O Capitalismo é Individualista?

J.
Ácrata
Published in
11 min readJun 25, 2017

“O capitalismo é individualista, o socialismo é coletivista.” Essa frase é dita frequentemente, tanto por defensores do capitalismo, tanto por pessoas não alinhadas a alguma ideologia política específica, e até mesmo por alguns defensores do socialismo. Liberais e conservadores também acusam socialistas de, ao defender um sistema “coletivista”, defender uma “tirania” do coletivo sobre o indivíduo.

Se “individualismo” for definido como “egoísmo”, ou indiferença em relação ao social, pode-se então dizer que o capitalismo é, de fato, individualista. Se “coletivismo” for definido como algo que se preocupa com o bem coletivo, então o socialismo seria, de fato, coletivista. Porém, ao se fazer uma análise mais detalhada, indo além de conceitos superficiais ou equivocados do individualismo, a linha entre “individualismo” e “coletivismo” no socialismo se torna turva, e pode-se perceber que o socialismo é mais individualista que o capitalismo, e pode-se ver o capitalismo como sendo, na verdade, um sistema anti-individualista.

Individualismo como defesa dos direitos/liberdades individuais

Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, cultivando a terra, fazem viver os outros. — Voltaire

Uma primeira definição de individualismo pode ser a de individualismo como defesa dos direitos e liberdades individuais.

Muito do discurso pró-capitalista se baseia no que seria a “liberdade individual” ou “direito natural” à propriedade privada. Mas, enquanto a propriedade pessoal é realmente um direito de todo indivíduo, a propriedade privada implica na restrição das liberdades individuais da maioria da população. A diferença entre estas duas formas de propriedade pode ser vista nesse texto.

No capitalismo, há invariavelmente a separação entre aqueles que possuem a propriedade privada (plantações, fábricas, escritórios; ou seja, os meios de produção) e aqueles que não a possuem. Como os meios de produção são essenciais à sobrevivência, a única opção restante é vender sua força de trabalho àqueles que possuem a propriedade. Mas o trabalhador não possui qualquer liberdade individual no local de trabalho. Todas as regras e decisões são definidas pelo proprietário, ou por um restrito grupo administrativo no topo da hierarquia empresarial, sem qualquer envolvimento daqueles que permitem que a empresa exista em primeiro lugar, os empregados, pois, como nota Mikhail Bakunin em O Sitema Capitalista: “O Capital nada é se não for fertilizado pelo trabalho”. Coloquemos um grupos administrativo em uma fábrica vazia, e vejamos quanta riqueza gerarão.

É usado pelos defensores do capitalismo o argumento de que, caso o trabalhador não queira acatar as ordens impostas pelo(s) proprietário(s) da empresa, ele simplesmente pode deixar a empresa. Mas deixar seu emprego significa não ter garantia nenhuma de que irá conseguir outro, e ser privado de seus meios de sobrevivência. E, mesmo que o indivíduo encontre outro emprego em outro local, ele será organizado da mesma forma, com uma hierarquia restrita impondo ordens de cima para baixo. Dessa forma, a única opção restante é: obedecer as ordens dos proprietários, ou sofrer por não ter como sobreviver. Como exatamente um sistema assim preza pelas liberdades individuais?

É também dito que a propriedade e o poder hierárquico seriam um “direito” dos capitalistas, por eles terem “investido” e “se esforçado” para ter a propriedade. Esse argumento cai por terra já com a constatação de que muito da propriedade e riqueza é conseguida através de herança, ou então de práticas como a especulação financeira, algo que passa bem longe da definição de “trabalho duro”. E, mesmo que alguém vá assumir certo grau de risco pessoal para exercer poder sobre outros, isso não justifica o poder. O proprietário pode ter investido seu dinheiro para conseguir a propriedade, mas isso não altera o fato de os trabalhadores serem o motor primordial da empresa, que não existiria se não fosse pelo seu trabalho.

