Nosso título de nobreza não vale nada
O jornalismo perdeu o controle da agenda. Ele não vai mais voltar.
A Zero Hora lançou um projeto chamado “Pelas Ruas”, que consiste em matérias feitas por repórteres que vão caçar pautas nas ruas de Porto Alegre. Admito que, à primeira vista, o projeto me causou estranheza; ora, não há nada mais óbvio que caçar pautas nas ruas, e fazer isso deveria ser o desiderato de um veículo jornalístico com foco no noticiário local. Além disso, a própria Rádio Gaúcha (que faz parte do mesmo Grupo RBS) faz disso o seu principal produto.
Entretanto, essa obviedade se perdeu na mecanização do trabalho da redação: as pautas seguem sendo feitas por pessoas que detém um conhecimento sobre os fatos relevantes e passam isso para seus repórteres, que as executam. Esse talvez seja um dos principais motivos da desidratação do modelo de negócio dos grandes jornais e portais do Brasil — o jornalista tenta desesperadamente retomar o controle sobre a agenda, só que este controle está perdido e dificilmente será recuperado.
Talvez o grande evento chamado Junho de 2013 tenha sido o momento crucial em que o controle da agenda foi embora para não mais voltar.
Descendo dos helicópteros
Ricardo Calazans aprofunda melhor esse tema, citando como a redação do jornal “O Globo” envelheceu 10 anos em uma semana, nas suas palavras. Eu, em junho de 2013, estava em uma redação que não envelheceu tanto assim: era editor de home do período da noite no Terra, um dos poucos veículos que conseguiu compreender o tamanho dos protestos de junho de 2013 no momento em que eles aconteceram. Isso se deve por vários fatores, entre eles a competência dos/as repórteres e editores/as que lá trabalhavam e a independência política e de produção de conteúdo de todos nós — as diferenças políticas na abordagem eram tratadas entre nós mesmos, sem reuniões de chefia nem memorandos para definir isto.
Só que havia um outro fator tão preponderante quanto: estávamos em Porto Alegre, onde os protestos começaram antes. Porto Alegre já conhecia a miríade de discursos que viria a ser aplicada em São Paulo entre a manhã e o final da noite de 13 de junho de 2013 — já sabíamos que a dicotomia entre o direito de manifestar e o direito de ir e vir era insuficiente para explicar tudo. A insatisfação da juventude de esquerda com o modelo de cidade, galvanizada no transporte público, não poderia ser calada por cacetadas e balas de borracha defendidas por editoriais — as armas discursivas dos celulares gravando tudo em tempo real eram mais poderosas do que se imaginava.
Quando milhões de pessoas saíram às ruas, com pautas absolutamente diversas e dissonantes entre si, o confronto entre a agenda midiática tradicional e a agenda das mídias sociais havia atingido um ponto de não-retorno. Alguém teria que ceder, e a mídia tradicional cedeu — desceu dos helicópteros e foi entender o que as pessoas pensavam no chão.
As bolhas deturpam a nova agenda
De 2013 para cá, mudanças sutis nas redes sociais alteraram várias perspectivas; o Facebook, por exemplo, deixou de ser uma ferramenta de broadcast e passou a ser uma ferramenta de nicho para produtores de conteúdo. Isso aprofunda o que críticos chamam de bolhas ideológicas, provocadas por iniciativas dos próprios usuários, segundo o mais profundo estudo já divulgado sobre o tema.
Os nichos nas redes sociais, uma vez formados por pessoas, são organismos vivos; eles se transformam e alimentam, padronizando fluxos de linguagem e arrastando consigo o noticiário. Essa linguagem líquida, viva e horizontalizada difere radicalmente do modelo de negócio dos portais, fundado e solidificado em ver o leitor como um “globo ocular”, cuja atenção precisa ser captada — nessa selva, vence quem tem a atenção captada mais vezes.
A redação jornalística também é um organismo vivo e também constrói seus próprios fluxos de linguagem. O problema é que a expectativa do público é ver no produto final de uma redação não o interesse dela própria, mas o seu interesse — se o interesse do público é vivo e líquido, ele se torna um problema para os padrões comerciais, que não conseguem acompanhar a velocidade da produção de discurso do público. Como método de defesa, as redações passam a levar para dentro do noticiário pautas relevantes para os seus nichos e para os seus fluxos de linguagem, restringindo drasticamente a abrangência dos interesses.
Incapaz de acompanhar a agenda do seu público, divulgada nas redes sociais, e de construir um produto de valor, pois a resposta comercial é insuficiente, a tendência de um portal é restringir a abrangência da sua relevância para os nichos dos próprios jornalistas. Assim sendo, o interesse do público passa a ser aquilo que se refere a uma pessoa entre 20 e 40 anos, moradora de São Paulo, curso superior completo, que ganha entre R$ 1,5 e R$ 7 mil mensais. Se você acessar a home de qualquer portal nesse exato momento, vai ver pelo menos cinco pautas muito interessantes para o público descrito acima.
A bolha do jornalista deturpou a nova agenda do jornalismo. Esse comportamento defensivo é normal em tempos de crise — desde que ele seja reconhecido como um comportamento defensivo, e não como uma realidade inescapável.
Esqueça: você não vai calar a todos
Nesse contexto temos as frases de Umberto Eco sobre as mídias sociais na Universidade de Turim, em junho.
“As redes sociais deram a palavra a legiões de imbecis, que falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”
“O drama da Internet é que ela promoveu o idiota a portador da verdade”.
As frases de Umberto Eco são reconfortantes para jornalistas. Estamos acostumados, através do nosso trabalho ou do nosso aprendizado na academia, a portar uma voz mais alta que a dos outros, ou a praticar a curadoria das vozes alheias para inúmeras pessoas. Elas nos agradam, mostram que os idiotas estão nos outros, nas suas bolhas, nos seus nichos, nos seus padrões de discurso. E que somos, enfim, donos de um título de nobreza da palavra que as redes sociais não podem nos tirar, como vozes que somos da sociedade e dos seus interesses.
Não posso imaginar um discurso mais perigoso que este para um profissional da comunicação. E ele é perigoso não apenas por ser segregador, mas por ser a ruína da comunicação como atividade profissional.
O discurso de um lado só acabou. O muro da Bastilha que separa os publicadores de conteúdo dos receptores de conteúdo já foi derrubado, e não adianta mais reerguê-lo. Não adianta mais, para o jornalista, ficar dançando valsa em um Baile da Ilha Fiscal de portais e jornais que consideram como único conteúdo relevante o que é mais clicado: se o índice de cliques em matérias de um portal raramente ultrapassa os 20%, isso significa que o discurso do portal não é suficiente para 80% das pessoas. Algumas pessoas presentes nesses 80% até podem se interessar pelos temas, mas elas estão ocupadas produzindo seus próprios discursos nas redes sociais. Essa sim, é uma realidade inescapável.
Dois anos são muito tempo na internet, mas há dois anos a dissonância entre a agenda midiática e a agenda das redes sociais atingiu um ponto de não-retorno e muitas pessoas sequer perceberam isso. O controle sobre a agenda de discurso não vai mais voltar, a não ser que uma ditadura venha a calar a todos —nosso suposto título de nobreza da palavra não vale nada nesse sentido.