Eu, Robô

A Mitologia dos Robôs por Asimov

Sandoval Melo
Nexus: AOF
10 min readMar 4, 2016

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Robô ou humano ?

O livro Eu, Robô escrito por Isaac Asimov, autor de clássicos da ficção cientifica como O Fim da Eternidade, A Série dos Robôs e a Saga da Fundação (clique aqui para conferir a segunda parte do especial sobre Asimov, que analisa o livro Fundação), conta a história da robótica em uma era onde robôs fazem parte da realidade e auxiliam os humanos em diversas tarefas. O escritor é um dos mais importantes nomes da Golden Age e sua obra cria uma mitologia em torno do desenvolvimento dessa tecnologia - narrativas que buscam transmitir um determinado conhecimento a partir de modelos da realidade.

As obras de ficção científica no período da Golden Age são otimistas com relação ao progresso tecnocientífico e buscam projetar o futuro de uma sociedade onde a tecnologia e a humanidade se misturam e coexistem de forma nem sempre pacifica.

Robôs são seres criados artificialmente e equipadas com um cérebro positrônico sendo capazes de apreender uma enorme quantidade de conteúdo em um curto período de tempo; alguns modelos são usados como mão de obra para tarefas pesadas e são portanto extremamente fortes. Os robôs de Asimov possuem um padrão comportamental amistoso e pacifico na maioria das vezes, o que cria uma relação de submissão aos os seres humanos, devido a existência das três leis da robótica, que são um robô não pode ferir ou por inação permitir que um humano seja ferido, um robô não pode desobedecer a ordem de um ser humano a não ser que a ordem entre em conflito com a primeira lei e por último, um robô deve preservar sua existência, desde que sso não entre em conflito com a primeira e a segunda lei.

O bom doutor, Isaac Asimov

O livro é um conjunto de contos que relatam acontecimentos importantes e curiosos para o evolução da robótica narrados pelo ponto de vista da dra. Susan Calvin, psicóloga roboticista que trabalhou durante a maior parte da vida na United States Robots & Mechanical Men Corporation a maior empresa do ramo no mundo.

O primeiro conto se passa em 1997 e relata a história de um dos primeiros modelos lançados pela U.S. Robots, um robô primitivo e mudo chamado Robbie. Nesse conto somos apresentados a uma época onde os robôs ainda eram uma novidade, custavam muito caro e onde os governos ainda limitavam seu uso a funções domésticas, no caso de Robbie cuidar de uma menina de 8 anos chamado Gloria.

A menina e o robô desenvolvem uma relação saudável, brincam horas a fio e acabam se tornando amigos inseparáveis, mas é a partir dessa forte conexão que se desenvolve o principal problema do conto, o temor das pessoas, aqui representado pela mãe Grace, diante de um ser artificial mais inteligente e mais forte do que os seres humanos.

As suspeitas cresceram a medida que a menina passava cada vez mais tempo interagindo com Robbie, Grace decide livrar-se do robô, o que acaba colocando a menina em um estado de depressão causado pela ausência de sua babá mecânica. Robbie pode ser um conto simples e em até certo ponto bobo comparado aos outros presentes no livro e ao resto da obra do autor, mas é o ponto de partida para um universo onde a desconfiança e os conflitos se tornam mais recorrentes e onde os robôs passam a exercer um papel cada vez mais importante na vida dos seres humanos.

O próximo conto “Andando em círculos” se passa em 2015 e é um bom exemplo de como os seres humanos podem se tornar dependentes da tecnologia, em uma situação extrema. Os acontecimentos relatados se passam com os pesquisadores Mike Donovan e Gregory Powell em uma base mineradora no planeta Mercúrio. Com o avanço na tecnologia foi possível enviar expedições para a exploração de minério e utilizar os robôs como mão de obra, porém algo dá errado, os suprimentos que fazem com que a base funcione de forma adequada acabaram e o único capaz de ajudar na reposição é um robô modelo SPD defeituoso.

É interessante notar o avanço na robótica, pois se Robbie era um robô que não conseguia falar, Speedy é capaz de ficar exposto a altas temperaturas e circular pela superfície do planeta em alta velocidade. Esse mal funcionamento pode causar danos irreversíveis a expedição além de colocar a vida dos pesquisadores em risco. É também nesse conto que as três leis da robótica aparecem pela primeira vez, são elas:

1ª — Um Robô não pode ferir ou por inação permitir que um ser humano seja ferido.

2ª — Um Robô deve obedecer um ser humano, desde que as ordens não entrem em conflito com a primeira lei.

3ª — Um robô deve preservar sua existência desde que isso não entre em conflito com a primeira e a segunda lei.