É curiosamente irônico o fato de liberais dizerem que um sistema com a intervenção ou o planejamento central do Estado sobre a economia seria uma “tirania” sobre os indivíduos e infringiria a “liberdade econômica”, mas defendem um sistema em que as decisões nos locais de trabalho são tomadas centralmente por um proprietário (ou um pequeno grupo de proprietários) e impostas sobre todos os outros indivíduos que compõem aquela empresa. Muitos também exaltam a existência de um sistema (aparentemente) democrático politicamente, mas defendem um sistema autoritário nos locais de trabalho.

O socialismo libertário, ao eliminar a propriedade privada sobre os meios de produção e substituí-la pela autogestão, isto é, a gestão democrática dos locais de trabalho por aqueles que os utilizam, fará com que as liberdades individuais sejam devidamente respeitadas na esfera econômica.

É dito que essa gestão coletiva irá gerar uma “tirania do coletivo sobre o indivíduo”, onde os 51% dominantes vencerão os outros 49% por pura força da maioria. Bem, mesmo um sistema assim seria imensamente mais preferível do que o atual sistema, onde uma minoria hierárquica impõe sua vontade à maioria, mas, como o youtuber Libertarian Socialist Rants demonstra nesse vídeo, a democracia direta anarquista é um processo de busca do maior consenso possível, ao invés de uma simples vitória da maioria dos votos.

Há também os direitos individuais. Os (neo)liberais se vangloriam afirmando serem os herdeiros da tradição liberal iluminista, o chamado liberalismo clássico, mas traem totalmente os ideais fundadores desta escola de pensamento.

Um dos preceitos mais básicos do iluminismo era o de que os seres humanos possuem direitos inalienáveis, os chamados direitos naturais, que deveriam ser garantidos pela sociedade. Mas, enquanto os liberais atuais prezam incessantemente pelo direito à propriedade privada, esquecem, e ativamente desprezam, todos os outros.

Foi na Revolução Francesa, inspirada diretamente pelos ideais iluministas, que se formulou a ideia de que deveria existir uma educação gratuita e universal para todos os indivíduos. Mas, traindo esse princípio, os defensores do capitalismo apoiam governos que sucateiam não só a educação, mas todo o setor de serviços públicos, para então depois defenderem a privatização destes serviços com o argumento de que o Estado seria “ineficiente” e não conseguiria provê-los.

Mas não só no direito à educação, mas toda vez que vemos os ditos liberais tentarem justificar o fato de milhões de seres humanos viverem em condições miseráveis, estamos vendo-os desprezar explicitamente as liberdades individuais. Ao tentar justificar o fato de grande parte da população não possuir acesso a direitos básicos como saúde, moradia de qualidade, alimentação de qualidade, informação, um trabalho que traga satisfação pessoal e outras necessidades básicas de todo ser humano com desculpas patéticas e cínicas como “eles podem subir socialmente se trabalharem duro”, estamos vendo os que se auto-denominam defensores do individualismo negando as liberdades que eles dizem defender a vários e vários indivíduos.

Para o (neo)liberalismo, o “libertarianismo”, e outras vertentes de direita, todas as liberdades são negativas. Isto é, todas se baseiam em uma simples não intervenção da sociedade sobre o indivíduo. Dizer que você possui o Direito à Vida em termos de liberdades negativas, por exemplo, quer dizer que você tem o direito de “não ser morto”. Ter um direito à vida seria simplesmente ter o direito de outros não interferirem em sua vida (nesse caso, não tirarem sua vida). A questão é: as liberdades negativas são uma condição necessária, mas não suficiente para a realização das liberdades individuais. Alguém que seja deixado para viver em condições miseráveis, mal conseguindo sobreviver, em termos negativos, não está tendo seu direito à vida violado. Mas está muito claro que isso é uma violação do direito à vida.

Para a realização das liberdades individuais, é necessários que sejam também garantidas as liberdades positivas, ou seja, que os indivíduos possuam as condições para a plena realização desses direitos e liberdades. Assim, afirmar que alguém possui o Direito à Vida é também afirmar que possui o direito a ter as condições necessárias a sua vida (água, alimentação, moradia etc.) asseguradas. Mas somente o necessário para a sobrevivência não realiza plenamente o direito à Vida. É necessário assegurar também aquilo que é essencial a uma vida humana: Educação, saúde, informação, e um ambiente social em que a comunidade respeite o indivíduo, e o indivíduo respeite a comunidade. Somente em um ambiente social assim os seres humanos podem gozar plenamente de seus direitos, direitos esses que são ativamente desprezados no sistema capitalista.

