Como Livrar a Humanidade da Ameaça da Guerra?
Buscando sentido na companhia de dois dos maiores gênios do século passado
por André Camargo
Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado; todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.
John Donne
Acordo atordoado com a notícia.
Rússia invadiu a Ucrânia. Guerra.
Antes mesmo de acessar tv ou internet, inundam o coração imagens borradas de sangue, crueldade e destruição.
Cheiro de pólvora e suor.
É um pouco demais. A asfixiante polarização, a ameaça invisível do vírus, o isolamento prolongado em meio à pandemia e agora a guerra, nua e crua.
Mal dá tempo de respirar.
Me pergunto: será ingenuidade minha esperar que um dia isso acabe?
Em 1931, entre as duas grandes guerras, o Institute for Intellectual Cooperation convidou Albert Einstein a promover uma troca de ideias sobre política e paz com algum grande pensador de sua escolha.
Einstein escolheu Sigmund Freud, o criador da Psicanálise.
O físico pacifista começa a conversa perguntando, já no primeiro parágrafo da carta:
“Existe alguma maneira de livrar a humanidade da ameaça da guerra?”
É fascinante que Einstein tenha escolhido Freud para aquela troca de ideias: porque, de fato, não é no campo de batalha, nos mercados ou tribunais que surgem o ódio, a ganância, a inveja, a cobiça e a intolerância — e sim nos corações e mentes dos seres humanos.
Diz ele que se trata de assunto de vida ou morte para a nossa civilização (e isso, veja, ainda antes de ultrapassado o limiar da ameaça atômica de erradicar qualquer traço de vida humana da Terra).
Tragicamente, enquanto os dois cientistas trocavam cartas, Adolf Hitler ascendia ao poder na Alemanha.
(Tanto Einstein quanto Freud eram judeus e se veriam forçados ao exílio com o avanço das tropas nazistas.)
Diante dos últimos acontecimentos, que compreendo sobretudo como um confronto entre a Rússia e a Otan, que tem, portanto, raízes históricas mais antigas, também me pergunto se a guerra é inevitável.
Seremos capazes, coletivamente, de prescindir da violência, da crueldade e da sede de poder?
Freud responde, primeiro, reverberando a angústia de Einstein:
“Todo homem tem um direito sobre a própria vida e a guerra destrói vidas cheias de promessa; ela força o indivíduo a situações que envergonham sua hombridade, obrigando-o a assassinar seus iguais, contra sua vontade; ela devasta comodidades materiais, frutos da labuta humana, e muito mais. Além disso, da maneira como hoje são conduzidas, as guerras não deixam espaço para atos de heroísmo segundo os ideias antigos e, tendo em vista a grande perfeição dos armamentos modernos, uma guerra hoje significaria o completo extermínio de um dos lados combatentes, senão de ambos. Isso é tão verdadeiro e tão óbvio que não podemos deixar de nos perguntar por que a prática da guerra não é banida por consenso geral.”
O psicanalista vienense então situa sua resposta no confronto entre o processo civilizatório e a pressão dos instintos, entre nossa capacidade de criar vínculos afetivos e nossa bestialidade — entre a Pulsão de Vida e a Pulsão de Morte.
Os confrontos bélicos surgem de uma combinação de instintos agressivos e ignorância. Quanto mais nos desenvolvemos culturalmente, segundo Freud, mais sentimos como inaceitável a ameaça da guerra.
A questão se torna, então, no perpétuo jogo de forças entre civilização e barbárie, descobrir se haverá tempo e condições para contarmos entre nós um número suficiente de pacifistas — como Einstein e Freud, como Gandhi, o Dalai Lama e Martin Luther King Jr. — antes que, afinal, acabemos nos exterminando uns aos outros.
Minha própria opinião foi mudando ao longo do tempo.
Ocorreu-me a figura de Ares, o deus grego da Guerra — com assento permanente no Olimpo.
A sabedoria grega sugere que, ao lado das forças da natureza, representadas no panteão como Cronos (o Tempo), Zeus (o Trovão), Hefesto (o Fogo) e Poseidon (os Mares), por exemplo, existem forças próprias à natureza humana que são arquetípicas, desempenham seu papel no grande tabuleiro de xadrez cósmico — e não podem ser erradicadas.
Afinal, deuses são imortais.
A guerra, então, para os gregos antigos — representada por Ares — seguirá fazendo parte deste mundo e desta existência até o fim dos tempos, tanto quanto o fogo e o trovão.
Faz sentido pra mim.
Talvez um dia a gente consiga eliminar os conflitos armados em larga escala, que, em função do enorme poder de destruição, cada vez mais ameaçam a vida na Terra.
Li em algum lugar a previsão de que a forma atual dos conflitos migraria cada vez mais para um padrão de guerras cibernéticas. Ainda assim, ainda que a guerra mude de face, Caim seguirá assassinando seu irmão a sangue-frio.
Que guerras aconteçam, na minha opinião, é mesmo inevitável — dentro e fora de cada ser humano. Os conflitos violentos, ainda que trágicos e indesejáveis, existem, seguirão existindo e delineiam o caminho tortuoso de nossa evolução possível.
Mesmo que não nos seja possível erradicá-la, sinto que cabe a cada um de nós, pacifistas, seguir lutando com sangue, suor e lágrimas contra a barbárie e a favor da civilização — como se fosse possível acabar com a guerra.
O estado de Paz é uma estrela no horizonte: nos aponta o caminho, ainda que nunca possamos alcançá-la.
André Camargo é autor do livro “O Poodle de Schopenhauer” e do artigo mais lido do Linkedin em 2017.
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