Por que fazer o Nordeste sertãopunk?

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
11 min readSep 6, 2019

Esse artigo é uma espécie de continuação de outro, também publicado essa semana, chamado "Estão inventando o Nordeste. De novo". Recomendo a leitura dele antes de seguirmos em frente. Fico te esperando.

Em 2016, a cena do rap nacional era bastante diferente da atual. O movimento iniciado por Criolo em 2011 com "Nó na orelha", um rap pouco mais próximo da MPB, com poesias experimentais e um beat mais lento, tinha se perdido entre o surgimento de grupos como Haikaiss, Costa Gold, Cacife Clandestino e Família Madá, que traziam, em suas músicas, rimas sobre drogas, festas, grana e luxo — algo que se aproximava de um público adolescente B e Classe A (que também é o nome de outro grupo), mas se distanciava das periferias.

Se, no início dos anos 2000, rappers como Rappin' Hood, Xis, MV Bill e Mano Brown tocavam nas ruas e CD players, em 2016, Oriente e Filipe Ret angariavam views no Youtube. Foi neste cenário em que dois rappers nordestinos, Diomedes Chinaski e Baco Exu do Blues lançaram a — problemática — track "Sulicídio", uma diss (música-ataque) ao cenário do Hip Hop, centralizado nos estados do Rio e São Paulo. Muito dedo foi colocado na ferida e muitos atores da cena se sentiram ofendidos pessoalmente — como foi o caso de Nocivo Shomon, que soltou Disscarego, uma música com punchlines altamente xenofóbicas em resposta aos rappers nordestinos.

De lá pra cá, muita coisa mudou dentro da cena do rap nacional. Projetos como Poetas no Topo e Favela Vive reascenderam o boombap e as mensagens de cunho social e político nas letras e deram projeção nacional pra rappers hoje nacionalmente conhecidos, como Djonga, BK', Froid e Drik Barbosa, para citar alguns exemplos. Ainda assim, Sulicídio ainda é considerado um marco do rap recente por deslocar os olhares da cena do Sudeste e leva-los, de fato, para o Nordeste. Se hoje Baco Exu do Blues pode se orgulhar do Grand Prix em Entertainment Lions no Festival Internacional de Criatividade de Cannes, foi graças, primeiramente, a esta música.

Quando publiquei "Estão inventando o Nordeste. De novo", não imaginei que algumas coisas aconteceriam. A recepção do texto foi maior do que eu poderia imaginar. Obviamente que nem todos concordaram, mas isto já era esperado. Curti bastante o debate dos últimos dias e, por isso, algumas coisas têm que ser explicadas antes de entrarmos no assunto do textão de hoje (ainda que isso pareça ter afetado algumas boas amizades).

Junto comigo, José Geraldo Gouvea, mineiro, ampliou o debate sobre o tema e a forma como os mineiros também são vistos nas grandes produções no artigo "O regionalismo brasileiro terá sido reduzido a uma estética de exotismo?". Mas muito precisa ser esclarecido — e pontuado — sobre o debate.

O que é ser nordestino?

Um dos pontos que mais chamaram a atenção foi sobre o protagonismo do nordeste no que chamam de cyberagreste. Principalmente porque, para algumas pessoas, basta que "um bom trabalho de pesquisa" seja feito e tudo bem.

Tá. Vamos explicar o porque do protagonismo nordestino.

Uma pessoa que nasce no Nordeste, mas passa a vida inteira em outra região, pouco conhece do que é o Nordeste. Por mais que ela viaje todos os anos pra lá, tenha amigos, parentes, uma série de coisas. E isso não é por falta de vontade ou de inteligência, é porque não se pode tratar o conhecimento somente como acumulativo. O conhecer vêm da percepção espacial, social; tato, olfato, audição, visão e fala.

Uma pessoa que nasce fora do Nordeste, mas que passa a maior parte da vida na região, já conhece bem mais do que é o Nordeste. Num primeiro momento, ela vai olhar com os olhos de um estrangeiro, ainda que brasileira. Esse olhar, obviamente, sofrerá adaptações com o tempo e essa pessoa, passará a se enxergar — e também será enxergada pelos nordestinos — como alguém do nordeste.

