A conta não fecha
Ivanildo Jesus
Periódico
Se você nos acompanha semanalmente verá que no último mês chegamos ao ápice da nossa desorganização, os textos saíram em outros dias, quando saíram e a divulgação só veio depois. Destaco que há uma cadeia produtiva que sustenta as publicações deste periódico, há um processo de organização das datas, convites aos colunistas, escrita dos textos, revisão, postagem e divulgação. Essa cadeia produtiva, toda voluntária — afinal, cabe destacar, leitores e leitoras ainda não fizeram a gentileza de passar pelo nosso PIX — às vezes precisa dar conta de outras demandas que acabam sobrepujando nossa atividade dominical de louvor ao som.
No mês de julho, quando professores e professoras se encontram em recesso escolar, professores e alunos de música embrenham-se nas atividades sonoras. Festivais, intensivos, ida a concertos, aulas e ensaios assaltam as atividades julinas. No recesso, deixamos de lado, no que toca aos alunos, as atividades obrigatórias da escola, para as atividades queretórias. Nesse momento, eles ensaiam horas a fio, respiram, vivem e fazem música o tempo inteiro.
No mês passado, estive imerso na convivência com os discentes, se meus ouvidos, como outrora já lhes disse, estavam sempre abertos, nesses dias, confesso que às vezes os quis fechar.
Isso posto, voltemos aos reclamediuns.
Nascimento da orquestra
Vi uma orquestra nascer. Eu, que nos últimos anos de desgoverno vivi às voltas com a morte de corpos artísticos não tão estáveis, vi há pouco uma orquestra fazer seu primeiro concerto. O leitor se perguntará: como nasce uma orquestra? É um processo extenso que como todas as coisas boas da vida, precisa da participação de muitas mãos.
Primeiro, acredito, nasce da paixão, da loucura, das ideias e da visão dos aficionados pela arte. Observem, primeiro vemos a possibilidade no ecossistema artístico. O local já conta com grupos musicais? Esses grupos musicais destinam-se ao que? Qual o repertório e proposta artística que o grupo que existe no local contempla? A comunidade abraçaria a criação de um grupo sinfônico? Por aí vai. Questionamentos e maturação das ideias, isso digo quando criamos uma orquestra que, talvez, temo até em escrever essa palavra, se quer profissional. Um grupo amador, como o nome já disse, nasce do coração daqueles que amam. Quem ama não se coloca a pensar em mil problemáticas, não, quem ama age, faz e cria. Diferente de quem tem propensões ao profissionalismo que observa, analisa, estuda e pondera.
Antes de falar da criação desse grupo profissional e dos grupos amadores, há os grupos voltados às práticas pedagógicas, onde quero deter a nossa atenção.
Nesse momento de expansão das atividades do terceiro setor — aquelas que estão entre o Estado e a iniciativa privada -, a educação não formal quer também dar conta da vulnerabilidade. Saúde, educação e segurança, nossas preocupações mais imediatas, não tem conseguido só a partir de um Estado, que se quer cada vez menor, dar conta de uma vulnerabilidade que se faz cada vez maior. Assistimos, espero, com espanto o que acontece na cracolândia. Deparamo-nos com o que é nefastamente comum: encontrar crianças e adolescentes em situação de rua pelos semáforos. Você, leitor, certamente conseguirá se lembrar da última vez que fechou os vidros do seu carro para um pedinte no sinal. A realidade fora do condomínio é desoladora. Se todos e todas não temos acesso à cultura, temos e muito, acesso à vulnerabilidade.
Por conseguinte, os projetos sociais responsabilizam-se por um remédio, usando um conceito de Fraser, de reconhecimento em primeira ordem. Tentamos a partir das políticas educacionais retirar as crianças da rua, nesse sentido trabalham também as políticas das escolas integrais. Retira-se a criança da rua oferecendo-a um espaço de convivência saudável e reconhecendo-a como detentora do direito do acesso à arte e à educação.
Tema introduzido, cabe certo desenvolvimento. Quando as políticas sociais já fizeram sua parte de oferecer o acesso — para algumas clientelas específicas não cabe só o reconhecimento -, é necessário pensar também na redistribuição.
Estudar música, artes em geral, ir além dos primeiros passos, é caro, sem investimento massivos essas iniciativas não terão sucesso. Aqui chegamos ao cerne da questão. Quando iniciamos a discussão sobre essa orquestra que nascerá, voltada à prática dos infantes, que não se quer excludente, precisamos pensar em uma proposta de remuneração que contemple minimamente as necessidades daquele educando.
Ver uma orquestra nascer, com uma proposta de remuneração que contemple — mesmo que ainda de forma mínima — a necessidade dos discentes, é de uma felicidade ímpar. A essa iniciativa no último mês, tributei meu tempo e atenção.
LIVE | Apresentação da Orquestra Sinfônica do Guri | São José dos Campos
Contas
Ver essa orquestra nascer, com iniciativas de redistribuição, repleta de cuidados pedagógicos me faz pensar no futuro. Penso nas crises cíclicas do capital, conjecturo que meus alunos e alunas logo mais, depois dessa orquestra, terão que disputar outros espaços se quiserem seguir carreira, preocupação cuja dissertação já fiz em texto de nome análogo.
A carreira musical, o profissionalismo, o pagar as contas com a música, deve ser também uma preocupação dos docentes. Se não pensarmos que em breve nossos pupilos estarão disputando espaço em um mercado que em tese deve sustentar-se a partir de um Estado que quer o distanciamento de suas atividades fim, teremos um grande problema.
A conta precisa fechar e para isso mais orquestras precisam nascer.