Afinal, O Que Acontece Quando a Gente Morre?

Relatos que me deram arrepios mas que estão em sintonia com o que eu mesmo tenho aprendido a respeito do fim

André Camargo
Revista Tudo é Sagrado
10 min readJul 26, 2021

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imagem: PublicCo / Pixabay

Já fui mais cético e racional. Não que eu tenha deixado de ser.

Na condição de alguém que atuou como professor universitário, de graduação e pós, dependo de evidências — ou pelo menos de um raciocínio bem encadeado logicamente, a partir de premissas válidas e com uma conclusão consistente — para botar fé.

Por outro lado, acredito que a gente também precisa de evidências sólidas para refutar uma ideia, ao invés de simplesmente rejeitar qualquer coisa que contrarie o que a maioria dá por certo. Caso contrário, estaríamos até hoje achando que a Terra é plana.

[Ok, não foi um bom exemplo — mas espero que você tenha captado a mensagem].

De vez em quando dou de cara com algo que sacode o castelo de cartas das minhas certezas. Foi esse o caso lá pelos idos de 2005, quando primeiro entrei em contato com os cada vez mais numerosos relatos de experiências de quase morte (EQM).

Percebi, ao longo desses anos, que o tema das EQM mexe com as pessoas. E também que elas se distribuem basicamente entre duas posições.

  1. Quem tende a não admitir a possibilidade de vida após a morte nem como hipótese. Agarrados ao paradigma materialista, colocam todos os relatos (seja de pacientes, seja de profissionais) na mesma bacia. Aí jogam tudo fora, rotulando de ingenuidade ou picaretagem, com frequência sem se darem o trabalho de examiná-los. Minha opinião: parece medo da turbulência emocional que significaria se permitir, ao menos por um instante, acreditar. (Paradoxalmente, estou convencido de que algumas dessas pessoas são as que, no fundo, mais sentem um desejo angustiado de crer — daí a intensidade da reação contrária.)
  2. Quem tende a se atirar à ideia de vida após a morte como a um salva-vidas em alto mar. Não precisam nem ver para crer: já têm certeza de antemão. Talvez por um anseio desesperado de que nem ela nem seus entes queridos estejam, afinal, condenados ao abismo do não-ser. Minha opinião? Seja por anseio ou por medo, esse tipo de certeza a priori constitui terreno fértil para o autoengano. (Paradoxalmente, estou convencido de que algumas dessas pessoas são as que estão mais inseguras de sua fé — daí a intensidade da afirmação.)

A rejeição precoce da experiência me lembra a história dos sacerdotes católicos que se recusaram a mirar o céu através do telescópio de Galileu. Não queriam nem olhar (obviamente com medo do que pudessem ver).

Imagine que a Igreja Católica levou 350 anos para, só em 1992, reconhecer formalmente que o astrônomo italiano tinha razão ao dizer que a Terra girava em torno do Sol.

No final, acredito que as duas posturas se encontram: tanto a do cético escorado no status quo, quanto a do crente e seu wishful thinking — ambos se recusam a ‘olhar pelo telescópio’.

Ironicamente, ambas as posturas revelam que, a despeito da rigidez, pelo menos em algum lugar de seu ser, a pessoa sabe que pode estar errada. As pequenas rachaduras nas grandes muralhas da certeza…

Mais rara do que ambas as atitudes — e mais sofisticada, seja do ponto de vista intelectual, seja do ponto de vista emocional — é o voto de, na ausência de evidências contundentes, sustentar a incerteza.

Renunciar à cômoda posição de autoridade (científica ou espiritual) e aceitar que, até o momento, com os elementos de que dispomos, não podemos afirmar.

Nem negar.

É desse espaço de acolhimento da incerteza, inclusive, que nasce a intuição criativa — fundamento da inovação autêntica e potente não só nas ciências, mas em diferentes campos da ação humana.

Quando encontro alguém que sustenta essa posição em público, suspiro aliviado. Meu lado cientista e meu lado crente secretamente se abraçam.

Estive à cabeceira de várias pessoas que estavam se despedindo deste mundo. Todas elas estendiam as mãos na direção do espaço diante delas, como se estivessem tentando tocar alguma coisa no ar. Alguém tem alguma ideia do que isso significa?

Eis que me vi diante da pergunta acima em uma rede social.

A pergunta teve centenas de respostas e comentários. De todos, o depoimento pessoal de uma enfermeira de cuidados paliativos, profissional que acompanha os pacientes em seus últimos dias, foi o que calou mais chamou minha atenção.

Ela começa comentando que um dos itens da ficha de acompanhamento de pacientes da sua equipe era “Tentando pegar alguma coisa no ar”. Ou seja, de tão frequente, era considerado um marcador para identificar em que etapa do processo o paciente estava.

De cara me pego de queixo caído, perguntando-me por que nunca tinha ouvido algo assim antes.

Você já?

Desconfio que esse tipo controverso de informação, que concentra o poder de arranhar o paradigma dominante, deve se manter informalmente confidencial, como uma criança que os pais trancam no quarto para não incomodar as visitas.

