Marília e o Sentido da Vida

Uma meditação sobre a fragilidade humana

André Camargo
Revista Tudo é Sagrado
7 min readNov 22, 2021

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Vibra com o infinito a voz do coração. Cremos que o universo possui um coração humano, uma vocação para o amor, uma preferência pela felicidade e pela liberdade — tal como nós. Assim, anunciar que a vida tem sentido é proclamar que o universo é nosso irmão. E é esta realidade, âncora de sentimentos, que recebe o nome de Deus.

Rubem Alves

Decolando

É uma sexta-feira comum, de sol entre nuvens, no aeroporto de Goiânia. Passa das duas da tarde do dia 2 de novembro de 2021 quando Marília embarca em um táxi aéreo para um final de semana de shows em Minas Gerais.

Com óculos de sol de armação redonda e o cabelo liso preso em um rabo de cavalo, a cantora de 26 anos caminha em silêncio na direção do avião. Puxa com a mão direita uma mala vermelha de rodinhas enquanto na outra mão carrega o estojo preto com seu violão.

Usa um conjunto de saia, top e blusinha aberta de tecido leve, todo quadriculado como um tabuleiro de xadrez, com as extremidades da gola e das mangas, porém, em tons fortes de amarelo, vermelho e azul.

Além do piloto do bimotor, Geraldo, e do copiloto Tarcísio, também embarcam seu produtor, Henrique, e o tio Abiceli, que trabalha como seu assessor.

Marília senta-se à janela onde se lê, em letras vermelhas, “Saída de Emergência”.

Em função da pandemia, a cantora ficou cerca de cinco meses sem fazer apresentações pagas. Ao invés de demitir funcionários, preferiu vender seu jato particular, a fim de arcar com os salários de toda a equipe.

Sem jato, precisou voltar a usar o táxi-aéreo. Daquele avião em que voaria para Minas na sexta-feira, porém, não gostava: achava instável demais.

Em perspectiva

Era um grupo de prática de conversas empáticas, quinta-feira à noite. Uma das participantes conta, entre o humor e o pesar, que tinha acabado de “romper com o peguete”. Amaldiçoa o Tinder.

E passa a palavra.

A voz seguinte revela que está de luto. Tinha perdido uma prima muito jovem, cheia de vida, de força e de sonhos, para o câncer.

Silêncio no grupo.

E, então, volta a primeira voz, em tom meditativo:

“É incrível como diante da morte tudo fica pequeno…”

Diante da morte, tudo fica pequeno.

Nas Alturas

Apesar dos contratempos, a jovem goiana estava nas alturas. Talento precoce de uma cidade pequena do interior do estado, começou a compor profissionalmente, para outros intérpretes, aos 16 anos.

Aos 20, com sua voz possante e jeito carismático, estourava ela própria o sucesso Infiel, que logo entraria para o ranking das mais tocadas do país.

Chamada de “maravilha” por Caetano Veloso e de “menina genial, brilhante” por Gal Costa, foi a artista mais ouvida do Brasil nos anos de 2019 e 2020. Em meio à pandemia, sua live no YouTube quebrou recordes e se tornou a maior da história, com mais de 3,2 milhões de acessos simultâneos.

Durante a live, Marília arrecadou 225 toneladas de alimentos, encaminhadas a milhares de beneficiários do programa Mesa Brasil, do Sesc.

No Instagram, a conta de Marília conta com quase 39 milhões de seguidores no momento em que ela posta uma foto sua segurando uma maçã perto da boca, com a cabeça inclinada na direção da janela ensolarada e os olhos perdidos no horizonte.

Em busca de sentido

Rubem Alves notabilizou-se pelo trabalho instigante e poético no campo da educação.

Você sabia que, além de escritor e pedagogo, o saudoso poeta também foi psicanalista, teólogo, pastor presbiteriano e um dos fundadores da Teologia da Libertação?

Foi a partir dessa condição de trânsito, acredito, que publicou em 1981, na clássica Coleção Primeiros Passos, da Brasiliense, a primeira edição de um pequeno livro intitulado “O que é Religião”.

No último capítulo, ele sugere que a religião surge para dar conta das perguntas do ser humano a respeito do sentido da vida. E se indaga: Como afirmar o sentido da vida diante da morte?

“Como afirmar o sentido da vida perante o absurdo da existência representado de maneira exemplar pela morte que reduz a nada tudo o que o amor construiu e esperou?”

Sem Chão

A viagem era bem curta.

Por volta de 15h30 daquela sexta-feira, porém, cerca de uma hora depois da decolagem, as equipes de salvamento são acionadas.

O jatinho em que a cantora e compositora viajava se choca com um cabo da rede de energia, a dois minutos da pista de pouso, e despenca sobre as rochas de uma cachoeira.

Não há sobreviventes.

