Comer carne é um dano líquido? uma colaboração entre um comedor de carne e um vegetariano (parte 3)

Altruísmo Eficaz Brasil
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6 min readJan 31, 2020

Esta é a terceira parte da tradução da “colaboração antagônica”, do blog SlateStarCodex, sobre a ética do consumo de animais. Leia aqui a primeira e a segunda parte.

3. Quais vidas são dignas de se viverem?

Falando livremente, a evolução não liga para o quanto a sua vida é feliz contanto que você a) exista e b) passe seus genes adiante, e assim bolou inúmeros “remendos” para o sistema de recompensa consciente assegurar que os animais nunca fiquem satisfeitos demais para pararem de competir para procriar, porém jamais fiquem tão dessatisfeitos a ponto de preferirem a morte. Antes, o que temos é grosso modo uma configuração basal de felicidade da qual desviamos quando coisas boas e ruins nos acontecem, mas à qual quase sempre retornamos. Se isto também é verdade com respeito aos animais, então não importa que percebamos como intoleráveis as suas vidas conforme descritas acima; se realmente fôssemos forçados a viver como eles, nos observaríamos na esperança de não morrermos de modo indolor ao dormirmos. Como não podemos perguntar aos animais diretamente se eles consideram as suas vidas dignas de se viverem, olhamos então nas condições em que as pessoas reportam mudanças em felicidade ou cometem suicídio, e comparamos estas à vivência dos animais de pecuária industrial.

3.1. Habituação e setpoints de felicidade

Habituação é uma “diminuição de resposta a um estímulo após apresentações repetidas”. Sendo a forma mais simples de aprendizagem, ela é causada por processadores neurais que regulam a responsividade a diferentes estímulos. Quando um sinal é enviado a nós repetidamente, especialmente se for altamente frequente e não tiver sido modificado recentemente em intensidade e duração, nós o experienciamos conscientemente de modo menos agudo. Isto faz sentido. Se a consciência se trata de reflexão consciente, após termos já processado um sinal e determinado uma resposta, se alguma houver, a resposta se torna subconscientemente automática.

No entanto, não nos habituamos somente a sensações físicas locais, como o tiquetaquear do relógio ou a pressão de uma blusa sobre pele da gente. Nos habituamos à dor e ao sofrimento também, até a choques forte ao sistema. Na literatura isto é conhecido como o paradoxo da deficiência, pelo qual uma maioria das pessoas com deficiências severas reportam ter uma boa ou decente qualidade de vida, mesmo quando a observadores externos parece uma vida não digna de ser vivida (embora esta história seja nuançada, e parte da melhora se relacione com a capacidade de humanos inteligentes de se adaptarem pela mudança do estilo de vida).

Não obstante, o consenso na pesquisa da felicidade é que as pessoas têm um nível geral de felicidade basal bastante estável a que retornam após certas grandes modificações. Num famoso estudo de Brickman (1978), paraplégicos e ganhadores da loteria reportaram níveis semelhantes de felicidade antes e depois do que a gente poderia presumir que fosse um acontecimento de mudar a vida, seja extremamente negativo, seja extremamente positivo. Em um estudo por Lykken e Tellegen com vários milhares de gêmeos descobriu-se que cerca de 50% da variação na escala de Bem-Estar do Questionário de Personalidade Multidimensional estão associados à variação genética, e menos de 3% (!) da variância pode ser explicada por qualquer status socioeconômico, realização educacional, renda familiar, estado civil ou comprometimento religioso.

3.2. Lições do suicídio

Às vezes, humanos decidem que as suas vidas são intoleráveis e cometem suicídio. O interessante é que basicamente nunca observamos isto em outros animais. As únicas alegações anedóticas, talvez críveis, são sobre golfinhos, que são altamente inteligentes e podem cometer suicídio por não respirar (respirar para golfinhos provavelmente é uma escolha ativa, em vez de um processo automático conforme regulado em humanos pela amígdala.)

Isto não quer dizer que podemos concluir que animais industrializados preferem viver, porque os animais podem carecer de uma teoria da mente ou inteligência para agir com base na sua preferência de deixar de existir. No entanto, se humanos em condições extremamente ruins esmagadoramente não escolhem o suicídio, podemos inferir que as vidas de animais de qualidade grosso modo semelhante talvez também fossem dignas de serem vividas. Duas áreas bem estudadas em que humanos são colocados em condições extremamente ruins são a escravidão e a doença terminal.

