Comer carne é um dano líquido? uma colaboração entre um comedor de carne e um vegetariano (parte 2)

Altruísmo Eficaz Brasil
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11 min readJan 23, 2020

Esta é a segunda parte da tradução da “colaboração antagônica”, do blog SlateStarCodex, sobre a ética do consumo de animais. Tendo sido investigado quais animais são conscientes na primeira parte, aqui são discutidas a quantidade e condições dos animais na pecuária industrial.

2. Quantos animais são criados e em que condições?

2.1. Animais consumidos per capita

A OCDE registra o peso exato de carne consumida por ano, e assim dividindo isto pelo peso da carcaça, temos o consumo de animais per capita por ano . Isto é consistente com outras estimativas na web.

Animais per Capita consumidos por quatro principais categorias em 2018

As condições em que a maioria dos animais são criados podem surpreender você. Como umas poucas grandes fazendas industriais dão conta da maioria dos animais criados, a fazenda típica pode muito bem ser uma pequena produção de Dona Maria & Seu Zé, mas o típico animal para consumo é produzido numa escala industrial. Além disso, leis “ag gag” limitam a chegada de fatos sobre as condições dos animais à consciência pública e pode-se dizer que são feitas explicitamente para permitir que as companhias ludibriem os consumidores acerca das condições em que a maioria dos animais são criados.

Organizações de direitos dos animais frequentemente citarão um estudo do Sentience Institute de que mais de 99% dos animais consumidos nos EUA são de pecuária industrial. Embora seja uma fonte enviesada, ela é consistente com outras estimativas do governo e temos resultados semelhantes quando replicamos a sua metodologia com números do Departamento de Agricultura dos EUA. O que realmente leva a estas estatísticas é que, como visto acima, frangos formam a vasta maioria do contingente de animais na pecuária industrial e são quase exclusivamente criados desta forma.

Comparar entre países é difícil, mas parece que os EUA são levemente mais industrializados do que a UE. Minha melhor estimativa é que a diferença não é significante o bastante para fazer uma diferença moral. Se você come carne e não consegue explicitamente traçar a fonte, a maior probabilidade é que você esteja comendo carne vinda da pecuária industrial.

2.2. Como é ser produzido industrialmente?

O traço definitivo da pecuária industrial é que incentivos do mercado levam a uma situação de maximizador de clipes de papel, em que produzir tantos animais quanto possível tem precedência sobre preocupações acerca do bem-estar animal. Consequentemente, a “experiência” de ser criado industrialmente é melhor entendida como uma forma particular de escravidão em que a crueldade é um efeito colateral de um sistema projetado para maximizar o output econômico.

2.2.1. Frangos

Frangos podem ser criados de duas maneiras: em gaiolas ou num galpão. Frangos criados em gaiolas são típicos em economias em desenvolvimento como a China, mas no Ocidente gaiolas são usadas apenas para galinhas poedeiras. Em vez disso, frangos de corte no Ocidente são criados em grandes galpões cobertos de dejetos.

Falando de modo geral, frangos enjaulados não possuem nenhum análogo humano em termos do quanto eles sofrem. Vivem num estado de dor e ansiedade constantes, mal conseguem se movimentar. A única misericórdia é que não sofrem por muito tempo. Nesta análise focamos no consumo de carne no contexto Ocidental. Assim, modelamos 100% dos frangos como sendo frangos de corte industrializados.