No primeiro caso, o que temos são pessoas de fora, trazendo suas visões sobre a região. No segundo, quase o mesmo — porém, com um olhar mais próximo.

O que eu não consigo entender é:

Qual o motivo por trás da curiosidade sulista com o Nordeste?

Enquanto nordestino que mora em São Paulo à trabalho, percebo uma série de coisas sobre este assunto. Mas o que mais me chama a atenção é o exotismo que parece emanar do Nordeste. E talvez seja mais uma percepção pessoal do que geral, mas o que vejo é quase como se estivessem encarando um animal em um zoológico. Por isso não me surpreendi quando vi a seguinte imagem do cyberagreste:

O que me deixa chateado é que, infelizmente, não tenho um camelo.

Se a história do Brasil é tão rica e cheia de conflitos, por que os sulistas e sudestinos não criam seus próprios espaços "punk" ao invés de imaginar justamente o Nordeste à sua imagem e imaginação, co-criando uma visão regional como se fossem deuses ou salvadores brancos de um lugar que "não seria nada" velada de falsa homenagem?

O que questionei no último tema foram dois temas que ganharam projeção nos últimos anos: apropriação cultural e lugar de fala. Temas que também são transportados para outros debates sociais, mas que, quando colocados em confronto às artes de um artista que representou o Nordeste de maneira que, sim, é problemática, pareceu ferir alguns egos. Sobretudo sulistas e sudestinos. Uma pena: passa Gelol que passa.

Pra não ficar no falar só por falar, o texto de hoje servirá para apresentar um conceito literário desenvolvido como forma de representação nordestina na literatura — e por mãos nordestinas.

Sertãopunk

Quando terminei o texto anterior, eu e Alec Silva (que assina o artigo "Não troco meu 'oxente' pelo 'cyberagreste' de ninguém"), começamos a rascunhar aquilo que, anteriormente, havia chamado de sertãopunk.

Nunca foi uma ideia de, somente, resposta visual. Mas, de fato, estruturar um gênero literário do zero, pensar no desenvolvimento das narrativas e de como gostaríamos de ver nossa região representada na ficção especulativa.

A primeira questão sobre o sertãopunk é: não é uma forma de unificação imaginética do que é ou não é o Nordeste. O gênero é uma big idea, trocando em termos publicitários. É o alicerce pra que cada pessoa do Nordeste desenvolva suas narrativas, contando as suas visões da região, pelo sertãopunk. Neste sentido, duas pessoas da mesma cidade podem pensar em histórias do gênero ambientadas na mesma cidade, mas elas não serão idênticas porque seus "nordestes" são distintos. E isso é o bacana: não somos um mesmo sotaque, estado ou bioma. É com essa diversidade que começamos a rascunhar o sertãopunk.

Tendo este ponto de partida, precisávamos estabelecer quais tipos de narrativa nos inspirariam na solidificação da ideia. Ainda que o cyberagreste seja afrontoso, não é de todo ruim pensar em um Nordeste futurista — mas não da forma que os sulistas pensaram. Neste sentido, o sertãopunk precisaria atender a critérios que servem como ferramentas de desconstrução da imagem nacional do Nordeste.

  • Um Nordeste onde os avanços tecnológicos, sobretudo ecológicos, proporcionaram alta qualidade de vida para os nordestinos;
  • Presença de desordem social por parte de uma elite coronelista emergente e financiada por poderosos grupos de outras regiões;
  • Reformulação do processo migratório brasileiro;
  • Nordeste como polo independente de desenvolvimento intelectual e cultural;
  • Uso da oralidade, de elementos culturais e das diversas lendas e religiões da região na narrativa.

Para chegar neste resultados, pensamos nas seguintes referências:

Realismo mágico

Gênero latino-americano difundido mundialmente por Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, mas que não consegue fugir a dois estigmas: ser a resposta latino-americana à fantasia européia e americana; ser o único gênero da América Latina.