A enfermeira Mary Beth Cleverdon prossegue:

Sabíamos que os pacientes estavam avançando além da condição de ligação apenas com a terra, como seres físicos, e que “o véu estava afinando” conforme entravam cada vez mais em contato com o reino espiritual, invisível. Começava quando ficavam “distraíveis” (condição que também constava na ficha — significando que, [apenas] caso falássemos com eles ou os tocássemos, eles respondiam à nossa presença e interagiam conosco). Eu perguntava quem tinha vindo e eles sempre sabiam dizer. Quando perguntava algo na linha de “e isso foi reconfortante pra você?”, não há palavras para descrever a radiância em suas faces e o tom de sagrado em suas vozes ao responderem “Ohhhh… SIMmmm”. Era reconfortante para todos que se importavam com eles saber que nunca estariam sozinhos em sua transição da terra para o Espírito. Conforme progrediam no sentido de estarem livres de seu corpo físico, preso à terra, (às vezes apenas por alguns dias, às vezes ao longo de semanas) se tornavam “não-distraíveis”, isto é, “em coma”. Quando já não podiam falar ou mesmo levantar as mãos, seu olhar fixo “lá no alto”, com absoluta radiância, nos permitia saber que o que quer que estivessem testemunhando do reino espiritual, invisível, devia ser algo além das palavras, magnífico. Eu poderia continuar a falar e falar sobre experiências específicas de que nunca vou me esquecer. Que honra sagrada ter sido convidada a compartilhar essa parte de suas jornadas! PS: era desafiador quando membros da família chamavam essas experiências de “alucinações” e pediam remédios para colocá-los em um estupor que as faria desaparecer. Nós, dos Cuidados Paliativos, sabemos que estamos lá para ajudar a família a compreender o processo muito real de Deixar-se Ir. Felizmente, a família aceitava e lhes oferecia a Presença que lhes permitia Deixarem-se Ir e Tomarem Posse com conforto, paz e alegria. PSS: Nossa Morada não é aqui. É Lá. [tradução minha]

O depoimento que você leu foi acompanhado, na mesma plataforma, por várias outras manifestações de profissionais da área — enfermeiras, médicas, assistentes sociais, conselheiros espirituais.

É isso que acho mais impressionante: assim como no campo das EQM, descubro agora que também no caso de profissionais com pacientes em estado terminal, independentemente das mais variadas histórias e circunstâncias, existem claros padrões que se repetem.

Veja, dentre tantos, este outro depoimento:

A maioria dos meus pacientes conversa com entes queridos falecidos nos dias que antecedem suas mortes. Em 90% das vezes eles falam com suas mães, que com frequência morreram 20 ou 30 anos antes. É tão comum que não me impressiona mais, com exceção de alguns casos que se destacam. Um idoso estava morrendo de câncer no pulmão. Estava emaciado e fraco demais para levantar da cama. Ele queria um cigarro e estava bravo porque a família não o deixava fumar na cama. Estava carrancudo e xingava porque não podia fumar. De repente, sua face se converteu em um sorriso e ele disse “Mãe, os jardins aqui são lindos”. Ele morreu naquela noite. Outro idoso bateu na cama e fez um som com os lábios chamando um animal de estimação. Então, com os olhos fechados, levantou as mãos e acariciou o gato ou cachorro invisível. Esse caso me tocou porque eu amo animais. Por último, cuidei de um jovem senhor por volta dos 40 que estava morrendo de câncer. Era especialmente trágico porque ele tinha uma linda mulher e dois filhos pequenos. Na minha última visita, a mulher dele disse que ele havia estado sem responder (basicamente em coma) por dois dias. Fomos até seu quarto e ele estava com os olhos abertos, olhando para o alto na direção do canto do aposento. Então, ele falou pela primeira vez em vários dias, e disse “Eu não quero ir com vocês, caras”. A mulher dele e eu olhamos uma para a outra de olhos arregalados. As duas ficamos arrepiadas. Aquelas foram as últimas palavras dele, uma vez que naquela noite ele de fato “se foi com aqueles caras”.

Por que pacientes em estado terminal levantam os braços no ar quando estão deitados? Meu pai fez isso mais ou menos 24 horas antes de morrer.

Essa é outra das demais perguntas com o mesmo teor.

A enfermeira de Pronto-Socorro Cathy Raiser comenta que na primeira vez que viu algo assim ela só tinha 17 anos. Como provocação, as enfermeiras mais velhas disseram pra ela que era porque os pacientes estavam morrendo, e estavam abanando as mãos para espantar os anjos que tentavam levá-los para o paraíso.

Só depois ela se deu conta de que esses pacientes pareciam conversar com pessoas conhecidas que já tinham morrido. Alguns contaram para ela que viam pessoas da família.

