Enquadros

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
7 min readJul 23, 2023

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Doutrinação

No último dia 09, enquanto nós, belezers, líamos o último texto do colega Nelson Rechdan falando sobre a importância das ações educacionais para grupos musicais, o filho do então inelegível ex-presidente discursava para um grupo pró-armas. Como disparate pouco é bobagem, além da caricatura nefasta do evento em si — pensava eu que aos domingos pelas manhã os cristão buscavam o Deus que falava de amor, não aos Bolsonaro’s e suas armas — , o deputado, no auge de sua performance tirânica, comparou professores a traficantes.

“Não tem diferença de um professor doutrinador para um traficante que tenta sequestrar e levar os nossos filhos para o mundo do crime” — com mais uma de suas pérolas, Eduardo, o deputado, evidencia o desprezo ímpar pelo mundo educacional. Como professor que sou, ao ler a máxima, fui acometido por certo estranhamento. Confesso que, até hoje, com anos nessa carreira, ainda estou longe desse grau elevado da docência: a doutrinação.

Só quem tentou dar aulas sabe a dificuldade que é falar de maneira que, primeiro, os alunos entendam o que você quer dizer, segundo, que o deixem dizer o que quer, terceiro, que queiram fazer o que você os disse. Estamos, na verdade, o tempo todo disputando a atenção deles com o maravilhoso mundo da internet. Nas redes, o algoritmo, mais treinado que qualquer professor, sabe como ninguém manipular a atenção dos discentes. Já nós, mesmo com anos de prática, pesquisa e formação continuada, temos que dia após dia renovar o vocabulário semântico para conseguir acompanhar, na maioria das vezes sem muito êxito, o frenesi de um contemporâneo em que o atual já nasce velho.

Isso posto, sei que uma notícia do começo do mês já corresponde ao paleolítico, há mais disparates que precisam do escrutínio da nossa atenção.

Olhos à Bahia

Tenho evitado por aqui falar do que acontece na Bahia. Por mais que a fofoca do mundo musical excite-me, sinto que alguns temas carecem de um cuidado soberbo e uma pesquisa cujo tempo tão escasso nesses dias não me permite. Contudo, acho que as últimas cenas da novela baiana enquadram de forma pitoresca o nosso Brasil.

No texto para o jornal Correio, “Sommelier fantasma, OSBA e cultura baiana” Gil Vicente Tavares diz que os sommeliers fantasmas são aqueles que “tem sempre uma opinião e uma contundente crítica a fazer, sem sequer fazer ideia do que realmente está acontecendo, sem aparecer, e sem, com isso, ter qualquer capacidade de opinar de maneira embasada”. Como não quero incorrer nesse equívoco e entrar no páreo para a alcunha, tentarei dizer-lhes com alguma distância da minha visão paulocentrica, do que acontece na Bahia.

A OSBA (Orquestra Sinfônica da Bahia) tem estado na boca do povo não só baiano, mas de todos os Brasis, como diria Darcy Ribeiro, pelos seus feitos nos últimos tempos. Há meses atrás tivemos todo um quiprocó por conta de um concerto intitulado “‘OSBREGA ‘concerto de amor “. O programa, no intuito de enaltecer a cultura local e dialogar com a comunidade e o público, trouxe ao palco um dos aspectos da cultura musical nordestina que às vezes escanteia-se da nossa apreciação: a música brega, romântica.

A orquestra, até então dirigida pelo maestro Carlos Prazeres — a mente por trás dessas elucubrações popularescas — agora terá que lidar provavelmente com outro diretor artístico: a figura, para usar um eufemismo, pouco sensata do maestro e pianista Ricardo Castro, fundador do NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia).

Sobre o programa OSBREGA, Ricardo disse: “um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”. Na tentativa pouco eficiente de defender seus preconceitos musicais, o maestro fundador do NEOJIBA, repito e acrescento, um dos maiores projetos sociais de música do Brasil, emenda a defesa argumentando que “no caso em questão, a orquestra é pública e os músicos são renumerados pelos impostos dos mais pobres (rico não paga imposto no Brasil). E em um estado pobre como a Bahia, uma orquestra desse porte só se justifica porque existe um repertório que ninguém mais pode defender, proteger, divulgar e que é patrimônio da humanidade”.

O trecho acima foi retirado do artigo de Nelson Kunze à revista Concerto “Sobre o programa ‘Osbrega’ e as orquestras sinfônicas modernas”, onde o articulista ao falar da sua percepção sobre o debate diz: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra” na esperança ingênua de imiscuir-se da questão apontando uma terceira via; falando obviedades e platitudes, como a falta de investimento em divulgação e a inclusão da educação musical no currículo escolar.