Contudo, o Brasil não embarcou no embalo do gênero. Nos anos 60, estávamos mais ocupados tentando não morrer na mão da ditadura militar do que reimaginar o real e uni-lo ao surreal.

Isto, porém, não impediu que a escrita do realismo mágico fosse produzida aqui. Murilo Rubião, um dos expoentes da vertente aqui, possui uma obra que brinca com as noções de realidade, o que pode ser visto em seus contos, sobretudo em "O pirotécnico Zacarias" e "O ex-mágico", seu primeiro trabalho publicado.

Além disto, há um outro ponto de interesse para que o realismo mágico esteja incluso: a falta de agentes das classes desfavorecidas (negros, LGBT+, indígenas e nordestinos) tanto nas histórias quanto na produção delas.

Então, por que não trazer, além da mescla de real e surreal que já corre nas veias abertas da América Latina para o Nordeste?

Solarpunk

Dentro dos sub-gêneros da ficção científica também está o solarpunk, que tem um olhar diferente para o futuro: onde a gente não se fode por problemas climáticos e ambientais, conseguimos salvar a terra desse desastre e nos desenvolvemos tecnologicamente e ambientalmente.

O Nordeste possui quatro sub-regiões, sendo o Sertão a maior e que inclui a maior parte dos estados (com exceção do Maranhão). Mas, diferente de outras áreas semidesérticas, ele não está margeando um grande deserto, o que dá características de fauna, flora e clima. O que não apaga a escassez.

E, como Gabriele Diniz, que também participou da criação da ideia, disse: o Sertão é seco. Mas isso não quer dizer que ele tenha que ser sempre assim. Ou que não possa se pensar no desenvolvimento ecologicamente sustentável de lá.

Existem uma série de tecnologias que já fazem parte, inclusive, do dia-a-dia do Nordeste. O Ceará iniciou em 1972 um programa de bombardeamento de nuvens com substâncias que facilitam a formação de gotas de chuva, como o cloreto de sódio, mas o projeto não foi adiante, uma vez que a baixa umidade não ofereceu precipitações o suficiente pra que a técnica funcionasse. O que é bastante diferente da tecnologia desenvolvida na China, que pretende construir milhares de câmaras de combustão no topo das montanhas do Tibete pra bombardear o céu com partículas de iodeto de prata e "fazer chover". Mas o Sertão não é uma região montanhosa — assim como nos Emirados Árabes, que pretende construir uma montanha artificial pra realizar uma técnica semelhante a chinesa. Esses são só alguns exemplos de coisas que já existem, e que podem, sim, ser exploradas no sertãopunk.

O Nordeste, também, é líder nacional em geração de energia eólica, com 86% dela na conta (ainda que essa energia não seja reaproveitada diretamente na região) e produzida em mais de 500 dos 602 parques eólicos em todo o país. Isso sem falar na energia solar — o Nordeste bateu o recorde de geração em 2018, com 675Mw.

Isso sem falar em outras formas de tratamento de água, como as 244 usinas de dessalinização que funcionam desde 2004 em sete estados da região. Ou uma alternativa mais barata: o tratamento de água de resíduos industriais.

Afrofuturismo

Dentro dos gêneros fundamentais, um que é imprescindível. Não só por ser uma resposta de filhos da diáspora africana à ficção científica como um todo, mas por trabalhar com a ancestralidade e a espiritualidade como peças-chave de suas narrativas.

Em Kindred, da autora Otcavia Butler (uma das maiores obras do afrofuturismo), a relação entre passado e futuro é tênue e, além disto, o livro levanta questões de gênero e raça que também fazem parte do dia-a-dia nordestino.

Dos 3.045 territórios remanescentes de quilombos no Brasil, 1.920 estão no Nordeste. Isto sem falar nas dezenas de tribos indígenas espalhadas por toda a região, como os geripancó, kantaruré e os potiguaras. As influências culturais desses povos estão nas artes, músicas, danças e culinárias nordestinas, assim como sua religiosidade e ancestralidade. O sertãopunk olha pra essas questões na criação de suas narrativas porque também entende que não há projeção de futuro, seja ele utópico ou distópico, sem a conectividade com elementos essenciais da construção de um povo plural como o nordestino.