3.2.1. Escravidão

O consenso histórico é que, embora a escravidão tenha causado estresses e sofrimento extremos, a taxa de suicídio por escravos negros era bem baixa. Segundo o senso dos EUA em 1850, os escravos tinham uma taxa de suicídio de 0,72 por 100.000, enquanto os brancos tinham uma taxa de 2,37 e, escravos libertos, uma taxa de 1,15. Do Narrativas de Escravos do Projeto Federal dos Escritores, que documentava incidências de resistência, apenas 1,2% foram atos de suicídio. Além disso, quando escravos recorriam ao suicídio, era geralmente em resposta à deterioração das suas circunstâncias ou a expectativas não satisfeitas, em vez de ser explicado por viverem nas mais brutais condições — isto é consistente com uma teoria do “setpoint de felicidade”.

Para esclarecer, não estamos dizendo que, porque africanos escravizados cometiam suicídio em taxas mais baixas que brancos, a escravidão não era “tão ruim assim”. Há uma literatura acadêmica substancial explicando as razões culturais para a diferença. A observação é simplesmente que o principal fator para explicar se um escravo pensava valer a pena viver não era quão ruim a sua vida objetivamente era.

3.2.2. Pacientes terminais

Numa revisão do perfil psicológico de pacientes em cuidado paliativo de 18.000 pacientes de câncer terminal, dos quais um pequeno número cometeu suicídio, descobriu-se que alguns dos que cometeram suicídio:

“(…) apresentavam debilitações funcionais e físicas, dor descontrolada, ciência de estar em estágio terminal e uma depressão de leve a moderada (…) no entanto, a perda de, e o medo de perder, sua autonomia e independência, e ser um fardo sobre os outros, foram os fatores mais relevantes.”

A melhor “preferência revelada” que temos para saber se a vida é considerada digna de ser vivida (pelo ator moralmente relevante vivenciando-a) é o suicídio.

Contudo, a presença de dor significativa e até depressão (o que também poderíamos chamar de “sofrimento objetivo”) não foram fatores significativos na predição do suicídio.

3.3. O que isso significa?

A preferência por viver é um processo que fortemente reverte à média. A literatura científica e exemplos históricos da escravidão e da doença terminal ambos sugerem que humanos se habituarão a quase qualquer coisa que lhes façam. No nosso ambiente ancestral a vida era realmente, realmente dura. Brutalmente dura. E faz sentido que até em ambientes que gente moderna instantaneamente rotularia de “muito pior que a inexistência”, a evolução tenha se certificado de que continuássemos a ter a força de vontade de não só sobreviver, mas querer sobreviver.

Até onde vai isso? Quer dizer que animais, não importa quanto sofrimento eles vivenciem, preferem viver? Pessoas razoáveis podem discordar. Conforme detalhado acima, animais de pecuária industrial — especialmente frangos — não existem em nada que se assemelhe remotamente a um “ambiente ancestral”. Estressores crônicos são mais dados a causar mudanças permanentes na felicidade do que mudanças agudas. Até mesmo o “nível de habituação” impressionante que observamos em humanos (explicado acima) pode não ser o bastante para alcançar a marca de “digno de se viver” em situações observadas no ambiente da pecuária industrial. Isso é o que parecemos observar nos casos de frangos que cometem canibalismo mesmo sem escassez de alimento.

No modelo, levamos a sério a literatura da habituação, estimando por quantos desvios do setpoint de longo prazo da qualidade de vida média (0,86) são neutralizados pela habituação. Com base nas seções anteriores e quão piores as condições da pecuária industrial são em comparação com o “ambiente ancestral” em que a habituação seria calibrada, estimamos que os humanos se habituam por 80%, vacas 70%, porcos 60% e frangos 50%. Embora tenhamos presumido que preferiríamos a inexistência a ser um porco industrializado, e que nos desagradaria ser um frango duas vezes mais, quando a habituação é levada em conta vidas de porco são levemente melhores do que a inexistência, e as vidas de frango são muito ruins, porém têm um peso moral (negativo) não muito maior do que o peso positivo das vacas. No entanto, como consumimos tanto frango, no fim das contas eles dominam a análise.

Leia a Parte 4 do texto aqui!

Tradução: Luan Rafael Marques

Revisão: Fernando Moreno

Traduzido do original: https://slatestarcodex.com/2019/12/11/acc-is-eating-meat-a-net-harm/

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Altruísmo Eficaz é um movimento que busca descobrir e aplicar as formas de fazer o maior bem, usando para isto evidências e racionalidade.