Cresci sem um pai e talvez tenha sido melhor assim

Zy Moccero
4 min readFeb 10, 2016

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É uma situação bem comum no Brasil. Fora dele, também. Em alguns lugares mais, outros menos, mas crescer sem ter um pai presente — frequentemente sequer sabendo quem ele é — não é uma exceção à regra.

Eu fui a segunda de três crianças, cada um de um pai diferente. E nenhum dos três nos quis.

Havia algo de errado comigo e com meus irmãos? Por muitos momentos pensamos que sim. Afinal de contas, por que nossos pais teriam nos deixado se não tivéssemos feito algo horrível, imperdoável? Éramos crianças e não entendíamos a crueldade humana.

Nossa mãe fez tudo que podia pra nos garantir uma vida boa, sem que nada nos faltasse e cheia de alegrias. Mas ela também era nova, e se o abandono pesava em nossos ombros, nos dela pesava três vezes mais. Frequentemente éramos levados a tiracolo para carnavais, festas e saídas, por falta de alguém que nos cuidasse. Eu ia ao trabalho junto com ela, às sete da manhã, onde a mesma precisava se desdobrar para cumprir suas tarefas e evitar que me sentisse entediada e incomodasse os outros colegas. Eu adorava ficar lá com ela. Passava o dia girando nas cadeiras de rodinhas, admirando as máquinas de escrever e pintando revistinhas. Era divertidíssimo. Eu poderia fazer isso o dia todo e não me cansaria.

Difícil, mesmo, foi quando começamos a frequentar a escola.

“Entrega esse bilhetinho pro seu pai.”

“Pede pro seu pai.”

“Seu pai sabe disso?”

“Vou ligar pro seu pai!”

“Eu não tenho pai, só mãe” — respondia sempre.

Os pais que apareciam diariamente para pegar seus filhos, os que levavam o lanchinho dos seus pequenos de tarde, os que compareciam às festas e teatrinhos… Eles não tinham culpa alguma. É claro que ninguém tentava me magoar. Mas a inveja doía tanto. Quando minha mãe se atrasava para me buscar, meu coração saltava do peito toda vez que um homem passava em frente à escola. “Será que esse é meu pai? Será que ele decidiu me encontrar hoje?” — pensava.

Nunca era ele.

E eu chorava. Brigava com a minha mãe. Pensava que, de alguma forma, ela tinha culpa. Ameaçava fugir de casa. Chamava ela de nomes terríveis. Que tipo de mulher tem três filhos de três pais diferentes e não consegue prender unzinho sequer? Porque ela não soube escolher um homem decente para ter seus filhos? Porque eu tinha que existir?

Esses pensamentos me passavam pela cabeça várias vezes pela semana, por anos a fio. Nenhum psicólogo conseguiu tirar de mim a culpa da existência nos anos que se passaram.

Para minha alegria, pouco antes de completar dez anos de idade, comecei a receber cartas do meu pai. Ele me contava sobre sua vida e perguntava sobre a minha. Com a escrita atrapalhada de uma criança, em caneta glitter colorida e enfeitando as folhas com adesivos, eu dizia o que queria ser quando crescesse, falava dos meus gostos e de como amava ele, mesmo sem nunca o ter conhecido.

Eu até consegui encontrá-lo algumas vezes, mas não foi nada como eu imaginava que seria.

Basta dizer que, depois de algumas horas de interação, fico feliz de não ter tido um pai na maior parte da minha vida até então. Infelizmente, saber disso não tornou a situação mais fácil.

Até hoje, meu pai se recusa a ajudar financeiramente a mim ou a minha mãe, ou compensar de alguma maneira por todos os anos que esteve completamente ausente. E toda vez que tento dar uma chance, criar alguma amizade, tudo leva à dinheiro.

“Oi, pai, como anda a vida?”

“Difícil, estou com pouco dinheiro.”

“Como está o resto da família?”

“Trabalhando muito, o dinheiro está escasso.”

“Sabia que eu entrei na faculdade?”

“Mas tem que começar a fazer dinheiro, hein?”

E eu prefiro não pensar ou falar sobre o que ele me disse a respeito da minha aparência física e da minha fé religiosa. Ou na forma como ele insultou minha mãe das mais terríveis formas quando ela exigiu alguma atitude paterna dele.

Agora eu sei muito bem quem é meu pai: Um tremendo idiota. Sei que a minha mãe não foi a responsável por isso. Ele foi. Sei que nem eu, nem meus irmãos tivemos culpa alguma disso. Nossos genitores masculinos tiveram.

Imagino como teria sido minha vida se tivesse ele por perto e chego a conclusão de que foi melhor desse jeito, e que não preciso de uma pessoa tão mesquinha tendo contato comigo. Tive uma mãe que, apesar de seus defeitos, fez muito mais por mim e meus irmãos do que muitos pais, mesmo presentes, costumam fazer. Eu entendo isso, e entendo ela.

Acima de tudo, eu entendo que assim como eu perdi a chance de ter um pai, meu pai perdeu a chance de ter uma filha, e que talvez a perda dele tenha sido a maior das duas. Afinal, a minha perda me impediu de ter contato com uma pessoa egoísta e fria, enquanto a escolha dele o privou de conviver com uma criança sonhadora, carinhosa e que faria de tudo para fazê-lo sorrir, assim como o fez com sua mãe.

A questão é que, bem lá no fundo, isso não muda nada. Eu continuo abrindo meu e-mail diariamente esperando alguma mensagem carinhosa. Eu continuo pensando “o que meu pai acharia disso?” quando faço algo. Eu continuo esperando alguma aprovação, algum orgulho. Mas nada nunca chega.

E, sinceramente, talvez seja melhor assim.

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Zy Moccero

Faço parte de todos os mundos e de toda história. Não preciso de um rosto agora, o que importa é que sou capaz de criar o seu refúgio.