Nosso Maior Desafio Existencial

Uma Breve Reflexão Histórica e Psicológica

André Camargo
Revista Tudo é Sagrado
3 min readJun 26, 2023

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imagem: Wwwynand / Unsplash

“O fato de que milhões de pessoas compartilham dos mesmos vícios não transforma esses vícios em virtudes, o fato de que compartilham tantos enganos não transforma os enganos em verdade, e o fato de que milhões de pessoas compartilham das mesmas formas de patologia mental não torna essas pessoas sãs.”

-Erich Fromm

Vejo por todo lado pessoas exaustas, perdidas, em sofrimento. Tenho pensado com frequência neste mundo pós-pandemia, de lutos engolidos, extremismos, algoritmos e pós-verdade. O que aconteceu com o mundo?

Às 22h do dia 04 de agosto de 2014, as luzes de milhares de casas e dos principais monumentos do Reino Unido se apagaram durante uma hora, em memória de um conflito que começara cem anos antes — e que deixara um rastro de 20 milhões de mortos e 21 milhões de feridos.

O gesto simbólico remetia à frase do ministro de relações exteriores do Reino Unido, Edward Grey, às vésperas da Primeira Guerra Mundial:

“As luzes estão se apagando na Europa; talvez não voltemos a vê-las em nossas vidas”.

Até a assinatura do Tratado de Versalhes, em junho de 1919 — que estabelecia os termos para o final da guerra — foram quatro anos de uma “carnificina colossal”, nas palavras do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, uma carnificina que transformaria a Europa em uma terra devastada.

Foi suspenso à beira do abismo da Guerra, em meio à morte e à destruição, que Freud, o criador da Psicanálise, concebeu “O Mal-Estar na Civilização”. A obra de tom pessimista foi descrita pelo historiador Peter Gay, em 1989, como um dos livros mais influentes e estudados no campo da Psicologia moderna.

Ecoando — e talvez aprofundando — a visão pessimista de seu contemporâneo Oswald Spengler, a obra freudiana traz uma sugestão surpreendente: a de que, assim como as pessoas, civilizações também adoecem:

“Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização — possivelmente a totalidade da humanidade — se tornam neuróticas?”

A Primeira Guerra lançou sombras cadavéricas sobre o clima de euforia que vicejava durante o período imediatamente anterior, conhecido como La Belle Époque — um período de avanços extraordinários nos campos da Ciência e da Tecnologia, da Cultura e das Artes.

Alguns argumentam que foi a primeira vez que a humanidade “como um todo” se viu no espelho. E o que ali viu refletida não foram as luzes, mas nossa capacidade aparentemente ilimitada de recrutar a engenhosidade humana para espalhar morte, crueldade e destruição.

Freud entendia que aquela civilização do começo do século 20 estava doente — neurótica.

Se naquela época e naquele contexto, porém, se adoecia pelo conflito insolúvel, angustiante, entre os impulsos e a repressão, hoje, cerca de cem anos depois, a doença avança para um quadro mais severo.

Segundo o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço,

“O ego narcísico voltado para dentro, com acesso puramente subjetivo ao mundo, não é a causa da desintegração social, mas o resultado de um processo incontornável no nível objetivo. Tudo o que liga e conecta está desaparecendo. Quase não existem valores ou símbolos compartilhados, nem narrativas comuns que unam as pessoas. A verdade, provedora de significado e orientação, também é uma narrativa. Estamos muito bem informados, mas ainda assim não conseguimos nos orientar.”

Em um contexto cultural de fragmentação, incerteza asfixiante e desnorteante complexidade, o que nos escapa pelos vãos dos dedos não é a expectativa de enfim encontrar resolução para o conflito, interno e externo — mas o próprio senso de realidade.

O maior desafio para as pessoas do nosso mundo, do meu ponto de vista, este mundo em que contemplamos a nós mesmos e aos outros através do labirinto de espelhos dos algoritmos digitais, é encontrarmos maneiras de nos conservarmos humanos, de nos experimentarmos vivos, inteiros e reais — ainda que em tempos de profunda desintegração.

André Camargo é Psicanalista e Mestre em Psicologia pela USP e atende online.

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