Elementos importantes no sertãopunk

Os gêneros citados fazem parte da grande ideia que engloba o sertãopunk, tanto visualmente quanto referencial. Mas, assim como toda arte é crítica, o sertãopunk também o é.

Independência regional: como citado anteriormente, o Nordeste do sertãopunk é pensado de forma independente — e não só da República. Autonomia econômica, intelectual, artística e energética são elementos que fazem parte da concepção, não para soar como uma pauta separatista, mas para trazer a tona, também, conflitos nordestinos à narrativa.

Coronelismo: um dos grandes problemas históricos do Nordeste. Se a Bahia conta com os coronéis dos Magalhães, Alagoas também sentiu as dores causadas por Collor e Calheiros, assim como o Maranhão por Sarney — e não se pode deixar passar a família de Ciro Gomes, que também fazem parte dos coronéis políticos nordestinos. Mas o coronelismo não fica somente no campo da política partidária: ele se estende para as relações entre patrão e empregado, conflitos familiares, serviços básicos à população e, até mesmo, relacionamentos amorosos. Mais do que a seca, o coronelismo é o principal antagonista histórico do Nordeste — e, com tramas centralizadas na região, o sertãopunk vê como ponto essencial pro desenvolvimento das narrativas.

Cangaço x banditismo: no texto passado, disse que o cangaço acabou. Isto não quer dizer que o banditismo não exista mais. A grande questão na retratação do cangaço é: qual o papel que ele teve. Foi um movimento criminoso ou heróico? Esse ainda é um debate que gera dúvidas, até mesmo no Nordeste. As visões sobre as ações de Lampião, por exemplo, podem ser completamente distintas na Paraíba e no Rio Grande do Norte. O sertãopunk não exclui a figura do cangaço nem seus impactos na estruturação do Nordeste, mas também não o trata como bandeiras ou vikings à nordestina. Sobre o banditismo: não são poucos os grupos criminosos que assaltam pequenas cidades nos interiores, assim como a ação de facções criminosas nos presídios no Nordeste, que coordenam de dentro das cadeias a estrutura criminosa em estados como o Rio Grande do Norte (com Okaida) e a Bahia (com Caveira, Katiara e Bonde do Maluco entre as principais).

Em suma, o sertãopunk traz elementos de diversas vertentes literárias e acontecimentos sociais impactantes importantes nas vivências nordestinas e reflete sobre eles. E, sim: outros gêneros podem ser mesclados, horror, suspense, romance policial. Afinal de contas, são as misturas de gêneros que tornam os mais diversos livros em grandes obras e geram curiosidade. E isso por conta do próximo item:

De quem é o sertãopunk?

Isso não é uma marca registrada. Não vamos registrar um ISBN ou requerer qualquer tipo de referência em materiais. O sertãopunk nasce do esforço de três jovens nordestinos que se incomodaram, sim, com a retratação retrofuturista que o cyberagreste propõe, ainda que visualmente, como Alec Silva diz em "Sudestino criando é arte, mas nordestino criando pode não?".

O gênero é uma resposta: uma forma de mostrar como pessoas, de cidades e estados diferentes do Nordeste, com vivências e realidades distintas, compreendem sua própria região; à forma como a retratação sulista e sudestina é feita — e não é de hoje; aos estereótipos de nordestinidade.

Então alguém de fora do Nordeste pode escrever sertãopunk?

Claro que sim! A literatura é uma arte e a arte é crítica e livre. Nosso esforço, enquanto nordestinos que pensaram no sertãopunk, é o de evitar o reforço de uma imagem negativa do Nordeste.

Sertãopunk não é rage, crítica infundada, inveja ou falta de compreensão com uma "homenagem" mal-feita. Sertãopunk é a nossa forma de ver a nossa terra, costumes e símbolos representados na literatura. Ou melhor: é o Sulicídio da literatura nordestina.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.