Pra quem escrevemos o quê

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
15 min readOct 16, 2019

Atualizado em 21 de outubro de 2018 às 10:29

Eu gosto de contextualizar as coisas com rap porque é algo que faz parte da minha realidade. Ainda assim, não é um ritmo com tanto poder de penetração na periferia que eu cresci. Quem olha de fora, pensa que o rap sempre vai chegar nas periferias — mas não. Com exceção de Racionais Mc's, que, sim, possuem esse poder, até mesmo grupos como Facção Central, 509-E, RZO e músicos como Rappin' Hood, MV Bill e Xis (todos da velha guarda), não penetram no Parque Lagoa Subaé, favela de Feira de Santana em que cresci. E não por terem músicas distantes ou serem piores que o Racionais (o que, obviamente, não é o caso), mas porque haviam outros gêneros que ocupavam esse espaço: pagodão (do qual ainda quero falar aqui), arrocha, brega. Obviamente que esse cenário não se reflete em toda a cidade, ou em toda a Bahia, mas foi vendo este cenário que me formei e criei minha visão de realidade.

Quando, depois de tentar escrever algumas coisas mais ingênuas e pouco interessantes, decidi que não havia nada em Feira de Santana e no interior baiano que não servisse de base pras minhas narrativas, voltei ao rap e percebi uma coisa: existem divisões. De classe, raça, credo, sexualidade, etc. Essas divisões influenciam, sim, nos atores que produzem arte no Brasil, seja ela dramaturga, audiovisual, plástica ou literária.

No rap, Djonga em seu último álbum, Ladrão, traz uma série de debates sobre levar de volta o que se consegue imergindo nos núcleos de poder. Em uma das faixas, Deus e o diabo na terra do sol, com participação do carioca Filipe Ret, duas lines se destacam:

Dizem que só falo das mesmas coisas

É a prova que nada mudou, nem eu, nem o mundo

E a outra, que tem um pouco mais a ver com o texto de hoje:

Até hoje esses caras falando de concorrência

Mas como, se jogamos em divisões diferentes?

Alguns meses, em um artigo chamado "A literatura nacional, mas nem tanto assim", eu falei sobre coisas que me incomodavam no mercado literário. Também levantei essa pauta em "Estão inventando o Nordeste. De novo" e em "Por que fazer o Nordeste sertãopunk?", de algum modo, porque não consigo ver alguns temas como desnecessários ou totalmente desconexos da realidade.

Linguagem, livro e classe

Antes de mais nada, esse não é um texto comparativo de pobrezas. Não vou ficar falando minha história de vida ou tentando me comparar com outras realidades. Acredito que isso só atrasaria os pontos que quero levantar e pouco vai contribuir com o entendimento final do material.

Eu quero falar sobre os destinos que damos ao nosso produto literário. Das coisas que acredito que, sim, precisam ser feitas — e das coisas que vejo serem feitas ou não. E, quando possível, apontar erros ou melhorias. Mas, sobretudo, falar sobre regionalismos e Brasil, de fato, nas narrativas.

Limitações da língua escrita

A gente se entende. Não digo em ter as mesmas opiniões, mas conseguimos, minimamente, saber o que, ou sobre o quê, o outro está falando dentro de uma plataforma textual como o Medium. Porque somos alfabetizados. A gente decodifica símbolos, interpreta significados, atribuímos sons aos conjuntos e unidades desses símbolos, entendemos as normativas gramaticais feitas para organizar a nossa língua escrita e interpretamos, através de narrativas, aquilo que nossos cinco sentidos (aliados a nossa cultura, espaço e construções de realidade) sentem.

Esse é um processo difícil. E, ainda que existam diversas metodologias, mais inclusivas e que facilitam, sim, a alfabetização, ler, escrever e entender ainda é pra poucos. E a culpa não é somente do governo ou nossa, mas da própria escrita: não é um processo natural, diferentemente do audiovisual. Explicar as coisas de forma escrita é sempre mais difícil que falando.

