“Por que os projetos de música não podem só dar aula de música?” Pretos na cena e não na cela

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
10 min readAug 28, 2022

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“Queridos pais e responsáveis,

Chegou ao nosso conhecimento o questionamento que dá título ao texto, a fim de respondê-lo e sanar qualquer dúvida que se apresente, segue o escrito abaixo:

Os projetos da música, como o próprio nome já diz, se apresentam como projetos, ou seja, propostas pedagógicas que propõem o alcance de objetivos pedagógicos através de diversas metodologias de aprendizagem. E quais objetivos são esses? Em sua maioria eles nem sempre são de cunho musical.

Para que os projetos se sustentem através de verbas públicas, seus objetivos devem ser amplos e abrangentes. No caso do ensino da música é sabido que o contato com esse tipo específico de arte ocasiona:

- Melhora na cognição;

- Melhora na fala;

- Melhora na concentração;

- Desenvolvimento neuropsicomotor;

- Desenvolvimento da lateralidade;

- Desenvolvimento da motricidade;

- Melhora da leitura;

- Desenvolvimento do raciocínio lógico;

- Desenvolvimento da afetividade;

(fontes no final do texto)

E muitos outros benefícios. Há pesquisas que associam a aprendizagem de um instrumento ao tratamento do Alzheimer! Voltando aos objetivos, eles vão desde sim, aprender música propriamente, com todos os citados benefícios acima, até democratizar o acesso à arte e desenvolver o senso crítico. Com tudo isso posto, as aulas de música não se reduzem à mera acrobacia com o instrumento. Alunos e alunas não são “adestrados” em uma série de movimentos específicos. O instrumento, como outra vez o nome já diz, é uma ferramenta para a obtenção de algum objetivo artístico, através de som. Afinal, queridos pais e responsáveis, quando falamos de música, também falamos de arte — e aqui, espero que entendam, os horizontes da conversa se alargam.

Falar da arte é deter-se sobre os fazeres culturais que nos identificam e sustentam nossas ações, sejam elas laborais ou não. Falar de arte é alongar-se sobre os motivos pelos quais não só fazemos o que fazemos, como fazemos e porque fazemos.

É pensar sobre possibilidades outras e conjecturar sobre o inimaginável. Em suma, é permitir-se o desconhecido sem temê-lo. Entendemos que aqui talvez temam pela segurança dos seus filhos. Afinal, o desconhecido assusta, todavia, também aguça a curiosidade.

O contato com a diversidade, com outras possibilidades de ser e existir, amplia nosso horizonte de experiências. Se de certa maneira reafirmamos a nós quem somos, também podemos nos questionar sobre nossas identidades. Esse contato com o diferente nem sempre se dará nos seios das nossas comunidades, porque as escolhemos não pelas suas diferenças, mas pelo seu alinhamento com os nossos hábitos e crenças.

Será que crescer somente ao redor de espelhos nos fará de alguma maneira atingir com plenitude as possibilidades daquilo que podemos vir a ser? Receio que não.

Outra coisa. É parte essencial dos projetos, queridos pais e responsáveis, o PPP (Projeto Político Pedagógico). Acalmem-se! Isso não tem nada a ver com política partidária. Contudo, tem muito sim a ver com ideologia. Com ideias que contemplem o respeito às diferenças.

Em suas mais diversas formas de ser. Afinal, os projetos financiados através de verba pública são para todos. São para todos, todas e até mesmo todes. Porque se reduzirmos os projetos a só “dar aulas de música”, eles não fariam as transformações sociais que tanto necessitamos.

Algumas músicas continuariam sendo para o deleite de uma suposta “elite” e outra para a alienação do “populacho”. Entendemos que, infelizmente, ludibriados — enganados por políticas públicas que são tudo, menos públicas -, criou-se a ilusão de que há certa doutrinação na educação. A fim de que se conduza o educando para determinadas conclusões. Entretanto, só se educa para a liberdade de pensamento dando acesso ao contraditório. Ao que nem sempre é branco ou preto. De outra forma, quando não se educa tendo em vista a diversidade, doutrina-se.

Se mesmo com tudo isso posto resta dúvida e receios sobre os processos educacionais do projeto, há outra forma mais simples de resolver. Acompanhem todas as aulas de seus filhos. Joguem-se na educação. Não faltem uma aula. Sejam os primeiros a chegar e os últimos a sair.

Façam todos os exercícios propostos pelo professor. Aprendam juntos. Sirvam de modelo. Filtrem e facilitem a informação. Depois disso, tenho certeza que a sua opinião sobre a educação no projeto mudará. Não se omitam, construam com a gente.