Um ano após os acontecimentos de “Andando em círculos”, Powell e Donovan são enviados a uma estação espacial e se defrontam com uma situação bastante incomum causada por um robô fanático. “Razão” é um bom exemplo de como a tecnologia pode se voltar contra os seres humanos. O robô Cutie demonstra curiodidade sobre sua existência, ele não acredita que foi criado por seres humanos, o raciocínio de robô o leva a conclusão de que seria impossível para seres tão imperfeitos criarem um ser superior e praticamente “perfeito” como ele. Seu criador só poderia ter sido uma entidade de maior sabedoria, o Mestre (que na verdade é apenas o conversor de energia da estação) e acaba sendo aclamado como profeta pelos outros robôs.

Apesar de ter confinado os pesquisadores aos seus aposentos não permitindo acesso a sala de controle, o robô não chega a causar problemas mais graves e no fim a estação funciona da melhor maneira possível. Mesmo com as três leis em perfeito funcionamento a revolta de Cutie mostra como os cérebros positrônicos podem se tornar imprevisíveis criando uma situação onde os seres humanos não possuem nenhum controle sobre a tecnologia que deveria servi-los.

“Penso, logo existo”

A imperfeição também é abordada em “É preciso pegar o coelho”, Powell e Donovan são enviados a um asteroide para analisar a situação de um robô defeituoso. Dave é um robô modelo DV-5 de quase 2 metros de altura que controla outros seis robôs por meio de ondas positrônicas. A função deles é trabalhar na extração de minério, porém os robôs apresentam um comportamento incomum quando ocorre algum tipo de emergência e quando não há nenhum humano por perto, o que acaba atrapalhando o funcionamento da estação. Nesse caso a falha ocorre devido a um erro no projeto. Dave precisa controlar os seis robôs imediatamente em situações de riscos e ele acaba fazendo isso ordenando que os outros robôs façam movimentos coordenados como passos de dança ou uma imitando uma marcha militar.

Em “Mentiroso” somos apresentados pela primeira vez a um caso onde a dra. Susan Calvin desempenha papel fundamental na resolução do problema. Herbie é um robô modelo RB-34 que possui uma característica especial, ele pode ler mentes humanas. Os matemáticos mais capacitados da U.S. Robots se reúnem para tentar resolver esse mistério juntamente com a dra. Susan Calvin. O robô sabe qual é a causa de sua anomalia mas decide não revelar pois ao fazer isso ele estaria infligindo a primeira lei porque causaria sofrimento psicológico aos humanos, que desejam descobrir por méritos próprios, porém a não revelação também causaria sofrimento já que eles desejam saber afinal. Esse paradoxo acaba sobrecarregando o sistema do robô que entra em curto-circuito.

Avançando para o ano de 2029, o conto “Um robôzinho sumido” se passa na Hiperbase onde se desenvolve a pesquisa para o desenvolvimento do Propulsor Hiperatômico. O problema central gira em torno de um robô que teve a primeira lei modificada em seu sistema cerebral. Essa modificação precisou ser feita porque os robôs impediam que os humanos entrassem em contato com qualquer quantidade de radiação o que era algo rotineiro no processo. Para eles esse contato representava um potencial perigo a vida humano indo contra a primeira lei, portanto a segunda parte da primeira lei que diz que um robô não pode por inação permitir que um ser humano seja ferido foi retirada da configuração original. Esse modelo NS-2, de nome Nestor 10 recebeu uma “ordem” para sumir e se escondeu em meio a 62 robôs do mesmo modelo, tornando impossível distingui-lo dos outros.

Uma série de testes são preparados e feitos com o objetivo de achar o Nestor 10, porém nenhum dá resultado. Nesse conto é evidenciado o confronto psicológico entre robô e ser humano á medida que os testes vão sendo frustados pelo comportamento corrompida da máquina e também a importância das leis da robótica, que funcionam como um mecanismo de dominação. A existência das três leis faz com que os robôs, criaturas mais rápidas, inteligentes e fortes se submetam as ordens dos seres humanos e a ausência de uma delas altera todo esse sistema, e dessa forma poderiam se revoltar contra seus criadores. É importante notar como uma simples modificação pode desencadear um estado de desequilíbrio, afetando todo o seu funcionamento do robô transformando-o em uma ameaça real devido ao seu comportamento compulsivo e sua vontade cega em tentar permanecer oculto. O Nestor 10 desobedece ordens, manipula os outros robôs e chega a tentar agredir fisicamente a dra. Susan Calvin, mas é impedido pelo que restou da primeira lei.