Isso não quer dizer que livros não possuam sua magia, ou que não sirvam pra transmitir conhecimento ou contar histórias, muito pelo contrário. É só uma forma de falar que a literatura precisa ser mais inclusiva. Começando da nossa própria forma de escrever. Trazer expressões, sotaques, formas de falar, elementos que mostre as diferentes regiões e estados do país de forma escrita pras pessoas representadas nas obras.

Limitações do livro

Como forma de mídia, é inegável que livros possuem barreiras. Não digo nem pela linguagem, porque existem aqueles que possuem só ilustrações ou fotografias. Digo pela sua usabilidade e custo de produção.

Livros não são caros somente para adquiri-los, mas para produzi-los. Gráfica, diagramação, revisão, capa, tradução (quando necessário), registros legais, distribuição e investimentos em publicidade e resenhas literárias são custosos. Proporcionalmente, se gasta mais para produzir um livro com menos pessoas trabalhando do que produzindo um curta-metragem, por exemplo.

P.S.: não estou dizendo que se gasta o mesmo, mas que, visto as estruturas de cada uma das mídias, existem menos pessoas trabalhando em um projeto mais custoso na literatura do que no cinema.

Limitações de classe

O sistema de classes sociais limita os mais diferentes acessos. Porque, dentro de uma estrutura capitalista, acessos custam. Aprender um novo idioma custa caro. Comprar livros custa caro. E isto já cria segregação.

Eu gosto de usar o recorte de classes porque ele engloba todas as minorias. Não importa se você é preto, LGBTQ+, mulher, nordestino, indígena ou imigrante, a partir do momento que a estrutura existe, todos estão submetidos a ela. E, partindo novamente deste ponto, a gente já consegue mensurar algumas coisas: quem são os mais marginalizados, os mais duramente submetidos ao sistema carcerário hediondo brasileiro, os que mais morrem nas ações policiais e por aí em diante.

Sobreposições de interesse

De maneira geral, a literatura interessa a todos nós (ainda que eu vá falar sobre mais adiante). E isso porque ela possui, junto com as outras belas-artes, o poder de criar realidade e imaginário. Independentemente qual seja o grupo social, alguém vai querer contar a sua história — ou a sua versão da história. E não há problema algum em fazer isso num mundo com fácil acesso a informação através da internet.

Mas as lutas minoritárias não se sobrepõem. Não somente ao sistema de classes sociais, mas entre elas mesmas. Todas as minorias representativas passaram pela mesma espiral do silêncio e perderam, por séculos, o poder de contar suas narrativas. E, hoje, querem contá-las ao mundo. Mas não existe níveis de importância diferentes, apenas lugares de fala (e lugares de fala dentro de lugares de fala). Assim, ninguém é silenciado enquanto discursa.

Quem produz a literatura nacional?

Como já linkado antes, já trouxe esse assunto aqui no Medium. Hoje, aqueles que "carregam" a literatura, seja que qual gênero for, são do eixo Sul-Sudeste. E não por má vontade de outras regiões do Brasil em fazer parte da literatura nacional, mas pelo mesmo ponto citado anteriormente: questão de classe. São duas regiões com injeção de dinheiro do capitalismo muito maior do que nas demais. Basta ver quais estados produzem propaganda a nível nacional e mantém a engrenagem da especulação financeira de pé e quais possuem os maiores índices de desigualdade sociais.

A literatura é culpada por isso? Não. Porque ela não resolve problemas que ela não cria.

O que digo é: existe aporte de capital em sete estados mais do que nos outros vinte e um. Isso impacta na educação. Somente a título de contextualização: a frequência escolar entre os jovens de 15 a 17 anos é de 89% no Sudeste e de 86% no Norte e Nordeste, a taxa de analfabetismo é de 14,5% na população acima de 15 anos no Nordeste contra 3,5% no Sul e o percentual de crianças de 0 a 5 anos que não frequenta creches ou escolas é de 24% no Norte contra apenas 7% no Sudeste. Todos estes dados estão disponíveis na Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do IBGE, com base no censo de 2010.

