Nosso título de nobreza não vale nada

luís felipe d.s
A la fresca!
Published in
6 min readAug 27, 2015

O jornalismo perdeu o controle da agenda. Ele não vai mais voltar.

Anúncio do Papa Bento XVI e anúncio do Papa Francisco, no Vaticano.

A Zero Hora lançou um projeto chamado “Pelas Ruas”, que consiste em matérias feitas por repórteres que vão caçar pautas nas ruas de Porto Alegre. Admito que, à primeira vista, o projeto me causou estranheza; ora, não há nada mais óbvio que caçar pautas nas ruas, e fazer isso deveria ser o desiderato de um veículo jornalístico com foco no noticiário local. Além disso, a própria Rádio Gaúcha (que faz parte do mesmo Grupo RBS) faz disso o seu principal produto.

Entretanto, essa obviedade se perdeu na mecanização do trabalho da redação: as pautas seguem sendo feitas por pessoas que detém um conhecimento sobre os fatos relevantes e passam isso para seus repórteres, que as executam. Esse talvez seja um dos principais motivos da desidratação do modelo de negócio dos grandes jornais e portais do Brasil — o jornalista tenta desesperadamente retomar o controle sobre a agenda, só que este controle está perdido e dificilmente será recuperado.

Talvez o grande evento chamado Junho de 2013 tenha sido o momento crucial em que o controle da agenda foi embora para não mais voltar.

Descendo dos helicópteros

Ricardo Calazans aprofunda melhor esse tema, citando como a redação do jornal “O Globo” envelheceu 10 anos em uma semana, nas suas palavras. Eu, em junho de 2013, estava em uma redação que não envelheceu tanto assim: era editor de home do período da noite no Terra, um dos poucos veículos que conseguiu compreender o tamanho dos protestos de junho de 2013 no momento em que eles aconteceram. Isso se deve por vários fatores, entre eles a competência dos/as repórteres e editores/as que lá trabalhavam e a independência política e de produção de conteúdo de todos nós — as diferenças políticas na abordagem eram tratadas entre nós mesmos, sem reuniões de chefia nem memorandos para definir isto.

Só que havia um outro fator tão preponderante quanto: estávamos em Porto Alegre, onde os protestos começaram antes. Porto Alegre já conhecia a miríade de discursos que viria a ser aplicada em São Paulo entre a manhã e o final da noite de 13 de junho de 2013 — já sabíamos que a dicotomia entre o direito de manifestar e o direito de ir e vir era insuficiente para explicar tudo. A insatisfação da juventude de esquerda com o modelo de cidade, galvanizada no transporte público, não poderia ser calada por cacetadas e balas de borracha defendidas por editoriais — as armas discursivas dos celulares gravando tudo em tempo real eram mais poderosas do que se imaginava.

Quando milhões de pessoas saíram às ruas, com pautas absolutamente diversas e dissonantes entre si, o confronto entre a agenda midiática tradicional e a agenda das mídias sociais havia atingido um ponto de não-retorno. Alguém teria que ceder, e a mídia tradicional cedeu — desceu dos helicópteros e foi entender o que as pessoas pensavam no chão.

Foto: Franco Ritchele/Futura Press

As bolhas deturpam a nova agenda

De 2013 para cá, mudanças sutis nas redes sociais alteraram várias perspectivas; o Facebook, por exemplo, deixou de ser uma ferramenta de broadcast e passou a ser uma ferramenta de nicho para produtores de conteúdo. Isso aprofunda o que críticos chamam de bolhas ideológicas, provocadas por iniciativas dos próprios usuários, segundo o mais profundo estudo já divulgado sobre o tema.

Os nichos nas redes sociais, uma vez formados por pessoas, são organismos vivos; eles se transformam e alimentam, padronizando fluxos de linguagem e arrastando consigo o noticiário. Essa linguagem líquida, viva e horizontalizada difere radicalmente do modelo de negócio dos portais, fundado e solidificado em ver o leitor como um “globo ocular”, cuja atenção precisa ser captada — nessa selva, vence quem tem a atenção captada mais vezes.

