Há muito

A Beleza do Som
A Beleza do Som
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4 min readOct 8, 2023

Ivanildo Jesus

Belezer, há muito que não nos vemos, há muito que não lhes dedico o prazer dessas letras. Por aqui o ano anda em prestíssimo. Por esses dias rejo, toco, ensino e coordeno. Escrevo, sobretudo relatórios e atas, na agenda sempre lotada, há pouco espaço para a poesia da nossa prosa dominical. Contudo, hoje é necessário escrever-lhes. Vamos ao texto.

Foto de Danie Franco retirada do unsplash

Ida ao lar São Francisco de Paulo

Essa semana fui tocar no Lar São Vicente de Paulo, para os idosos. Minha participação estava marcada para às 10h, cheguei cedo, havia de preparar-me, sentir o ambiente. Enquanto me organizava mentalmente, pensei: do meu repertório pouco praticado, o que interessará aos idosos? Esses dias tenho me dedicado mais à regência do que ao violino. Como precisava honrar o compromisso assumido, voltei à prática horas antes de subir ao palco, insanidade que não recomendo. Assim que chego no Lar, a coordenadora, uma senhora envolta em afazeres, suplica: “É possível começar? Eles são impacientes, se os deixamos na frente do palco, sem que nada aconteça, vão querer voltar para o quarto.” Preocupo-me, a aventura mostra-se cada vez mais desafiadora. Uma plateia impaciente, darei conta de entretê-los?

Adendo: além de impacientes, a coordenadora também disse que alguns estavam quase surdos. Medo e apreensão me assaltam a tranquilidade. Impacientes e surdos, o que poderei dizer-lhes com o violino? Meu repertório, levantado horas antes do suposto concerto, contava apenas com uma singela Meditação de Thaís, pouco mais que cinco minutos de música. Olho no relógio: terror, teria de tocar por cerca de meia hora.

Começo com o concerto em Si Menor de Rieding, uma peça que está sempre próxima por conta do repertório dos alunos, ouço-a semanalmente, tentando promover alguma reflexão sobre. Inicio a apresentação, toco o primeiro movimento. A platéia, impaciente, silenciosa e um pouco surda, me segue com olhar. Desço do palco, ando e toco perto deles, entre as cadeiras.

Quando, no meio da execução, nossos olhares se encontram, vejo o mundo. Eles se deixam levar pelo meu Rieding e sorriem quando chego perto. Alguns começam a se mexer, ouvem e sentem, do modo que podem e lhes cabe. A impaciência que era quase tangível no ar, dissipa-se.

Continuo. Há mais para tocar e a plateia não tem tempo a perder. Como o lobo perde o pelo, mas não o vício, pego do repertório sempre à mão de casamentos o Over The Rainbow, o famoso Além do Arco-íris, que por aqui se popularizou com a novela Chocolate com Pimenta. Toco, alguns fecham os olhos e se permitem entregar-se às próprias memórias. No final, um deles ergue a mão e me pergunta se a música era o Over The Rainbow. Confirmo, ele ri alegre consigo, como se tivesse tirado a cartela cheia no bingo. Memória afetiva acessada.

O tempo passa, toco outras músicas. Encerro a apresentação e me sento para assistir. Além da minha apresentação, eles teriam outro professor dançando Hip Hop. A dança começa com o professor convidando-os às palmas e aos passinhos. Assisto com graça o pequeno prazer que é isso tudo.

Envelhecer para alguns de nós é privilégio. Ter a certeza que teremos um futuro com alguma espécie de cuidado e seguridade social, para grande parte da população, ainda está distante. Lembro da mortalidade de homens negros nesse país enquanto observo os idosos ao meu redor. Alguns mais independentes, outros cercados de cuidados. Penso na minha existência, talvez seja hora de fazer as pazes com os exercícios físicos e voltar a me exercitar, como aconselha o colega Daniel no texto Mens Sana in Corpore Sano.

Passo as semanas sempre às voltas com as preocupações de um mundo mais interessante e possível aos infantes, de maneira que esqueço: se eles tiverem êxito e a vida lhes permitir sorte, logo mais envelhecerão. Qual futuro nós construímos hoje para os nossos músicos velhos? Atualmente, as carreiras já estão para lá de precarizadas. Há um frenesi de austericídio sempre à espreita. Queremos fazer muito, com cada vez menos. Não tem como isso dar certo. O futuro mostra-se incipiente, danoso e algoz.

Envelhecer é privilégio, contudo, para que de fato o seja, precisamos pensar com afinco no futuro que hoje construímos. Indo, tanto quanto possível, além de garantir teto e refeição, porém, lutando pela possibilidade de descansar com conforto da batalha diária pelo mínimo necessário à existência.

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