Não é obrigação minha, ou de um grupo, quebrar as barreiras sociais pra que a literatura chegue onde deve chegar. Mas é obrigação da própria estrutura literária levar as histórias que precisam ser lidas pras pessoas que precisam ler. Isso é: superando as limitações da língua escrita e do livro enquanto formato de mídia.

O que tem sido feito?

Existem, sim, coisas sendo feitas pela e para a literatura nacional, sobretudo no mercado independente. Obviamente que nem todas entrarão aqui, mas, a título de exemplo, vou deixar algumas (e alguns pontos que acho que podem melhorar ou ser observados com mais cuidado, tanto por escritores quanto por leitores).

Mas o que podemos ver é: a literatura nacional está buscando uma identidade. O que é bom, muito bom.

Sertãopunk

De minha parte, falo, antes do sertãopunk. E não com ar superior ou algo semelhante, mas porque ele serve de base pros exemplos abaixo. Nosso país não é uno. São 200 milhões em um território que abriga países como França, Espanha, Guiné e Mongólia inteiros. Temos, sim, uma história complicada, mas que nos rendeu uma pluralidade cultural do caralho. Não vai existir um movimento literário único pra todos os brasileiros, independentemente dos esforços. O sertãopunk é prova disto: ele fala do sertão, mas do sertão nordestino porque é neste espaço em que eu, Alec Silva e Gabriele Diniz estamos.

Ele não fala do Pantanal, do Cerrado ou da Caatinga. E não por um erro de concepção, mas por um filtro: precisávamos levantar a bandeira sobre o Nordeste e o fizemos. Por isso que, em nossa entrevista para o Portal Aprendiz, eu trago que adoraria ver um pampapunk ou uma São Paulo cyberpunk, porque sei que não é o sertãopunk quem vai resolver todos os problemas de regionalismo na literatura nacional.

Enquanto cocriador do sertãopunk, posso afirmar que estamos trabalhando na fundamentação do gênero. Desde conversas com editoras pra produção da(s) primeira(s) antologia(s) do movimento até trabalhos autorais separados (como o conto de estréia do sertãopunk, O sertão não virou mar, de Gabriele Diniz). Projetos, estes, que devem ser fechados ainda este ano e executados já em 2020.

Fantasismo

Eu, particularmente, não me enquadro entre os escritores de fantasia. Por não achar que o que eu faço é fantasia e por ter me afastado da literatura fantástica. Ainda assim, acompanho o mercado e, nos últimos dias, cresceu o debate sobre o chamado fantasismo, um movimento acadêmico-literário que propõe o insólito como termo definidor do que é feito de literatura fantástica nacional. Confesso que ainda tenho muitas ressalvas sobre a usabilidade do insólito pra definir o fantasismo, porque, dos materiais que tive acesso do assunto, além de não encontrar convenções de gênero (particularidades que definem um gênero ou movimento), não vejo nada tão diferente, assim, dentro das obras fantasistas que configure a fantasia nacional realmente como insólita. Neste sentido, trataria como insólito o realismo mágico (que também está no sertãopunk), uma vez que, além de servir de resposta à fantasia, possui características e formatos próprios.

Segundo Bruno Matangrano em thread no Twitter, o objetivo no fantasismo não é ter formatos ou convenções de gênero, mas abraçar a produção literária contemporânea em torno de uma única big idea, o que faz me perguntar, novamente, se o fantasismo abraça tudo o que é feito de literatura ficcional e se todos os escritores de ficção se sentem fantasistas.

Ainda assim, vejo no fantasismo uma tentativa de criar uma identidade da literatura fantástica (podemos chamar de litfan, também) nacional. O que, de todo o mal, não é ruim (existem pontos no livro Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo, de Enéias Tavares e Bruno Matangrano — e que fundamenta o gênero/movimento — que falam, em determinado ponto, sobre as lendas iorubás e que, pessoalmente, me feriram bastante, mas que ainda vou tratar aqui, porém, não neste artigo).