E se o indivíduo possui seus direitos mais básicos negados, falar de todos os outros direitos individuais se torna inútil. Os direitos só podem ser exercidos plenamente quando os direitos mais básicos, como a saúde e a moradia, estão sendo respeitados e garantidos. Sem eles, direitos como a “liberdade de expressão” se tornam fúteis. Como alguém que está morrendo de fome na rua pode exercer seu direito de “liberdade de expressão”? O que os liberais e outros defensores “individualistas” do capitalismo não percebem é que todos os direitos individuais estão interligados, o desrespeito a um envolve o desrespeito ao outro. Ninguém pode ter o direito à vida sem ter o direito à saúde, nem ter o direito à saúde sem o direito à alimentação, etc. E eles também estão ligados à sociedade. O indivíduo não existe em um vácuo alheio à sociedade. Os direitos individuais só podem ser respeitados se a organização social permitir isso.

Ao afirmar com toda convicção o “direito natural” à propriedade privada (para uma minoria da população), mas dispensar todos os outros, os defensores do capitalismo mostram que sua defesa da propriedade está mais próxima da defesa feudalista do “direito divino” do poder dos reis do que do humanismo iluminista.

Individualismo como livre expressão do indivíduo

“Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa é a maior realização.” — Ralph Waldo Emerson

“Falando de maneira geral, você é livre até seus cinco anos de idade. Então você vai para a Escola, e começa a ser demandado e dissolvido. Você perde toda individualidade que tem. Se você tiver o suficiente, você pode manter uma parte dela. Mas a maioria das pessoas não tem o suficiente. Então elas se tornam espectadores de game shows e coisas do tipo.” — Charles Bukowski

Outra visão sobre o individualismo pode ser também a visão dele como defesa da livre expressão da personalidade do indivíduo. A liberdade de viver sua vida de acordo com suas convicções e a liberdade de fazer-se a si mesmo, realizando todo seu potencial individual e humano.

Imediatamente, o que se nota, é que isso é negado à grande maioria da população. Primeiramente, os mais pobres, ao terem suas vidas tomadas pela corrente da necessidade, uma necessidade imposta pela sistema capitalista, que se sustenta em suas costas e suga os frutos de seu trabalho, são privados de darem os rumos que querem a sua vida, pois são forçados a viver em condições de miséria, tendo de lutar para sobreviver, enquanto algum “individualista” liberal irá dizer que, caso eles se esforcem um pouco mais (como se todo o esforço diário em uma rotina extenuante não possuísse valor algum), podem viver em condições melhores.

Mas mesmo nos indivíduos da chamada “classe média” são impostas limitações a qualquer forma verdadeira de individualismo. Primeiro, são forçadas a obedeceram uma hierarquia restrita e autoritária no trabalho. Todo aspecto de seu comportamento é regulado pelas regras impostas por aqueles no topo da hierarquia. Deve-se realizar o trabalho de uma certa forma, porque impõem isso a você, e, caso você não obedeça, você perde seu emprego. É uma relação baseada na violência estrutural. Aquele que realiza o trabalho perde todo controle individual que poderia ter sobre seu próprio trabalho, em nome das ordens daqueles que possuem a propriedade privada. Como era mesmo o discurso daqueles que defendem este sistema mesmo? Ah, sim, as chamadas “liberdades individuais”. Quão irônico. Se o indivíduo consegue manter ainda alguma liberdade criativa sobre seu trabalho, ela é ainda limitada pela vontade daqueles em postos mais altos na hierarquia.

Muitas vezes também o indivíduo pode buscar um trabalho pelo qual não possui qualquer afinidade, mas que paga um salário maior, na esperança de que esse dinheiro lhe traga alguma forma de realização pessoal. Ou mesmo também pode ter um emprego que se baseia simplesmente na repetição quasi-mecânica de tarefas burocráticas. Em ambos os casos, ele fica preso em uma rotina ensossa que o força a cumprir uma função apenas por necessidades criadas pelo sistema econômico (como o salário ou a burocracia interminável das firmas capitalistas. E se você acha que o setor privado é sempre eficiente e não possui burocracia, tente fazer qualquer operação em um banco).

