Prova

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
6 min readApr 23, 2023

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Por esses dias preparo as crianças para uma prova, dessas provas grandes, importantes. Não é prova da escola que, dependendo da prova, também dá medo, é uma prova artística. Você já fez uma prova artística com banca? Como diz meu colega colunista Samuel, qual foi a última vez que você subiu ao palco da sua própria vida? Pois bem, meus pequenos grandes artistas estão às voltas com “a prova” e, logicamente, eu estou na selva da desesperança com eles.

Imagem de Ning Shi retirda do Unsplash

Nos preparamos há meses. Escolhemos o repertório acessível dentre as peças de “confronto”. Já pensaram, colegas músicos, na violência que carrega o termo “peça de confronto”, peça de confronto parece espada, escudo e arma, mas não, peça de confronto é a peça que tocarão todos os candidatos. É a peça pela qual confrontar-se-ão as habilidades artísticas de todos os sujeitos. Estou assim com as crianças, preparando-as artisticamente para o confronto das peças.

Tive um professor que adorava analogias com futebol. “Jogo é jogo, treino é treino”, dizia ele, falando dos sentimentos evocados na performance, ou, ao diferenciarmos o momento que estamos sós com nossos instrumentos, do momento que tocamos para alguém. Quando alguém lhe dizia que em casa a execução fora melhor, ele franzia o cenho, dizia que em casa nossa percepção conosco é falseada. No quarto todo mundo é solista, na frente do professor a máscara cai. Todo mundo tem coisa para arrumar, só a bailarina que não tem.

Volto à preparação para as provas. Tudo começa pela conscientização da gravidade da situação. É uma prova, digo, portanto vocês precisarão mostrar-se aptos ou não a estar no conjunto. “Mas, como é?” Perguntam. “Haverá um edital, com todas informações pedidas, e o mais importante, o que vocês devem tocar para admissão.” Respondo. “Sei que habitualmente eles pedem isso, isso e isso”. Os olhos fundos e demasiadamente abertos, atrelados ao pouco movimento de lábios que em geral não cessam, demonstram preocupação. Pernas irrequietas. Silêncio. Haverá também uma bolsa. “Uma bolsa, de quantos? Por quanto tempo?”. O dinheiro anima.

Do canto do olho observo os ausentes. Aqueles com receio de subir ainda no palco da própria vida. Em suas faces é como se eu pudesse ler somente a palavra prova, não ouviram nada depois disso. Converso em particular, “você tem condições, vamos lá, eu ajudo”, “ok, vamos tentar”, responde um dos ausentes de si sem tanta excitação.

Lemos a peça de confronto. Falo do compositor, explico, esmiuço. Fazemos quase um trabalho de análise, dissecamos a peça. No começo, muita informação. Eles guardam pouco, para mim, que repito isso à exaustão, é fácil. Para eles, que precisam lidar com esse tipo de repertório pela primeira vez, não é tão simples.

Aos poucos a peça que não saía do início ganha conteúdo e forma. Já tocamos mais que só os primeiros quatro compassos exigidos na prova. Fazemos a peça inteira. Agora é hora do confronto: corrigir os erros. “Aqui é um trecho complicado, todos deixam esse dó sustenido baixo”. Anoto na partitura, tocamos de novo e como todos, eles deixam o dó baixo. Corrijo. Tentamos novamente, melhora.

Para cada um a dificuldade aparece de uma maneira, um tem severos problemas com ritmo, outro com afinação. Outra tem uma postura impecável, mas um vibrato questionável. Outro, mesmo já tendo sido advertido várias vezes sobre o uso do vibrato, não o faz, diz que não sabe. Um tem um som bonito, afinação e ritmos também interessantes, mas a postura… não é só estética, é uma bomba relógio de onde virá tensão.

Fazemos aula atrás de aula. Em casa, as paredes já começam a enjoar do repertório. A coisa vai ficando melhor, vai tomando rumo. Contudo, advirto, jogo é jogo, treino é treino. Tocam para um colega professor, pois, já habituados ao escrutínio dos meus olhos e ouvidos, é hora de apresentar-se ao desconhecido de outras avaliações. Alguns, o mesmo problema: “Você já ouviu falar do metrônomo?” A cabeça abaixa, os lábios se contraem e murmuram um envergonhando sim. Suspiro. Se eu já disse isso tantas vezes e outra pessoa agora está falando, o que estamos fazendo de errado?

O masterclass funciona como um simulado da prova. Damos nota e feedback. Pego no pé daqueles que não ficaram até o final, ressalto a importância de aprender a ouvir a aula dos colegas. Dissipamos um pouco a tensão, mas jogo é jogo… Ainda não é a prova.

Um dia, antes de uma apresentação, um desses que agora se prepara para o teste, perguntou-me: “por que eu tremo quando vou tocar? Antes eu não tremia…” Suspiro, penso em possíveis respostas. Conjecturo mais um tempo e respondo, “agora você se importa mais e quanto mais a gente se importa, mais nervoso a gente fica e daí a gente treme”. Ele suspira, se dá por vencido momentâneamente. “Mas vamos lá, tem também técnica para parar de tremer”.

Além da prova tem a vida, que de vez em quando, como dizem os cristãos, já é também uma prova. Têm as provas da escola. Tem a adolescência e o rompimento com as projeções do que mamães, papais e responsáveis esperam da gente, pelas escolhas das nossas próprias vontades. Um mundo de coisas. Os dias passam e a prova, que um dia foi só discurso, agora tem hora e data marcada com o nome deles.

Quinze minutos para cada. Quinze minutos para você se provar, para provar para banca o que você sabe. Depois de mandar o documento com a data e horários da prova no grupo, figurinhas aludindo à tensão e medo invadem a cena. Continuamos nos preparando. Antes do jogo oficial, o treino é um amistoso. Fazemos um último simulado. Tem gente repetindo os mesmos erros de meses atrás, tem gente com erros novos. Tem gente que só treme, porque se importa muito.

Digo: “entendo que a situação da prova seja estressante, mas faz parte da vida do músico de orquestra. Adoraria defendê-los disso, mas não posso, o que posso é ensinar como se preparar. Fulano, camisa de time não é roupa para prova. Beltrano, o nome do compositor é x, não y, está escrito, cuidado. Sicrano, estou falando há meses para você colar as partes, hoje as folhas caíram, e se acontecesse na hora da prova?” No ar a tensão é quase palpável.

Em casa penso na injustiça disso tudo. Na educação falamos com preocupação dessa violência linguística que permeia nosso vocabulário. Viviane Mosé em “A escola e os desafios contemporâneos” diz: “A educação brasileira, especialmente em função da herança do regime militar tornou-se refém de um sistema disciplinar que trata como ‘grade’ o currículo, como ‘disciplina’ os conteúdos, como ‘prova’ o dispositivo de avaliação;”.

Quando — me pergunto, ao invés de brigar com tanto afinco pela perpetuação das injustiças de um sistema exíguo de oportunidades — passaremos a brigar pela proposição de um sistema educacional, sobretudo no âmbito artístico, que seja profícuo em possibilidades reais de distribuição de renda e acesso? Um sistema que permita aos vulneráveis não só o início, mas, se quiserem, o aprofundamento de suas habilidades, não só através de esparsas e pontuais iniciativas? Quando, enfim, poderemos ensinar os oprimidos a trafegar pelo fluir do mar artístico, ao invés de ensiná-los só a lutar contra a opressão?

Enquanto isso não acontece, preparo meus pequenos para as provas da vida, tendo comigo cada vez maior uma crença no que diz Rubem Alves: “e se os vestibulares fossem substituídos por sorteio?

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