A redação jornalística também é um organismo vivo e também constrói seus próprios fluxos de linguagem. O problema é que a expectativa do público é ver no produto final de uma redação não o interesse dela própria, mas o seu interesse — se o interesse do público é vivo e líquido, ele se torna um problema para os padrões comerciais, que não conseguem acompanhar a velocidade da produção de discurso do público. Como método de defesa, as redações passam a levar para dentro do noticiário pautas relevantes para os seus nichos e para os seus fluxos de linguagem, restringindo drasticamente a abrangência dos interesses.

Incapaz de acompanhar a agenda do seu público, divulgada nas redes sociais, e de construir um produto de valor, pois a resposta comercial é insuficiente, a tendência de um portal é restringir a abrangência da sua relevância para os nichos dos próprios jornalistas. Assim sendo, o interesse do público passa a ser aquilo que se refere a uma pessoa entre 20 e 40 anos, moradora de São Paulo, curso superior completo, que ganha entre R$ 1,5 e R$ 7 mil mensais. Se você acessar a home de qualquer portal nesse exato momento, vai ver pelo menos cinco pautas muito interessantes para o público descrito acima.

A bolha do jornalista deturpou a nova agenda do jornalismo. Esse comportamento defensivo é normal em tempos de crise — desde que ele seja reconhecido como um comportamento defensivo, e não como uma realidade inescapável.

Um dos temas mais importantes do mundo, para quem mora no centro do mundo. (Foto: João Luiz/Secretaria de Comunicação de SP)

Esqueça: você não vai calar a todos

Nesse contexto temos as frases de Umberto Eco sobre as mídias sociais na Universidade de Turim, em junho.

“As redes sociais deram a palavra a legiões de imbecis, que falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”

“O drama da Internet é que ela promoveu o idiota a portador da verdade”.

As frases de Umberto Eco são reconfortantes para jornalistas. Estamos acostumados, através do nosso trabalho ou do nosso aprendizado na academia, a portar uma voz mais alta que a dos outros, ou a praticar a curadoria das vozes alheias para inúmeras pessoas. Elas nos agradam, mostram que os idiotas estão nos outros, nas suas bolhas, nos seus nichos, nos seus padrões de discurso. E que somos, enfim, donos de um título de nobreza da palavra que as redes sociais não podem nos tirar, como vozes que somos da sociedade e dos seus interesses.

Não posso imaginar um discurso mais perigoso que este para um profissional da comunicação. E ele é perigoso não apenas por ser segregador, mas por ser a ruína da comunicação como atividade profissional.

O discurso de um lado só acabou. O muro da Bastilha que separa os publicadores de conteúdo dos receptores de conteúdo já foi derrubado, e não adianta mais reerguê-lo. Não adianta mais, para o jornalista, ficar dançando valsa em um Baile da Ilha Fiscal de portais e jornais que consideram como único conteúdo relevante o que é mais clicado: se o índice de cliques em matérias de um portal raramente ultrapassa os 20%, isso significa que o discurso do portal não é suficiente para 80% das pessoas. Algumas pessoas presentes nesses 80% até podem se interessar pelos temas, mas elas estão ocupadas produzindo seus próprios discursos nas redes sociais. Essa sim, é uma realidade inescapável.

Dois anos são muito tempo na internet, mas há dois anos a dissonância entre a agenda midiática e a agenda das redes sociais atingiu um ponto de não-retorno e muitas pessoas sequer perceberam isso. O controle sobre a agenda de discurso não vai mais voltar, a não ser que uma ditadura venha a calar a todos —nosso suposto título de nobreza da palavra não vale nada nesse sentido.

Não vai dar para envenenar as telas touchscreen, Umberto. Desculpa aí (Reprodução do Filme ‘O Nome da Rosa’)

--

--

luís felipe d.s
A la fresca!

jornalismo, mídias sociais, música, política, esportes