Um frango de corte de pecuária industrial vive por aproximadamente 47 dias, e durante este tempo cresce até um peso de 2,6 kg (42 dias e 2,5 kg na UE). Isto é análogo a um bebê humano recém-nascido atingir o peso adulto pela altura do primeiro aniversário. Para atingir este rápido ganho de peso, uma combinação de alimentação forçada, drogas e comida de alta energia é utilizada. Mas o pior responsável por esse resultado é a procriação seletiva. Num estudo de Kestin, entre 2% e 30% dos frangos de corte, dependendo da raça, tiveram uma pontuação de andadura entre 3 e 5 numa escala de 5 pontos (1: nenhum problema, 3: óbvio defeito no andar, 5: absolutamente incapaz de se movimentar). Mas 100% de um grupo de controle procriado aleatoriamente e daí criado nas mesmas condições tiveram ou problema nenhum ou poucos problemas de mobilidade. A seleção para o crescimento rápido em vez de para a aptidão no meio selvagem leva a altas taxas de ataques cardíacos e outras falências de órgãos. Nas semanas finais de vida, os frangos frequentemente deixam para trás a capacidade das suas pernas de apoiá-los, tornando endêmicas pernas quebradas ou defeituosas em outros sentidos na indústria.

Fotos desses sistemas de criação (imagens fortes): Link 1-gaiolas , Link 2-galpão

Porque é mais barato apenas retirar os dejetos entre a troca de lotes, eles são uma grande fonte de infecções bacterianas e especialmente dermatite de contato (brotoejas e lesões nas patas e parte inferior do corpo dos frangos). É prática comum na UE (não nos EUA) remover uma porção do lote uma semana antes da hora do abate para criar espaço suficiente para os pássaros remanescentes atingirem o seu peso de abate usual, sugerindo que não há muito espaço livre para eles. Pássaros cujas pernas falham frequentemente se desidratarão até a morte. Não queremos exagerar isto — um pássaro morto é um pássaro improdutivo, e apenas cerca de 33% do lote morrem durante o crescimento por qualquer razão — , mas lembre-se que isto é uma chance de 3,3% de morrer em apenas seis ou sete semanas.

A debicagem é comum em frangos de corte (universal em galinhas poedeiras). Uma razão para a debicagem é reduzir o canibalismo que ocorre porque os pássaros ficam tão estressados — galinhas de estimação bicarão umas às outras para estabelecer uma hierarquia de dominância, mas não matam umas às outras. Bicos são ferramentas sensoriais e manipulatórias para frangos, de modo que isto é análogo a cortar fora os dedos de prisioneiros sem anestesia para diminuir a probabilidade de fuga.

Fotos de debicagem, (imagens fortes): Link 1

Frangos de galpão passam um bocadinho melhor. Têm uma pequena quantidade de mobilidade, podem fazer algumas atividades naturais como socializarem e cavarem na terra com as patas (mas não geralmente com o bico) e têm um pouco de luz natural das janelas do armazém. Por outro lado, frangos só canibalizam uns aos outros quando muito estressados e a pressão nos seus sistemas vinda do crescimento maciço pelo qual são forçados a passar causa uma dor considerável.

Pensamos que é razoável dizer que frangos de corte existem num estado pior do que a morte — no modelo, presumimos que dias de frango são equivalentes a -2 dias de humano (você preferiria que sua vida fosse 2 dias mais curta a ter de vivenciar um dia de vida de frango), mas as suas intuições podem diferir substancialmente.

2.2.2. Porcos

Porcos são os próximos animais para consumo mais comumente produzidos. Há duas principais fontes de crueldade na produção de porcos; o desenvolvimento dos próprios porcos para consumo e a criação de novos porcos para consumo a partir de porcos reprodutores.

Porcas reprodutoras são confinadas em uma cela “de gestação” pela maior parte das suas vidas. Estas são apenas levemente maiores do que os seus corpos, tornando impossível se virar ou sequer se deitar. Geralmente, os pisos são feitos de degraus de ripa ou ferro para permitir a queda do esterco. Estas ripas podem machucar as patas sensíveis dos porcos, e o fato de que são confinados diretamente acima do seu próprio esterco significa que são expostos à toxicidade da amônia, que leva a condições respiratórias comuns em porcas confinadas (e presumivelmente cheira penosamente mal). Porcos são altamente inteligentes, e o confinamento sem estímulos significa que os porcos se envolvem em comportamentos de estresse repetitivos como morder as barras de metal da sua gaiola — isto pode causar danos adicionais como feridas bucais.

