519).

Não é à toa, portanto, que Panofsky se refere a São Jerônimo como o santo favorito de Albrecht Dürer.

São Jerônimo no estúdio (1514)

Albrecht Dürer realizou diversas representações de São Jerônimo ao longo da vida. Em seu estúdio, em uma caverna, em oração. Foi a ilustração da capa de uma edição de As cartas de São Jerônimo, em 1492, que lhe deu fama e prestígio em Basileia, então ascendente polo comercial e editorial. Contudo, São Jerônimo no estúdio (1514) está entre as Meisterstiche, tendo lugar especial em sua vasta obra.

Nela, vemos um estúdio simples e funcional, limpo e agradável, iluminado pelo Sol. Instrumentos e objetos vários estão organizados, não há qualquer desordem. Até o crânio (símbolo da fugacidade da vida já analisado na gravura anterior) parece amigável, lembra-nos Panofsky.

É também o historiador alemão quem irá perceber que a perspectiva da gravura é singular. Se traduzida à escala natural, o estúdio seria baixo demais para um homem adulto de proporções regulares. Além disso, o ponto de fuga muito próximo à margem direita e o baixo horizonte (ao nível dos olhos do santo), levam o espectador ao limiar do espaço, ensejando intimidade.

Detelhe de São Jerônimo no estúdio

Além do tinteiro e da estante usada para apoiar o papel em que escreve, o único objeto em cima da mesa de Jerônimo é uma escultura de Jesus na cruz, como se o Cristo vigiasse o trabalho santo.

Ao lado de seu galero (o chapéu cardinalício que indica a sua posição eclesiástica) pendurado na parede às suas costas está uma ampulheta (símbolo que também aparece nas outras Meisterstiche). A recorrência não é fortuita. Sozinho, como o cavaleiro na gravura anterior, embora santo, ainda o acompanha a condição humana. Malgrado o crânio e a ampulheta não soem ameaçadores como em O cavaleiro, a Morte e o Diabo, são elementos simbólicos fortes demais para não aludirem ao passar do tempo.

Tesoura e outros objetos estão atados à parede em comunhão com a simetria que reina no ambiente. Jerônimo está absorto em seus pensamentos contemplativos e nada pode abalá-lo. O ideal medieval de vita contemplativa encontra no eremita que se retira em si o seu ponto culminante. Porém, esse retiro em si relaciona-se com o mundo, em consequência de seus estudos destinarem-se à publicação e à difusão da fé cristã.

Detalhe de São Jerônimo no estúdio.

São Jerônimo e o leão

Leonardo da Vinci, Alessandro Gherardini, Lorenzo Sabatini, Peter Paul Rubens são apenas alguns dos artistas que representaram pictograficamente São Jerônimo. Em quase todas as representações há um leão. Isso se deve a uma passagem da vida do santo, quando ele já estava em Jerusalém, muito comentada e narrada por Jacopo de Varazze, em seu Legenda áurea — vida de santos.

“Certa vez, ao cair do dia, quando Jerônimo estava sentado com seus irmãos para escutar a leitura sagrada, de repente entrou no mosteiro um leão que mancava. Vendo-o, todos os irmãos fugiram, mas Jerônimo foi ao seu encontro como se ele fosse um hóspede.” (Varazze: 2003, pp. 828).

O leão tinha espinhos na pata. Jerônimo os tira dali, limpa as feridas do animal e o cura. A partir de então, um e outro formam amizade. Desenrola-se uma história em que os padres desconfiam do leão por sua natureza predadora, mas Jerônimo mantém a confiança no animal e na providência divina, motivo pelo qual é recompensado ao final com o dobro do que parecera ter perdido.

A história é prova da fé de Jerônimo e de sua confiança em Deus. Na tradição católica, essa lenda termina com a seguinte frase dita pelo santo: “Vejam, meus irmãos, o que Deus tinha em mente quando nos mandou o Seu leão.”

É possível que aqui haja uma outra significação, afinal, em Apocalipse, João diz: “E eu chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler, nem de olhar para ele. E disse-me um dos anciãos: Não chores; eis aqui o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, que venceu, para abrir o livro e desatar os seus sete selos.” (Apocalipse 5:4–5)

Deus (e o Seu leão) pode assustar em seu poder, porém tudo proverá àqueles que Nele creem, esta é a lição.

