A monografia self-service e o lixo acadêmico no Direito

A sofomania que invade a academia jurídica.

Matheus Galvão
Advogácidos
5 min readNov 19, 2017

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Sobre restaurantes e opções

Existem duas formas de se servir em um restaurante self-service. Você pode entrar, observar o que é servido e fazer uma seleção coerente para a sua refeição. Outro jeito — o que talvez seja mais comum — é ir colocando de tudo um pouco no prato e ter uma gororoba heterogênea.

Se você se serve da primeira forma, além de se sentir mais satisfeito, quando alguém perguntar o que você comeu, você certamente saberá explicar. Por outro lado, se se servir aleatoriamente ficará com a sensação de vazio e não saberá nem explicar o que acabou de comer.

Monografias (TCC’s, teses, dissertações…) também podem ser feitas mais ou menos do mesmo jeito.

Variedade limitada: muito do mesmo

Desafio você a ir a qualquer banco de monografia de faculdades de Direito. Qualquer uma. Pode ser de uma universidade pública mesmo (inclusive mestrado e doutorado). Pegue uma porção de trabalhos — entre dez e quinze — folheie, leia a conclusão e, em seguida, abra na página de referências. Eu fiz isso quando estava preparando um projeto para a seleção de um mestrado e foi uma revelação e tanto.

1. Os autores citados eram quase sempre os mesmos

2. As citações literais compunham entre 35 e 50% do texto

3. As contribuições dos autores eram quase nenhuma (texto colcha de retalho)

4. As conclusões eram “inconclusivas” (sim, é louco, eu sei)

Esse é o tipo de trabalho self-service. O autor — graduando, mestrando, doutorando — vai construindo o texto a partir de fragmentos aleatórios e que fazem (ou não) sentido para o que se escreve. Ainda assim, é possível que ele acredite que haja coerência e clareza no corpo do trabalho.

Eles procuram os textos e livros mais em voga, recortam trechos, vão parafraseando, costuram palavras como outrossim, destarte, ademais, capricham no título confuso [que soa inteligente e sagaz, quando não caem na mania dos parênteses: (re) pensando ou (in) constitucionalidade], citam um livro ou dois do orientador [porque né…] e aí têm um resultado. No final, como se num quebra-cabeça montado com peças de caixas diferentes, nem eles sabem o que escreveram.

São muitos os trabalhos parecidos. A diferenciação é apenas pela aplicação forçada de “princípios” e conceitos recorrentes a uma situação específica. Uma confusão com aparente unidade e coerência.

Manias e vícios

Quando eu escrevi meu TCC, eu tinha feito dois anos de iniciação científica. Meu trabalho foi resultado desse período de pesquisa e leitura. Como sabia muito bem o que eu queria dizer, escrevi o texto praticamente todo fluido, com pouquíssimas citações literais. A maioria delas era de paráfrases ou citações curtas de três linhas, no próprio corpo do texto. Depois que eu mostrei o trabalho a alguns professores, vários deram a seguinte orientação: “Coloque mais citações literais”.

Se eu fiz? Sim, incluí mais umas dez por desencargo de consciência e entreguei a versão finalizada.

A boa notícia? Eu fui aprovado. A má notícia? Esse é o triste retrato da academia brasileira (principalmente a jurídica).

Espantalhos e sofomaníacos

O erro começa pela obrigatoriedade de se entregar uma monografia (ou TCC). Não convence o argumento de que é preciso estimular o gosto pela pesquisa acadêmica. Isso se faz ao longo do caminho da graduação com propriedade e paciência, e deve partir mais da autonomia do estudante do que da pressão dos professores. É como o espantalho do Mágico de Oz: a iniciativa de percorrer a estrada de tijolos amarelos para pegar seu cérebro partiu dele próprio.

Além do mais, ainda sobre a obrigatoriedade, uma turma grande não poderá nunca ter uma orientação de monografia decente e adequada.

O segundo erro vem do produtivismo acadêmico. Professores que querem a todo custo orientar trabalhos e pesquisas, participar de bancas para adquirir títulos e pontuação (score) e, assim, engordar o currículo para ficar apto a ganhar mais recursos. Sinceramente, eu se eu fosse alguém que prezasse pela minha reputação, teria vergonha de assumir muitas orientações e pesquisas que eu já vi por aí. Não a toa, em 2015, a revista Nature insinuou que o Brasil produzia mais lixo do que ciência.

O terceiro erro é o da sofomania. A mania de ler muitos livros sem compreender quase nada ou nada. A academia está cheia de posers intelectuais. Leem livros apenas para terem a sensação de inteligência e ganhar repertório linguístico para as conversas em mesas de congressos e corredores de faculdade. Daí muita confusão conceitual como aquela da teoria do domínio do fato, na época do julgamento do Mensalão.

Uma das mais claras e melhores explicações sobre o que seria a sofomania é a do filósofo americano Mortimer Adler:

Montaigne falava de uma “ignorância abecedariana que precede o conhecimento, e uma ignorância doutoral que se segue ao conhecimento”. A primeira ignorância é a do analfabeto, isto é, do sujeito incapaz de ler. A segunda ignorância é a do sujeito que leu muitos livros, mas os leu de maneira incorreta. Alexander Pape os chamava, com justiça, de livrescos estúpidos, literatos ignorantes. Na história, sempre houve ignorantes alfabetizados, isto é, pessoas que leram muito, mas leram mal. Os gregos tinham um nome especial para essa estranha mistura de aprendizado e estupidez — um nome que pode ser aplicado aos literatos ignorantes de todas as eras. Eles chamavam esse fenômeno de sofomania.* (Como ler livros, p. 33)

Triste fim

O resultado de tudo isso, como eu já falei em outro texto (A academia condescendente com a mediocridade) é o amontoado de lixo acadêmico sobre o qual estamos construindo a base da nossa educação, da nossa formação universitária e da nossa ciência jurídica (se é que ela existe). Conhecimento ilusório, frágil e autorreferenciado a um modelo de produtividade e ensino frágeis, desonestos e baseados na imagem e no marketing [basta visitar a seção de Direito de uma livraria].

Tudo isso é assustador, mas duvido você não achar familiar.

O jeito é mudar a forma de “enchermos o prato do conhecimento”. Focar na disciplina, autonomia e gosto pela leitura e pelos aprendizado e entendimento reais.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Advogado. Roteirista. Entusiasta de empreendedorismo, educação, cultura, escrita criativa, e direitos culturais. Contato: matheusbgalvo@gmail.com

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