Pouco antes do parto, a porca prenha é levada a uma “cela parideira” — ainda mais restritiva do que a cela de gestação. Esta é feita para separar a mãe do leitão para que ele possa ser amamentado sem ser esmagado (leitões serem esmagados pode acontecer no meio selvagem, mas é raro — isto é um problema quase inteiramente causado pelas condições de confinamento em que a porca é mantida). A cela é tão apertada que a mãe não pode sequer enxergar o seu bebê uma vez parido, e o bebê é então levado embora após cerca de 17–20 dias. O leitão é então preparado para ser engordado para o abate, e a mãe é ou re-emprenhada, ou levada de volta para a cela de gestação, ou abatida ela própria se não tiver chance de sobreviver a outra gravidez.

Fotos de celas de gestação e celas parideiras (surpreendentemente não são imagens fortes): Link

Leitões no preparo para o abate são castrados e suas caudas são cortadas, frequentemente sem anestesia. Diferentemente de bicos de frangos, caudas de porco realmente não parecem servir nenhum propósito, mas porcos mostram comportamento de dor para com seus cotocos, sugerindo que ficam bem sensíveis após o corte. As caudas são cortadas para prevenir que outros porcos mordam, causando infecção — novamente, um comportamento que é infimamente raro no meio selvagem e, portanto, parece ser uma resposta de estresse às condições em que são mantidos. Pode ser também que os dentes dos leitões sejam cortados para prevenir que mordam, mas não conseguimos achar número sobre quão comum isto é. Porcos preparados para o abate são mantidos em “celas de terminação” que parecem variar de qualquer ponto entre uma cela de gestação levemente maior (maior apenas no sentido de maior tamanho — porcos na terminação são muito maiores, de modo que não têm maior espaço para se virarem ou expressarem comportamentos naturais) e algo um tantinho mais semelhante a um chiqueiro de fazenda, só que interno — seis ou sete porcos confinados a um pequeno chiqueiro onde têm apenas o espaço bastante para andar se quiserem.

Fotos de celas de terminação (as imagens não são fortes): Link

Porcos são animais altamente inteligentes, e quando não confinados em estábulos passarão horas brincando e grunhindo na lama. Os porcos consumidos como alimento estarão em constante dor de nível baixo e porcas usadas para procriação estarão em estado de dor bem intensa constantemente. É difícil imaginar um evento mais angustiante que levarem o seu filhote para longe de você ou ser levando para longe da sua mãe, e poderíamos imaginar que a constante falta de estímulo para porcos tanto de consumo como de reprodução cause considerável tédio e tristeza.

É uma tarefa mais difícil saber se porcos existem em condições piores que a morte. Minha intuição é que porcos para consumo estão bem na margem, e porcos reprodutores fortemente prefeririam não viver. No modelo presumimos que um dia de porco vale -1 dia humano.

2.2.3. Vacas

Vacas são o único animal rotineiramente criado em condições que se aproximam da maneira que as pessoas na sua cabeça imaginam que seja a pecuária — isto é, num campo onde têm espaço o suficiente para se movimentarem e socializarem. Vacas de pecuária industrial passam seis a doze meses sendo criadas ao ar livre em campos (o tipo de vacas que a gente vê dispersas na zona rural), e são daí transportadas para “currais de engorda” para os seus últimos meses, onde são alimentadas com uma dieta artificial de milho e soja que faz bastante mal para os seus corpos e pode causar doenças como úlceras. Perceba que quase toda carne de vaca pode ser rotulada de “alimentada com capim”, porque a maioria das vacas passa o seu primeiro ano em campos comendo capim: isso não quer dizer que é daí que a maior parte do seu peso de abate vem! De modo muito semelhante a porcos, vacas têm hierarquias sociais complexas e ser colocada num curral com milhares de outras vacas é deprimente.