O conto “Evasão!” conta a história do desenvolvimento do motor de dobra espacial. O foco de Isaac Asimov sai dos robôs de fio e metal para os computadores e a existência de uma inteligência artificial que possui um conhecimento quase infinito capaz de calcular as equações mais complexas e impossíveis ao pensamento humano. A principal concorrente da U.S. Robots, a Consolidated Robots apresenta uma proposta inusitada, que consiste na resolução do problema que danificou o funcionamento da principal máquina pensante da empresa, o Superpensador. Os especialistas avaliam que essa questão poderia ser resolvida pelo Cérebro, inteligência artificial avançada mas o único porém é que isso pode envolver risco de vida aos seres humanos e assim infligir a primeira lei. Apesar de ser uma máquina, o Cérebro, diferentemente do Superpensador possui personalidade, o que o torna especial e apto para resolver esse dilema, que pode por em risco a vida de humanos e danificar seu funcionamento.

A nave criada pelo Cérebro é enviada ao espaço sem o conhecimento de seus tripulantes, Gregory Powell e Mike Donovan que foram chamados apenas para testar o motor. Sob o comando do cérebro se inicia o ato mais importante para a ciência até o momento. O processo de salto interestelar se inicia e a experiência que se segue beira o transcendental, com os dois cientistas “morrendo” e “presenciando” o outro lado da vida. O salto é um sucesso e os dois retornam a salvo para a Terra. O desenvolvimento do propulsor hiperatômico permitiu que o ser humano se expandisse para outros mundos através da viagem interestelar.

No conto “Evidência” a dra. Susan Calvin explica que depois da última Guerra Mundial o planeta deixou de lado o nacionalismo e se dividiu em Regiões. O que se seguiu após essa mudança foi uma Era de Ouro marcada por um longo período de prosperidade e estabilidade. A psicóloga explica que os robô foram um fator determinante para esse desenvolvimento e conta a história de um homem singular. Seu nome era Stephen Byerley e os acontecimentos narrados se referem a sua campanha para prefeito em 2032. Por ter um comportamento fora do comum surge a suspeita de que ele é na verdade um robô positrônico humanoide o que é proibido na Terra e poderia afetar a U.S. Robots, única empresa capaz de fabricar cérebros do tipo no mundo.

Byerley poderia ser um robô capaz de emular a aparência e as principais funções biológicas de um ser humano e apenas uma análise avançada como um exame de raios x ou um teste psicológico com base nas três leis seriam capazes de resolver essa dúvida. Ele se recusa a passar por esses testes e uma verdadeira campanha midiática é criada para aumentar a pressão da opinião pública, que acredita nas acusações. A situação chega a um ponto crítico quando é interrompido em um discurso por um homem que o ofende e duvida que ele poderia ser agredido pois isso infligiria a primeira lei, Byerley dá um soco no sujeito e acaba com os rumores sobre sua natureza robótica. Esse acontecimento se torna decisivo e o candidato acaba vencendo as eleições. Apesar de não ser de fato revelado, tudo leva a crer que ele realmente era um androide criado pelo verdadeiro Stephen Byerley que se feriu gravemente em um acidente. O avanço na tecnologia robótica já era capaz de criar orgãos sintéticos o que permitiria a criação de um androide, ser artificial que reproduz a imagem perfeita de um ser humano.

A inteligencia artificial é a mais perfeita criação humana

O último conto do livro se passa em 2052, em “O conflito inevitável” Stephen Byerley apresenta um quadro preocupante para a dra. Susan Calvin ao descrever uma série de anomalias nas quatro Regiões da Terra que compõem a Federação, o político se encontra no final de seu segundo mandato como Coordenador Mundial, e se monstra bastante pessimista com relação ao funcionamento das Máquinas, inteligências artificiais encarregadas de auxiliar os governos das quatro regiões. Byerley faz uma viagem de inspeção planetária com o objetivo de descobrir a origem desse desequilíbrio. Na Região Leste o principal problema é a demissão massiva de funcionários na usina hidropônica de Tientsin, na Região dos Trópicos ocorre um atraso de dois meses na construção do Canal do México, na Região Europeia as minas de mercúrio em Almaden apresentam baixa produção e finalmente na Região Norte há um excedente de mais de vinte toneladas na produção de aço. Byerley acredita que essas falhas ocorrem porque as ordens são ignoradas pelos humanos com o objetivo de instalar um estado de caos na Terra, mas na verdade é impossível enganar uma inteligência artificial tão avançada e isso só ocorre porque as máquinas assim permitem. Os robôs do começo do livro, personificadas pelo simpático e simplório Robbie, dão lugar a um cenário macabro onde o ser humano já não tem mais controle sobre o próprio destino e são guiados pelos computadores rumo a um futuro desconhecido.

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