Nos comentários, uma assistente social de cuidados paliativos, chamada Susan Morse, relata algo parecido:

Não tenho uma resposta baseada em fatos. É algo que parece acontecer durante o processo de transição da pessoa. Espero ter a resposta algum dia. Eu senti uma alteração da energia no quarto. Enquanto testemunhava esse processo, parecia que o paciente estava esticando os braços com amor na direção de alguém, um anjo talvez. Eu não conseguia ver ninguém, mas ele estava definitivamente experimentando algo especial. Não tinha medo. A expressão do paciente [era] como a de uma criança cheia de amor e encantamento. O ar pareceu mudar sutilmente. Senti uma sensação de graça. Espero ter algum dia aquela expressão no meu rosto também.

Estou aqui me perguntando como esses relatos chegam para você. Descontadas as narrativas religiosas, que vêm de fora, o que você, no fundo, acredita que acontece quando a gente morre?

Quanto a mim, não tenho posição fechada, mas, sim, um conjunto de intuições.

Tanto minha religião de origem, o cristianismo, quanto minha religião eletiva, o budismo, têm um bocado a dizer sobre isso.

Nenhuma das duas chega a me convencer inteiramente, porém. É possível que, no final das contas, eu não tenha entendido direito. A verdade é que, apesar de tantos anos, não sei se cheguei a ser um bom praticante.

Por outro lado, acredito que tanto a experiência de crescer em meio à espiritualidade devocional cristã, quanto de amadurecer com os ensinamentos budistas sobre a natureza da mente e da realidade, além da prática de diferentes tipos de meditação, tenham me tornado mais permeável à visitação do Sagrado.

Nos últimos tempos, tive experiências intensas com a Ayahuasca, medicina sagrada utilizada em rituais xamânicos e em religiões de origem amazônica como o Santo Daime.

O princípio ativo do vinho da alma, o DMT, é o mesmo que inunda nosso corpo quando nascemos e — veja só — também nas experiências de quase morte.

Tem gente, na minha opinião contaminados por uma atitude não científica, mas cientificista, que acredita que o banho de DMT explica a EQM. Ou seja, que a experiência toda não passa de um fenômeno químico do cérebro.

E o mesmo claramente se aplicaria à Ayahuasca.

Falando como alguém que teve a experiência e que está familiarizado com inúmeros relatos de pessoas que passaram seja pelo ritual da bebida amazônica, seja pela quase morte, essa visão reducionista não faz nenhum sentido pra mim.

Simplesmente não encaixa.

As experiências com Ayahuasca são de natureza inefável, isto é, difíceis de colocar em palavras.

Arrisco descrever a jornada como uma experiência direta do Divino, que se apresenta a cada pessoa com o verniz de sua fé (mesmo que a pessoa não tenha religião).

Tive a experiência da presença do Outro Mundo. Dessa experiência nasce uma convicção silenciosa — note, não é uma opinião — a respeito de mistérios como o que é a vida, o que é a morte e quem você é.

Esse Outro Mundo — que não experimentei como o Além, mas como uma outra dimensão da nossa própria realidade — não sei dizer o que é, mas aí está. Assim eu vi.

Veja, isso não significa que preciso abrir mão do meu ceticismo, da minha necessidade de lógica, de racionalidade, consistência ou rigor intelectual. Não há necessidade de fazer uma opção pelo exótico, nem pelo esotérico.

A Razão (ferramenta de inteligibilidade) e a dimensão do Sagrado (portadora de uma verdade de outra ordem) não são incompatíveis.

Por outro lado, é difícil seguir materialista (o que considero uma visão ingênua, incapaz de justificar os próprios pressupostos) tendo sentido o que eu e outros sentimos, não importa se

  • por meio do uso de plantas sagradas
  • testemunhando a experiência de pessoas cruzando a fronteira ou
  • ao voltarmos à vida de maneira inexplicável, mas já profundamente transformados pelo que acessamos durante o período que passamos ‘mortos’.

Nesse caso, de fato existe um choque de paradigmas. São visões de mundo (que engendram modos de ser) incompatíveis.

Uma situação que, pra mim, lembra a famosa analogia da Caverna, de Platão. Só quem se levanta e mira o exterior da caverna é capaz de concebê-lo.

Percebe?

Atravessamos coletivamente um período de pandemia, em que muita gente por todo o planeta está vivendo a experiência trágica de partir deste mundo bem antes do que esperava.

É tocante. Assusta, também.

Mas o que isso significa tanto para quem morre quanto para quem fica será bastante diferente se a pessoa sente a morte como algo natural, como algo bom ou, ao contrário, como queda em um abismo infinito.

Me parece um bom momento para suspender o véu do silêncio, encarar o tabu e aprender algo a respeito do que afinal pode se apresentar a nós no último capítulo de nossa existência terrena. Talvez com menos certezas e com mais curiosidade.

Ler relatos de experiências como essas reacende em mim a vontade de sacar meu telescópio e, a exemplo de Alice, mergulhar cada vez mais fundo na toca do Coelho.

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P.S.: Em sintonia com o arquétipo da Queda, do Paraíso Perdido, e também com o primeiro relato lá no começo do texto, às vezes me invade o sentimento de que nós, seres humanos, no fundo sofremos por saudade de nossa Morada.

André Camargo é autor do livro “O Poodle de Schopenhauer” e do artigo mais lido do Linkedin em 2017.

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