Imagens de curral de engorda (as imagens não são fortes): Link

Gado de corte pode passar por eventos individuais dolorosos como castração, marcação e descorna (frequentemente sem anestesia) e transporte em celas apertadas por longos períodos de tempo. Não é claro como incorporar o impacto destes eventos na qualidade geral da vida do animal. Sugeriríamos que animais criados num campo têm a mesma qualidade de vida que um animal criado tradicionalmente numa fazenda e que animais criados num curral de engorda têm uma qualidade de vida moderadamente pior do que a de um típico humano idoso. Indiscutivelmente, vacas parecem estar na melhor condição entre todos os animais na pecuária industrial e têm vidas que são claramente dignas de serem vividas.

Achamos que ficaríamos bastante contentes em viver enquanto uma vaca no campo, mas vacas em currais de engorda parecem ter vidas próximas às de porcos para consumo. Arredondando isto de modo aproximado pelo tempo de vida de uma vaca, modelamos 1 dia de humano como igual a 10 dias de vaca. Não podemos achar boa informação sobre como ovelhas são criadas em escala industrial, de modo que presumimos que são apenas vacas cobertas de lã em prol de estimar a sua qualidade de vida.

2.2.4. O valor da vida animal

Quantificar e comparar experiências subjetivas de animais de pecuária industrial é difícil porque não há nenhuma “unidade natural” de sofrimento ou experiência. Procedemos, em vez disso, perguntando “em que fator estamos dispostos a trocar dias da minha vida por viver enquanto um animal particular em condições de pecuária industrial” conforme descritas acima. Vidas de vacas de pecuária industrial parecem imensamente preferíveis à inexistência, porcos passam a maioria do seu tempo vivenciando alguma forma de sofrimento crônico ou agudo, e frangos têm vidas genuinamente horrendas do nascimento até o abate.

O próprio abate pode ser uma parte moralmente relevante na valoração da vida de um animal. Em princípio, animais são atordoados antes do abate de modo que o processo seja indolor (e evidências sugerem que animais não são sofrem por assistir a outros animais serem atordoados). No entanto, na prática, os animais com frequência não ficam insensíveis à dor quando são esfolados ou cortados, seja por conta de mau treinamento (Link para o Washington Post com paywall), crenças religiosas em torno da maneira como a carne deve ser preparada (link, mais números) ou simplesmente por conta de uma cultura de permissividade e crueldade (link de conteúdo INTENSAMENTE fortes de animais sendo maltratados por trabalhadores de abatedouros, relatório um tanto forte em PDF da investigação). Leis “Ag gag” e outros esforços de fazendeiros para evitar imprensa negativa impedem investigações acadêmicas sérias da extensão do problema, mas a investigação em câmera escondida do AnimalAid, (link no PDF acima), descobriu evidências de tratamento criminosamente cruel em um de três abatedouros observados e evidências de maus tratos em outros.

Também, algumas pessoas creem numa obrigação ética específica de não matar criaturas conscientes que não querem estar mortas, de modo que o abate até de animais atordoados humanamente é imoral. Em vez disso, tomamos uma perspectiva consequencialista de que há um valor simétrico na atualização da existência de criaturas conscientes que querem estar vivas (novamente, a alternativa prática de um animal de pecuária industrial é a inexistência).

No modelo, presumimos que, na consciência de nível humano, a experiência de um típico dia de vida humana vale a experiência em pecuária industrial de 10 dias de vaca, -1 dia de porco, -0,5 dia de frango. Valorizamos um ano de saúde perfeita em $50.000 em linha com o típico estabelecimento de prioridades de cuidado médico típico nos EUA (é muito menor no Reino Unido e na Europa — mais perto de £30.000), em que um ano de vida ocidental típico é cerca de 86% disso ($43.000). O abate não é incluído, como o mais cruel abate imaginável seria QALY-negligenciável se arredondado por todo o tempo de vida de um animal.

Leia a Parte 3 do texto aqui!

Tradução: Luan Rafael Marques

Revisão: Fernando Moreno

Publicado originalmente em: https://slatestarcodex.com/2019/12/11/acc-is-eating-meat-a-net-harm/

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Altruísmo Eficaz é um movimento que busca descobrir e aplicar as formas de fazer o maior bem, usando para isto evidências e racionalidade.