ABERST

Assim como no caso do fantasismo, levanto ressalvas para a atuação da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST). Tenho bons amigos lá, como a própria Cláudia Lemes, Mário Bentes (editor-chefe da Lendari), Vitto Graziano (editor-chefe da Luva Editora) e Adriana Chaves (editora-chefe da Monomito Editorial), acompanho e gosto da existência da associação. Mas me incomoda bastante a baixíssima presença de pessoas pretas na associação (dos listados no site, somente a Meg Mendes), assim como de nordestinos, e nos projetos que, direta ou indiretamente, fazem parte da ABERST.

Um exemplo: em Mulheres vs Monstros, livro com artigos e contos sobre personagens femininas da literatura, mitologia e cinema contra criaturas malignas (metaforizadas ou não), dos 12 autores que fazem parte (Cláudia Lemes, Clara Madrigano, Duda Falcão, Fábio Fernandes, Jana Bianchi, Rodrigo Ortiz Vinholo, Denise Flaibam, Flávio Karras, Oscar Nestarez, Tito Prates e Larissa Brasil), nenhum deles é negro.

Você pode alegar que existem poucos autores negros em atividade no mercado independente (o que não é uma verdade). Porém, o que eu vejo são pouquíssimos espaços pra nós. E não somente nós negros, retintos ou não, mas nordestinos, também. Dos eventos, no site e na página da ABERST no Facebook, nenhum deles aconteceu fora do eixo Sul-Sudeste. Nem mesmo grandes eventos literários, como a Feira Internacional do Livro de Cachoeira (FLICA) ou a Bienal do Livro de Fortaleza recebem o aporte que a associação deu a Horror Expo. O que faz me perguntar se é por uma questão puramente de logística.

Atualização: durante a Horror Expo, evento em que compareci nos dias 19 e 20 de outubro de 2019, presenciei Andrea Nunes, advogada paraibana radicada no Pernambuco, vencer na categoria "Melhor Romance Policial", um dos grandes prêmios do evento, assim como ver Marcelo Barros Correia, delegado pernambucano, ser indicado por "Mar de Fora", romance que se passa na ilha de Fernando de Noronha, no 2º Prêmio ABERST de literatura, com entrega durante a Horror Expo. Fico feliz em ver irmãos nordestinos ocupando estes espaços, mas ainda mantenho o fato de que se precisa chegar fisicamente também nos eventos literários fora do eixo Sul-Sudeste.

Revistas literárias

Particularmente, novamente, não sou consumidor de revistas literárias. Nem mesmo da Diário Macabro, mais alinhada com minha literatura (e a qual ainda penso em enviar algum escrito). E não por não gostar, somente por, às vezes, não conhecer o projeto.

Outro dia, conversando com Jana Bianchi, uma das autoras do movimento fantasista, ela me falou sobre algumas publicações, como as revistas Mafagafo, Trasgo e a newsletter da Mafagafo, a Faísca. Destas, li a Mafagafo, apenas (por falta de tempo de ler com mais cuidado todas as publicações citadas). A primeira e a segunda edições, antes de escrever este texto. Obviamente que gostei mais de alguns textos (como o do Lauro Kociuba, Não tão perto do fim, na segunda edição) do que de outros. Além de que, existe uma evolução entre a primeira e a segunda edição. E conheci uma galera massa nas edições.

Mas iniciativas assim, ao meu ver, não podem ser vistas como o ápice ou "tudo o que podemos fazer pela literatura nacional". Veja bem, não estou menosprezando a existência delas, mas, assim como eu não as conhecia — mesmo estando no mercado literário — muitos não conhecem. Porque, por mais que bem-feitas ou melhor intencionadas, estas publicações ainda possuem um target minúsculo. E não pelo estilo de um ou outro escritor, mas por, ainda que de forma genérica e simplista, não ser um formato com grande penetração ou de fácil divulgação.

