A Surpreendente Verdade Arquetípica que Nunca te Contaram Sobre o Caos em que Vivemos

E por que o melhor a fazer é…

André Camargo
André Camargo, Escritor
6 min readDec 28, 2016

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por André Camargo

Saí do SESC Sorocaba e sentei na muretinha em frente. Chamei meu filho (de sete anos) para ver. Na tela do celular, o mapa da região e um carrinho em movimento. Ele se aproximava de nós em tempo real. Distância: 5… 4… 3 minutos.

Nunca tinha visto seja o carro, seja o motorista. Mas o aplicativo exibia uma foto dele, seu nome, o modelo e a placa do veículo. Também podíamos acessar as avaliações que tinha recebido de outros clientes.

Adivinhamos o momento exato em que o carro emergiu no horizonte.

Caraca!

Ainda fico embasbacado com o nível da tecnologia na palma da nossa mão!

(Quando meu pai era criança, veja só, não existiam nem televisões; ele conta que a família se reunia para ouvir rádio).

Mas não é assim para meu filho. É este o mundo em que nasceu: Uber, iPhone, Facebook, Whatsapp e AirBnB são apenas parte da paisagem.

Ele já conheceu o mundo desse jeito.

Na primeira parte deste texto, usei a data da morte da cantora Cássia Eller para traçar um panorama de como a vida mudou radicalmente nos últimos quinze anos. O mundo parece que está ao contrário!

Eis o que ainda quero dizer:

Que o formidável avanço tecnológico tem uma contrapartida sombria: a gente não consegue absorver as transformações na mesma velocidade.

Somos seres orgânicos, regidos por certos ritmos. Não somos máquinas. Então, atravessados pelo acúmulo de novidades, nos sentimos estranhos, desalojados, sempre atrasados na tentativa de dar conta.

Como se estivéssemos jogando um jogo cujas regras mudam o tempo todo.

Seu universo entrou em convulsão. Ele é empurrado espremido através de um canal apertado demais e colabora com toda a força para escapar ao martírio. Até que desponta, exausto, rumo ao abismo do desconhecido. Um salto de fé.

Sente o peso inefável, a claridade irrita os olhos, o pulmão se enche de ar. Ainda vai levar um tempo até que se habitue às leis (e as complexidades) de seu novo ambiente. De toda maneira, uma coisa é certa: o que quer que venha pela frente, não tem mais como voltar atrás.

O parto é a matriz arquetípica de toda Travessia de Limiar. Na verdade, podemos encarar nosso tempo de vida como uma longa travessia. E, ao mesmo tempo, vivemos travessias entre mundos o tempo todo.

Um novo emprego. Um novo relacionamento. Uma mudança de casa —de cidade, estado ou país. Tornar-se pai ou mãe. Tornar-se avô ou avó. Casado, solteiro e vice-versa. Do sonho para a vigília, e vice-versa. Um novo curso, que abre novos horizontes. A passagem para a adolescência, depois virar adulto, a meia-idade e aprender a aceitar a aposentadoria. E então, se não antes, a derradeira jornada.

Por serem parte fundante da experiência humana, as travessias de limiar são também momentos-chave nas histórias de ficção. Dá uma olhada:

Repare que a Travessia de Limiar em Oz é ressaltada, em linguagem cinematográfica, pela transição para a tela panorâmica e pela passagem da projeção P/B para a colorida (acompanhada de uma sensação de deslumbramento).

O curioso é como, em meio a tanta tecnologia, estamos mais mal-equipados que nunca para lidar com as mudanças da vida.

Os povos ancestrais possuíam todo tipo de rituais de passagem e iniciações para ajudar a pessoa a morrer para o familiar e encarnar sua nova condição. Os rituais e iniciações são uma forma de sabedoria que, descartada pelo progresso como primitiva ou supersticiosa, se perdeu.

Pois nós, em contrapartida, na ausência dos mesmos anteparos simbólicos, habitamos um mundo de crianças adultizadas, adultos infantilizados e adolescências tardias. Um triste (e patético) desajuste entre corpo e alma.

Não é?