Educação é projeto coletivo e sempre o será. Então sim, os projetos de música não podem só dar aula de música, porque ao retirar da música sua capacidade crítica e a vivência com a diversidade, amputa-se da arte uma potencialidade.

Ansioso em contar com a sua participação,

Prof. Ivanildo”.

Colonialismo

Foto de Oladimeji Odunsi retirada de Unsplahs

O texto acima tenta de alguma maneira responder ao furor de alguns pais que, na sanha por uma educação limpinha, privam os filhos do contato com a diversidade. Isso posto, agora discutamos as propostas político-pedagógicas dos projetos.

Trazer a diversidade a baila é o mote de algumas instituições sociais. Tratar das diversas vulnerabilidades, ir ao encontro dos mais necessitados e democratizar o acesso são todas as “aspirações altas nobres e lúcidas” — como diz Campos na Tabacaria — que tentam prover o educando de ferramentas que lhe possibilitem melhores condições para enfrentar a luta das desigualdades.

Entretanto, indo além dessa suposta virtude moral inabalável, já que projeto social não é catequese, faz-se necessário certa crítica, não no intuito de derrubá-los, mas sim de ajudá-los em sua vocação.

Retomarei aqui um conceito já visto em outro texto como “Pacto narcísico nos processos de ensino aprendizagem”. Por lá digo: “O professor bancário, que deposita o conhecimento, dá lugar ao professor narcísico, que deseja fazer do aluno uma cópia de si.”.

Os professores trazem consigo o instrumental político-pedagógico do projeto. Se para eles não é fácil fugir do ímpeto narcísico, colonizador, que dirá aos instrumentistas alheios às problemáticas educacionais.

Racismo

Essa é só a ponta do iceberg que expõe os processos coloniais que nos perpassam. Uma das violências pungentes que vitimizam os nossos, quando falamos das problemáticas da américa latina, é o racismo. Essa semana o músico Luiz Carlos da Costa Justino foi outra vez conduzido à delegacia por um crime que não cometeu.

No dia 2 de setembro de 2020, Justino foi preso, acusado de roubo, tendo conseguido comprovar que não estava no local do crime após esforços da sua família, comunidade e da Orquestra da Grota. Justino foi solto e desde então vive às voltas com o terror da segurança pública. Com receio de sair de casa, ser parado pela polícia e ter que provar outra vez que “não é bandido, um vagabundo”.

Foto retirada do Instagram de Luiz Carlos Justino

https://www.instagram.com/p/Chny276A3LJ/?hl=pt-br

Essa é a violência institucionalizada que nos persegue. Aqueles que deveriam nos defender, nos atacam. Lembrando que a existência dessa polícia militarizada, constantemente em guerra, parte do pressuposto da existência desse inimigo interno que deve ser combatido.

Quem são esses inimigos? Quais os crimes que eles fizeram? Esses inimigos são os “marginalizados”. São “os pretos nas ilustrações”, como diz Caeiro em “Num meio dia de fim de primavera”. Esse foi o primeiro crime de Luiz Carlos da Costa Justino, ser preto. A cor da pele não é monopólio de Luiz Carlos. Violência e racismo institucional são apanágios costumeiros do povo preto.

Lembro de Evaldo Rosa dos Santos e Luciano Macedo. Evaldo teve o veículo confundido pelo exército com outro veículo que há pouco fora roubado. Qual a condenação? Oitenta tiros, de aviso. Luciano, catador de reciclagem que foi tentar ajudá-lo, também foi alvejado.

Lembro também de Kathlen Romeu, morta aos 24 anos, grávida, por bala “perdida”, na verdade uma bala achada, endereçada à população preta. Segundo a Unicef, uma média de 31 crianças, de 10 a 19 anos, foram mortas no Brasil por dia em 2015. Segundo a ONU, a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil.

Portanto, a violência não é apanágio exclusivo de Luiz Carlos. O que ele sofre passamos todos. Luiz teve apoio de seus amigos, familiares, comunidade e projeto. Outros com menos sorte, contaram com situações irreversíveis.

Nas redes abundam as matérias que contam a história de Luiz Carlos, do músico que conseguiu provar sua inocência porque estava tocando, falam do “erro” do judiciário. A polícia que o prendeu essa semana faz parte do programa “Segurança presente”. Pergunto, segurança para quem? Luiz Carlos não se sente seguro, outros tantos também não.