E, não: não é por isso que estas publicações precisam acabar. Talvez caiba pensar em outras formas de aumentar o target das revistas, levando as publicações pra mais pessoas.

A literatura nacional é elitista?

É. E vou explicar, exatamente, o porque digo isto.

O mercado mainstream de literatura ficcional no Brasil, quase nunca, abraça escritores nacionais. Existem exemplos, como Raphael Montes (que está na lista dos mais vendidos do ano na Publishnews com Uma mulher no escuro, trabalhando na produção da duologia cinematográfica A menina que matou os pais, sobre Suzanne Von Richthofen e roteirizando, junto com Ilana Casoy, os filmes e uma série para a Netflix), Eduardo Spohr (cujo o financiamento coletivo no Catarse para a republicação de uma edição para colecionadores da Tetralogia Angélica bateu R$ 485 mil reais (95% acima da meta), Raphael Draccon (que estreou na Netflix com O Escolhido, além de ser best-seller com sua série Dragões de Éter), Victor Bonini (que vendeu os direitos de seu último romance, Quando ela desaparecer, para a produção de uma série) e Marcos DeBritto (que, além de livros como A casa dos pesadelos e O escravo de capela também é cineasta, trabalhando em Condado Macabro e no recente Histórias Estranhas).

É fácil olhar pra esse cenário e pensar que a literatura nacional está decolando. Como não estaria?

Produzir livros e os comercializar ainda é um luxo. A Amazon, ainda que seja uma ótima opção para publicar escritos com baixíssimo ou nenhum custo, é um território com muita, muita gente. E, se destacar nela não é puramente uma questão de qualidade literária, mas do quanto você pode investir no seu próprio trampo. Em tempos em que redes sociais alcançam organicamente menos de 1% dos seguidores e curtidores, fica cada vez mais caro fazer publicações impulsionadas ou campanhas inteiras patrocinadas (e, não, o resultado de nada é realmente bom com pouca grana em redes sociais).

O Catarse tem se mostrado uma opção, tanto para editoras quanto para autores independentes. E que traz bons resultados. Se, por um lado, temos o baiano Ian Fraser como o menino dos ovos de ouro da plataforma, com as muito bem sucedidas campanhas de Araruama e Noir Carnavalesco, outros ficam até o final da meta esperando que ela seja batida, como foi o caso de Day Fernandes e a duologia A Fortaleza, que só teve a meta alcançada na reta final. Muito porque, ou um projeto é visualmente bonito/relevante e consegue PR fora do Catarse, ou o criador do projeto precisa de um público já estabelecido e fiel.

O medo do flop, pra mim, foi real, quando coloquei a campanha de O Lago Aruá no Catarse. E é pra muita gente. Eu, que venho da periferia de uma cidade do interior baiano, não tenho público local quando escrevo contos ou novelas, estando na Amazon ou no Catarse. Somente com as crônicas, que publico no Facebook e os artigos aqui do Explico Melhor Escrevendo. Mas, assim como eu, ainda tem quem segure a mão em muitos projetos por não possuir base de leitores. E isso não é culpa de um ou de um grupo de escritores específico, mas do próprio mercado. A literatura ficcional brasileira ainda não aprendeu a pensar global e agir local dentro do mercado. Não é usar um gênero de fora em uma narrativa que se passa no Brasil, é aprender com a gringa como formar novos leitores através das narrativas. ̶A̶t̶é̶ ̶p̶o̶r̶q̶u̶ê̶,̶ ̶v̶i̶s̶t̶o̶ ̶o̶s̶ ̶p̶a̶s̶s̶o̶s̶ ̶q̶u̶e̶ ̶o̶s̶ ̶g̶o̶v̶e̶r̶n̶a̶n̶t̶e̶s̶ ̶d̶o̶ ̶p̶a̶í̶s̶ ̶e̶s̶t̶ã̶o̶ ̶d̶a̶n̶d̶o̶,̶ ̶d̶i̶f̶i̶c̶i̶l̶m̶e̶n̶t̶e̶ ̶a̶l̶g̶u̶m̶a̶ ̶a̶ç̶ã̶o̶ ̶v̶e̶r̶t̶i̶c̶a̶l̶ ̶s̶u̶r̶g̶i̶r̶á̶ ̶n̶o̶s̶ ̶p̶r̶ó̶x̶i̶m̶o̶s̶ ̶a̶n̶o̶s̶̶.