Só o silêncio, entrecortado pelas falas da equipe de resgate em meio ao cheiro de combustível.

Marília não verá crescer o filho Léo, que ainda tem menos de 2 anos de idade. Não quebrará novos recordes de audiência nem sofrerá mais por desamor. A voz potente, inconfundível, silenciada. Os sonhos, extintos.

Jovem, cheia de força e de esperança. Com a vida inteira pela frente.

Como se dá sentido a isso? Como conciliar nossos sonhos e nossa esperança de que vai ficar tudo bem com as tragédias que nos abatem uma atrás da outra — a maior parte delas, ao contrário da morte de Marília, longe dos holofotes?

Como se vive assim no escuro, sempre a um passo de despencar no vazio?

Impactado pela tragédia, leio no Instagram do professor Leandro Karnal algo que ressoa fundo:

“Falei com Marília uma única vez: carismática, mulher forte e um pouco cansada da rotina intensa. A sofrência, agora, é nossa. Passei o dia pensando não na falta que eu faria, todavia na falta que a vida me faria.”

Que falta (incomensurável) a vida me faria?

A gente não se conforma

Na noite de quinta-feira, 11 de novembro, enquanto eu estava no grupo de prática de conversas empáticas cujo relato abre este texto, familiares e amigos próximos de Marília Mendonça participavam de um culto religioso em sua homenagem.

Ruth, a mãe da cantora, declara:

“Gente, é grande a perda, é dor demais. Perdi meu irmão, perdi minha filha e um produtor que era quase um filho, mas Deus tem me fortalecido. (…) Quero agradecer e louvar a Deus pelos 26 anos que Deus deixou ela comigo. Pelo legado que ela deixou aqui.”

Vêm à mente Paulo Gustavo, Ayrton Senna, os Mamonas Assassinas. As vítimas da pandemia. As vítimas da violência.

De uma fala antiga do professor Mário Sérgio Cortella, lembro deste ensinamento: “diante da morte, nós não nos conformamos; nós nos confortamos”. Foi essa ideia que reencontrei tão lindamente expressa na tira de Laerte:

O Fim

Rubem Alves nasceu em Minas Gerais, mesma terra onde caiu o jato de Marília Mendonça.

Ao contrário de Marília, porém, que partiu com um estrondo, o mineiro se foi mansamente.

Já estava com 80 anos, havia tempos pressentia o fim. Lamentava, mas não temia:

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mario Quintana: “Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver.”

Carlos Brandão é professor livre-docente da Unicamp e educador popular.

São de sua autoria os volumes sobre Educação e sobre o Método Paulo Freire que compõem a mesma Coleção Primeiros Passos.

Também era grande amigo de Rubem Alves.

Carlos conta a história de uma conversa que teve com o amigo poucos anos antes de sua morte:

Um dia estávamos só nos dois, creio que em algum canto de Pocinhos do Rio Verde. Estávamos sentados em um banco rústico de madeira e tínhamos um chão de terra sob nossos pés.

De repente, no meio de uma fala solta e mineira, lembro-me de haver perguntado de uma vez a ele:

“Rubem, eu não quero [saber] se você crê ainda ou não em Deus. Quero saber de uma coisa, e quero uma resposta sem rodeios. Rubem, pra onde é que você vai quando morrer?”.

Ele me olhou e fez daqueles silêncios tão dele, quando o que ia dizer em seguida era algo grave, solene ou muito importante. E ele desenhou no ar com a mão uma curva e apontou com o dedo indicador para a terra aos nossos pés. E respondeu:

“Eu vou para o mesmo lugar de onde eu vim há milhões de anos!”.

E nós dois calamos por um longo momento. E quando retomamos a conversa ele me explicou que “aquele lugar” não era bem o chão material da terra. Era o Todo de Tudo. Era o Universo e tudo o mais. Era o lugar da origem de todas as origens. E eu me lembro de haver dito: “eu acho que eu também vou pra lá”.

Depois, conforme a hora se aproxima, o poeta se despede em uma carta aos filhos em que fala de amor, beleza e alegria:

“Tenho um profundo amor pela mãe de vocês. Por causa dela vocês existem. Tivemos muitos momentos felizes. Ela foi uma companheira muito fiel nas horas de aflição.

A vida está cheia de possibilidades de beleza. É preciso bebê-las até o fim sem nelas misturar o nosso fel.

Esforcem-se por serem felizes. Fica a minha alegria por ter tido vocês.

PAI.”

Em julho de 2014, aos 80 anos, Rubem Alves foi internado em Campinas para tratar uma pneumonia. Pouco mais de uma semana depois, os órgãos começaram a parar e ele partiu.

A pedido, seu corpo foi cremado e as cinzas enterradas sob um ipê amarelo.

André Camargo é autor do livro “O Poodle de Schopenhauer” e do artigo mais lido do Linkedin em 2017.

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