Racismo “estrutural” é redundância. Não há discriminação que não provenha das raízes do sistema. Repudiar o que sofre nosso colega músico e depois continuar a vida, tendo o privilégio de se esquecer que a cada 23 minutos um jovem preto é assassinado no Brasil, é apanágio da branquitude.

Repudiamos veemente o que aconteceu com Luiz Carlos nas redes, afinal isso dá like. Passamos a suposta ideia de uma classe musical unida em torno da defesa dos mais necessitados. Afinal isso também dá like. E a despeito disso, não discutimos guerra às drogas, desmilitarização da PM, extinção da justiça militar, superlotação do sistema carcerário e abolicionismo penal, enfim, mudanças de fato estruturais que permitiriam a extinção dessas diversas violências. Posamos de Isabel assinando a abolição, repudiando o racismo, fazendo as pazes com o que há de mais atual nas trends da “moral e bons costumes”.

Por isso, os projetos de música não podem só dar aula de música. Por isso, os projetos sociais não podem ser mero aglutinador de ações culturais. Projetos que queiram ser de fato projetos, não podem se permitir a superficialidade política. Devem abraçar sem temor a defesa das lutas.

A foto acima faz parte do projeto Favelagrafia, da agência de publicidade NBS. O projeto tenta reverter a visão de que na favela só há violência. Contudo, façamos um exercício imaginativo, vamos além. Supondo que agora o próximo passo de nossa guerra às drogas será a criação de projetos de música, lazer e esporte para as comunidades suscetíveis à violência. Supondo que esses projetos sejam exitosos e que após longos anos de investimento ininterrupto tenhamos uma safra de bons músicos. Onde eles trabalharão? Troquemos a música pelo esporte. Pergunto, onde os assistidos terão o pleno desenvolver de suas habilidades?

Dizer que a arte, a cultura, o lazer e o esporte salvam, é fato. Sim, mas salvam de quê? Salvam da violência que comete o próprio sistema. Vamos à Brecht. No texto “Se os tubarões fossem homens”, o autor fala das benesses criadas pelos tubarões para o bom usufruto dos peixinhos. “Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. […] Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam rejeitar toda tendência baixa, materialista, egoísta e marxista, e denunciar imediatamente aos tubarões aqueles que apresentassem tais tendências.” ( BRECHT, Bertold, 1950. Se os Tubarões fossem homens).

Projeto social sem proposta radical de mudança política paradigmática, age como artífice do capital, sendo suposto remédio para a doença criada pelo sistema que o sustenta.

Precisamos sim mudar a estatística. E o caminho para isso vai além das nossas ignóbeis notas de repúdio. Precisamos que a cada 23 minutos um jovem preto não seja assassinado, mas tenha condições plenas de se desenvolver. Precisamos que a cada 23 minutos jovens negros sejam livres para ir e vir, sem que sejam tratados como suspeitos. Precisamos que a cada 23 minutos jovens negros tenha a chance de nascer. O que não aconteceu com a criança de Kathlen Romeu.

Que a cada 23 minutos jovens negros possam estar em cena, como em uma ópera com um elenco todo negro, iniciativa do coletivo Ubuntu Brasileiro que estreará por esses dias. Anseio pelo dia que pretos estejam em cena, não vitimados pela violência do Estado, mas fomentando cultura. Enfim, anseio por dias que pretos estejam em cena e não na cela.

Referências acessadas em 28/08/22:

https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/a-cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia.ghtml

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/12/saiba-quem-sao-as-seis-criancas-mortas-pela-violencia-no-rio-de-janeiro-em-2019.shtml

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-julga-12-militares-do-exercito-por-morte-de-musico-com-80-tiros-no-rio/

https://br.noticias.yahoo.com/inocentado-pela-justica-musico-volta-a-ser-preso-apos-mandado-nao-ser-retirado-de-sistema-140828306.html

https://oabniteroi.org/nota-de-repudio-contra-prisao-indevida-de-luiz-carlos-justino-por-falha-no-sistema/

https://www.tudoepoema.com.br/alberto-caeiro-viii-num-meio-dia-de-fim-de-primavera/

https://extra.globo.com/noticias/rio/foto-de-jovens-armados-com-instrumentos-faz-parte-de-projeto-em-favelas-do-rio-20291250.html

https://www.marxists.org/portugues/brecht/ano/mes/tubaroes.htm

https://www.culturagenial.com/poema-tabacaria-alvaro-de-campos-fernando-pessoa-analisado/

https://www.unicef.org/brazil/homicidios-de-criancas-e-adolescentes

https://andi.org.br/infancia_midia/como-a-musica-ajuda-no-desenvolvimento-cognitivo-das-criancas/

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