São Gerásimo e o leão (séc. XVI), autoria desconhecida

No entanto, alguns estudiosos apontam que essa lenda teria, originalmente, como protagonista São Gerásimo e teria sido atribuída erroneamente a São Jerônimo pela proximidade fonética de seus nomes. Para efeitos de análise da gravura de Dürer isso pouco importa. Porém, a pintura anônima que representa São Gerásimo retirando espinhos da pata de um leão dá margem à discussão.

Importante é que o leão da gravura de Dürer guarda a contemplação do santo, não dorme como o cão ao seu lado, vigia com as patas tensionadas. Se o tomamos pelo Messias capaz de abrir o livro e desatar os sete selos de que nos fala João em Apocalipse, temos então dois leões vigilantes na gravura.

A solidão existencial de São Jerônimo

Jerônimo de Estridão é, quase sempre, representado sozinho em companhia de livros e do leão. No caso analisado, a sua posição no fundo da gravura revela um distanciamento do ponto de vista do espectador vigiado pelo leão. Se a perspectiva torna o ambiente íntimo, o posicionamento do santo ao fundo e do leão à entrada simbolizam que a distância existe.

Essa oposição proximidade-distância é significativa do eremitério de Jerônimo, que por várias vezes se retira e retorna à vida em sociedade. Mesmo a cela eremítica em que morre era constantemente visitada por discípulos, discípulas e peregrinos, dentre os quais Paula de Roma e sua filha Eustóquia (ambas canonizadas).

Detalhe de São Jerônimo no estúdio

Tal é a solidão existencial de São Jerônimo: a vita contemplativa se encontra com o lema da Ordem Beneditina Ora et labora e com a vigilância aos princípios da fé que mobilizou Gregório, o grande, Ambrósio e Agostinho de Hipona à vida pública, a vita activa. Toda a sua vida será construída nessa divisão, e disso são prova suas inúmeras cartas a amigos e amigas, rogando visitas em seu eremitério.

Afinal, não é Jerônimo que, em uma carta A Teodósio e aos outros anacoretas diz “Como eu gostaria agora de estar entre vós! Mas… não tenho a força de romper com os encantos da vida social”, já após o seu primeiro eremitério, na ilha do Adriático? Não é também o mesmo Jerônimo, anos mais tarde, que noutra carta, de volta ao eremitério, diz “Ó, deserto, sempre ornado com as flores do Cristo! Ó, solidão, na qual nascem as pedras com que se constrói, no Apocalipse, a cidade do grande Rei! Ó, retiro admitido na íntima familiaridade de Deus!” (as citações de suas cartas estão em Minois: 2019, pp. 67, 68 e 69).

Ao comentar a sua biografia, Georges Minois, no seu História da solidão e dos solitários, afirma que “Jerônimo, intelectual de temperamento irascível, orgulhoso e intolerante, não tem absolutamente a vocação de um eremita.” (Minois: 2019, pp. 67), denunciando, portanto, a falsidade de seus retratos solitários. Contudo, a gravura de Dürer, a meu ver, congraça os dois Jerônimos, o solitário e o polemista, o cardeal e o eremita.

Em São Jerônimo no estúdio, de Albrecht Dürer, a profusão de objetos de estudo, mundanos, e os símbolos religiosos, o galero cardinalício e a ampulheta, o leão e a tesoura, indicam essa cisão do homem Jerônimo de Estridão.

(Esta é a segunda parte de um texto único sobre as obras-mestras de gravura de Albrecht Dürer. Nas próximas semanas, publicarei Melancolia I: solidão intelectual. Se o tema lhe interessa, siga o perfil aqui no Medium e no Instagram).

Bibliografia:

MINOIS, Georges. História da solidão e dos solitários. 1ª edição. São Paulo (SP): Editora UNESP, 2019.

PANOFSKY, Erwin. The life and art of Albrecht Dürer. 1ª edição. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1955.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda áurea: vidas de santos. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. 1ª edição. São Paulo (SP): WMF Martins Fontes, 2011.

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