E também há as duas principais forças que buscam a eliminação da individualidade: a mídia e a Escola.

A Escola da modernidade estatal-capitalista, com seu sistema uniformizante, que busca ensinar e testar todos os estudantes de forma igual, independente dos talentos, aptidões e escolhas individuais de cada um, com a assimilação passiva de conteúdos e a mera repetição dele em provas padronizadas, é uma força que age desde a infância da destruição da individualidade de seus alunos. O modelo prussiano no qual as escolas modernas são baseadas foi criado intencionalmente para o propósito de tornar o estudante passivo e obediente às autoridades. Na sociedade capitalista, afinal, a Educação não é vista como uma forma de desenvolver as capacidades intelectuais e o pensamento crítico do indivíduo (como era vista, por exemplo, na Antiguidade Clássica e no Renascimento), mas é vista como um mero meio para conseguir mais espaço no mercado de trabalho capitalista. A Escola não serve ao propósito de engrandecer e desenvolver o indivíduo, mas de transformá-lo em uma mercadoria para ser adquirida pelos detentores da propriedade.

No caso da mídia, a destruição da individualidade se dá através da propaganda.

Todas as pessoas são absolutamente bombardeadas por propagandas a cada minuto do dia, sobretudo na televisão, e todas elas conhecidamente tentam se usar de artifícios psicológicos para conseguir um impacto com a audiência. E as propagandas sempre vendem uma identidade padronizada. Elas vendem um padrão de beleza e um “corpo ideal” inatingível, e buscam com que todos tentem se enquadrar nesse padrões. Mas isso não se resume apenas a um controle da imagem corporal. As propagandas não vendem simplesmente produtos. Elas também vendem promessas de satisfação dos desejos humanos mais básicos. Em sua mensagem geral, além do produto, as propagandas prometem amor, amizade, realização pessoal, sexo, felicidade, magnetismo social etc. Na propaganda, um carro não é apenas um carro. Ele é um símbolo, uma promessa de status social, a venda de um estilo de vida. É a promessa da expressão de sua personalidade, de sua individualidade através dos produtos que você compra. No capitalismo, você é o que você compra. Mas o que você compra é um produto industrial produzido em massa, e que busca ser vendido para o máximo de pessoas possíveis. Assim, ele pressiona todos os indivíduos para se enquadrarem em um padrão que ele mesmo impõe. Uma destruição completa da individualidade.

Conclusão

“Se um homem marcha com um passo diferente de seus companheiros, é porque ouve outro tambor.” — Henry David Thoreau

“De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro mas perder sua alma?” — Marcos 8:36

Por trás de todo o discurso ideológico daqueles que buscam defender o capitalismo se baseando nas chamadas “liberdades individuais”, na realidade está um discurso vazio, que reconhece como liberdade individual apenas a propriedade privada, e que geralmente se baseia simplesmente na defesa de um egoísmo cego e um desprezo pelo coletivo.

Mas os defensores do socialismo, também, ao aceitarem acriticamente o rótulo de “coletivistas”, abrem mão de mostrar como o discurso ideológico dos pró-capitalistas é vazio, e como o socialismo libertário seria muito mais positivo para a realização das liberdades individuais. Essa divisão entre “individualista” e “coletivista”, na realidade, é apenas uma criação ideológica dos ditos liberais, que busca caracterizar o socialismo como uma “tirania do coletivo”.

O que cabe buscar, enfim, é uma sociedade baseada na Liberdade e na Autonomia. Autonomia pessoal, na forma das liberdades individuais, e autonomia coletiva, na forma da democracia. Somente assim teremos uma sociedade que preza tento pela liberdade do indivíduo, pela igualdade, e pelo bem coletivo, coisas que estão fortemente ligadas entre si.

E o capitalismo, certamente, não é esse sistema.

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