Em tempo, relembro o quadro “Polêmica da semana” do canal Portas dos Fundos, onde de um lado tínhamos uma figura com autoridade e embasamento discutindo temas pertinentes do contemporâneo e de outro lado um outsider proferindo inverdades, encenando o que a esquete dizia ser um “debate”. Tragicamente acredito que a arte imita a vida e o debate que se deu acerca do programa “Osbrega” teve o mesmo fim tragicômico.

Esse mês a OSBA voltou ao palco do debate pois seu inventivo diretor artístico, o maestro Carlos Prazeres, em breve não estará mais no podium. O edital que define a nova gestão da orquestra foi ganho pelo Instituto de Desenvolvimento Social pela Música (IDSM), ligado ao antigo maestro Ricardo Castro.

O artigo Músicos da Osba lembram passagem de Ricardo Castro pela Osba e temem gestão da IDSM: “Clima de terror e medo” enquadra com precisão a questão. Como a terra plana não gira, ela capota. Ricardo, que há pouco criticava a OSBA por suas escolhas artísticas, poderá em um futuro breve fazê-las.

Ao ver a figura de Ricardo Castro, diretor de um grande projeto social, destilando preconceitos enquanto vocifera sobre a divulgação da música de concerto e que, ao mesmo tempo, almeja colocar-se como um paladino da justiça social, vejo desenhar-se também a figura de outro grande diretor de projeto, o maestro Edilson Venturelli, diretor do Instituto Baccarelli, que na última eleição para governador apoiou abertamente o candidato Tarcísio Freitas para governador. Convido-lhes para observar o meu ponto de vista sobre o episódio no texto “Relações Incestuosas”.

Preconceito, elitismo e conservadorismo assaltam a vulnerabilidade através de projetos sociais voltados à educação musical. É necessário abrir não só os ouvidos, mas também os olhos, pois, como diria Hamlet “há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Vaza moleque

Como os meus ouvidos estão sempre abertos ao que falam os infantes, há pouco ouvindo-lhes falar sobre suas experiências com a polícia, um deles contava o que recentemente tinha sido a sua primeira geral. Contava ele que, pasmem, com mochila nas costas, voltando da escola, dois policiais o pararam na bicicleta e iniciaram o procedimento investigativo.

Ao ouvi-lo descrever a cena encerrei minha atenção no fato. De imediato, lembrei com pesar das atrocidades e casos isolados — quase diários — que acontecem nas nossas periferias. Lembrei do que para mim é emblemático, do caso do músico Evaldo Rosa dos Santos cujo carro, onde estava ele sua esposa e filha indo a um chá de bebê, foi alvejado por engano com mais de oitenta tiros, levando-o a óbito junto com o catador de material reciclado Luciano Machado, que tenta ajudá-lo no momento.

Da suposta justificativa para a cena acima, diz-se que antes da lamentável “confusão” dois assaltantes perambulavam pela região logo após um roubo. Ainda tenho dificuldade em entender como isso de alguma maneira, em qualquer circunstância que se apresente, possa justificar tamanha violência.

Meu aluno, de treze anos, preto, teve sua primeira experiência em ser considerado um suspeito pela polícia e ser passível de levar um enquadro. Meu aluno, de treze anos, preto, que ouve Mozart, adora Vivaldi e tem verdadeira devoção pela música de concerto, viu-se, como ele mesmo disse com seu vocabulário peculiar, numa situação embaraçosa.

Volto aos projetos sociais e à justiça social, penso que não há de maneira alguma, um fazer político-pedagógico-musical dissociado da materialidade. Lembro de Luiz Carlos Justino, violoncelista da Orquestra da Grota, que por conta de um “erro do sistema” fora preso não uma, mas duas vezes e diz hoje “andar na rua com medo de ser preso”.

Educar pretos e pretas é informá-los que comumente eles serão considerados suspeitos e suspeitas, é dizer-lhes que, por mais que o universo da música clássica pareça dignificá-los, isso é só um mote. É instigá-los a pensar que, talvez, a luta contra as diversas vulnerabilidades que nos acometem vá além da apreciação e divulgação, como diz Ricardo Castro, do patrimônio (musical) da humanidade. É tentar dizer-lhes que estamos em um processo histórico-social onde, como diz Elza Soares, “a carne mais barata no mercado é a carne preta”; que há pouco menos de um século, cantoras líricas do talento de Marian Anderson não podiam sequer hospedar-se em um hotel no Rio de Janeiro.

Penso no meu aluno, sempre cordato, doce, educado, ouvindo dos policiais “vaza moleque” após ter a sua bolsa com o material escolar revistada. Quero dizê-lo não vaze, ocupe todos os espaços, o mundo é o seu palco. Lute, através da música, com tudo que você pode, para que os seus semelhantes não passem por situações análogas.

Foto de Sarah Kahn retirada do Unsplash

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