A quem interessa a literatura nacional?

Aqui, posso dividir em duas partes. "A quem interessa produzir literatura nacional" e "em quem deveríamos pensar quando fazemos literatura".

No primeiro, temos eixo Sul-Sudeste. Gosto de deixar isso bastante claro porque, quando se fala de literatura nacional, é esse grupo quem mais gosta de levantar a mão e falar "oi, tudo bem?". Pra esse grupo, é interessante porque é comum, pra eles, criar imaginários nacionais. Sempre o fizeram. Como foi o caso do cyberagreste: alguém, antes da treta, se perguntou se aquilo realmente fazia sentido? Bem, se isso tivesse ocorrido, não teríamos treta (e nem sertãopunk). O Sul e o Sudeste não se perguntam porque é natural. Há poder de propagação, dinheiro, educação de qualidade e acessos nessas duas regiões. Ser escritor não é um segundo ou terceiro plano, porque não paga as contas. Não é simples, mas é muito mais fácil viver de literatura aqui. Cenário que não se repete no Nordeste, no Norte ou no Centro-Oeste. "Mas Alan, eu conheço o escritor tal, do interiorzão da Paraíba que tá indo bem", ok. Mas não use a exceção pra criar uma regra à parte: casos assim (em que nem me incluo), são a exceção que confirmam a regra.

No segundo, temos o povo. Mesmo, de verdade. Os 50% mais pobres que possuem rendimento 33% menor do que o 1% mais rico da população. O motorista de ônibus, o filho dele e a mina que pega três conduções pra ir pra qualquer canto da cidade; o pivete que entra pro tráfico porque não tem opção, o amigo dele e até interessaria ao irmão, se não tivesse morrido antes; a mulher que faz diária em quatro, cinco casas por semana pra bancar a passagem da filha dela pra escola. São essas pessoas a quem a literatura deve interessar. Elas não nos consomem porque, além de não possuírem dinheiro pra gastar com literatura, não falamos delas. Não olhamos pra favela quando criamos um mundo com 400 dragões e escravos negros, quando botamos uma narrativa numa cidade estrangeira que nunca pomos o pé e não na nossa quebrada ou quando entupimos uma narrativa de estrangeirismos porque, até mesmo, os nomes brasileiros parecem "feios". Esses "silvas" são quem precisam da nossa literatura, não os "bittencourt".

Sinceramente, não acredito que a literatura ficcional, seja de qual gênero for, está decolando no Brasil. Não com a crise no mercado livreiro, os baixos índices de leitura da população e os custos altos de ser um leitor no país. Acho, sim, que a literatura ficcional brasileira teve seus momentos de alta dos anos 2000 pra cá, com nomes como André Vianco e os já citados Eduardo Spohr e Raphael Montes. Mas não é uma constante. Acho que ela pode, sim, estar a um passo de levantar vôo, mas a pista de decolagem ainda possui alguns obstáculos.

Antes de querer botar o pé na estrada, a literatura ficcional brasileira tem que arrumar a própria casa. Não existe caminhada sem ponto de partida, ou topo sem sustentação. No rap, Djonga entende e traz isso: ele, enquanto "ladrão", traz de volta o que consegue estando em um dos postos mais altos do rap nacional pra sua base: a periferia. Sinceramente, não espero que o sertãopunk, fantasismo ou qualquer outro movimento literário desponte assim de repente e salve o dia. Não antes de começar a limpar a pista de decolagem. E vejo, sim, como duas formas de buscar a identidade do Brasil na literatura, mas que jogam em divisões diferentes.

--

--

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.