Em um eterno agora de pura excitação, reféns dos próprios impulsos, e desenraizados dos elementos fundamentais da condição humana (que nos informam sobre quem somos), a real é que mal sabemos como nos preparar internamente para viver os diferentes momentos do processo de transformação pessoal:

  • o Chamado para sair da zona de conforto (em busca da própria verdade)
  • o Cagaço
  • o Encontro com o Mentor e o uso de Objetos de Poder
  • Guardiões e Travessias de Limiar
  • o Outro Mundo, com seus próprios testes, aliados e inimigos
  • a Estrada de Desafios e Tentações
  • o Encontro com a Sombra e a Provação Suprema (no Ventre da Baleia)
  • Matar o Dragão e Apanhar a Espada (Morte e Renascimento)
  • a Perseguição
  • a Purificação e a Reconciliação
  • o Retorno com o Elixir
  • o Legado

Em Matrix, a Travessia de Limiar é encenada como o nascimento de Neo (o Salvador que é chamado a libertar a humanidade da Terra Devastada).

Interessante apontar, inclusive, que o filme é uma alegoria da ameaça do avanço tecnológico desordenado (que equivale à ânsia desmedida por poder) à sobrevivência do que é humano em nós.

Você reconhece isso no filme?

Esta cena é fantástica! A Travessia do mundo dentro da Matrix para o Deserto do Real. Repare como Neo é caracterizado como um bebê no útero (nu e sem pelos), imerso em líquido amniótico e cheio de tubos que remetem ao cordão umbilical. Seu ‘nascimento’ equivale a escorregar por um túnel escuro e molhado até que é içado, grogue e exausto, em direção à luz. É então saudado por Morpheus (o Mentor) com a frase: Bem-vindo ao mundo real.

Eu disse: vivemos travessias o tempo todo. E nossa própria vida é uma longa travessia.

Mas aqui estou tratando de algo mais raro e que nos afeta de modo mais arcaico: uma travessia coletiva entre modelos de organização social.

A última vez que algo dessas proporções aconteceu foi na passagem da Idade Média para a Idade Moderna — uma transição que se distribuiu ao longo de muitas gerações.

O problema é que, agora, o processo está acontecendo a uma velocidade ensandecida. Temos uma janela de tempo menor para elaborar internamente as rápidas transformações.

Estamos passando da Era Industrial, em que o tecido social é organizado a partir de grandes instituições hierárquicas, que concentram recursos, para a Era de Redes, em que os recursos tendem a se distribuir horizontalmente, ao largo das grandes instituições.

Do carvão para o digital.

Do braçal para o virtual.

Mas como se localizar em meio a dois mapas de realidade distintos, sobrepostos? Como viver ao mesmo tempo no mundo que nasce e no que morre?

Um bufão com ideias fascistas na presidência do país mais poderoso do planeta

Diante dos assustadores acontecimentos cotidianos, dos comportamentos bizarros, da ausência de referenciais claros e da necessidade de se reinventar a cada dia, a gente fica igual ao Oz, no primeiro trailer — ou como Neo: literalmente, ‘sugado pelo deserto do Real’.

Confusão, desorientação, exaustão.

São sensações típicas da Travessia de Limiar.

E se nos desconectamos da sabedoria ancestral que nos ajudaria a lidar com as mudanças cotidianas, em nível pessoal, que dizer de uma Travessia Coletiva, vivida em escala planetária?

Pois a fim de aprendermos a operar no mundo atual, a revolução que precisa acontecer é, antes e acima de tudo, interna.

Não tenho uma receita de bolo para a revolução interna. Eu mesmo to na luta.

Na verdade, o melhor que tenho a oferecer é um convite: podemos experimentar o exercício cotidiano de substituir a expectativa (de ordem, de controle e previsibilidade) pela perspectiva (uma visão mais ampla que pode tirar o peso das suas costas ao dar um sentido histórico-mitológico para o que está acontecendo).

Bem ou mal, a verdade é que nossas vidas serão marcadas, até o fim, pelo signo da transição: as convulsões da realidade moribunda combinadas com as fortes contrações que nos apresentam o mundo nascente. Este é o tempo histórico em que nascemos.

É também o tempo histórico em que viveremos e morreremos.

Não é terrível — e, ao mesmo tempo, absolutamente fascinante?

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