3. a vida é boa e eu posso provar

Carolina Bataier
Piranhas
Published in
5 min readJul 9, 2020

amiga,

como vc tá?

meus planos mudaram, coisa pouca. ainda tô na bélgica. vou te contar e serei breve. mentira, conto é tudo. as australianas me chamaram pra uma baladinha de despedida, última noite delas. seria, também, minha penúltima noite aqui. fui.

a ideia era beber cerveja barata e dançar, fazer uma farra gostosa e, noite seguinte, um passeio tranquilo, comer uma coisinha, fim. pois bem. bebi a cerveja barata, dançamos, bebi mais cerveja barata, dançamos até o chão ao som de rock, entornei cerveja barata e em certo momento da noite eu tava conversando com um brasileiro, músico, que mora aqui faz uns anos, interessantíssimo. levou a gente numa festinha de apartamento, pessoas descoladas, dj, umas comidinhas, mais drinks, as australianas doidérrimas curtindo muito a despedida. elas são recém divorciadas, te contei essa parte? amigas de infância, viajando juntas depois de sei lá, dez anos casadas, uma tem filho e tals, descobriu que o marido é um babaca. a outra só cansou da vida a dois, haha. enfim, essa coisa louca e linda, mulheres se jogando no verão depois de um looongo inverno, ainda que seja num fim de primavera europeu numa cidade meio cinza. você já reparou como é maravilhosa uma mulher se divertindo sozinha? eu me apaixonei por elas, te juro. é isso, tô reflexiva. a festa rendeu, eu ataquei de dj, mandei umas brasilidades. os gringos piraram, o brasileiro, alan o nome dele, me chamou pra um café um dia desses mas eu tava de partida, né? ficamos assim: até a próxima esquina do acaso. foi uma bela despedida.

acordei morta de fome, perdi o café da manhã, fui buscar um lanchinho num mercado aqui do lado, não achei meu cartão. perdi na farra, certeza.

comi batata frita e fiquei três horas sentada no jardinzinho do hostel pensando na minha vida. tudo que tinha na mão era 53 euros e a conta do hostel pra pagar, sem meu cartão com todo meu dinheiro, eu sei lá como faz para pedir outro, enfim, esse desespero, imagina. consegui negociar por aqui, mais uma estadia e acerto depois. o recepcionista gatinho foi todo solícito, me explicou onde fica o banco, disse que me ajuda se eu precisar. vai dar para resolver, mas preciso esperar até segunda. dois dias pela frente com 53 euros na mão. fiz o quê? liguei o tinder, a única rede social permitida. porque sim. sem farras, vamos de dates.

fui passear nuns museus e combinei de tomar um café com um boy chamado claudio. o negócio, amiga, é que eu tava contando as moedinhas, segurando cada um dos meus euros porque vai que a coisa do cartão demora mais, então pedi um café modesto, nada de capuccino. fiquei lá esperando o rapaz, felizona porque o espresso veio com aquela bolachinha do lado. o moço, claudio, tinha uns óculos estranhos, uma coisa meio rapaz da TI, mas era bem bonito, olhar de rodrigo santoro, te juro. de cachecol xadrez, todo elegante, todo europeuzinho charmoso de cinema. e, melhor de tudo: conversa boa, fluiu, mil coisas em comum. o café foi no intervalo do trabalho, o moço tava filmando um documentário no museu, super interessante. combinamos de tomar uma cerveja a noite, quando ele estivesse liberado. eu, de novo, nervosa, contando as moedas, mas bebemos uma cerveja só, ufa, e ele me chamou para a casa dele, pertinho do hostel, veja só como as coisas são. o boy tava com fome, propôs uma janta, eu topei. óbvio.

apartamento pequeno, mas com uma salona, janela imensa, fiquei lá, olhando os vinis. tinha uma vitrola, chão de taco, um sofá velho, umas plantas meio morrendo, umas almofadas com capas feitas a mão por alguma vovó. eu acho que o hipster brasileiro é só uma cópia de qualquer jovem comum europeu. todo mundo aqui mora em prédio velho e gosta dumas coisas assim, discos, camisas xadrez, chapéu de feltro. se bem que o moço trabalha com audiovisual, ou seja, é hipster, não importa a nacionalidade. claudio abriu um vinho, ligou o som, me deixou na sala. sei lá, as vezes as pessoas só se entendem e aceitam que é bom aproveitar aquilo — o que quer que seja — porque não vai durar. já pensou nisso? acho que brisei demais, ainda tô inspirada por essa noite bonita. da janela, eu via um prédio alto, o único da cidade. tava iluminado, mudando de cor, roxo e azul. fiquei bebendo vinho e ouvindo umas músicas. claudio chamou um amigo para jantar com a gente.

bonito também, esqueci o nome mas lembro dos olhos dele, muito verdes, uma barba quase ruiva, aquela clássica beleza europeia. jantamos macarrão e ficamos falando de música brasileira. os gringos amam caetano e gil. o amigo até colocou pra tocar no spotify e claudio me falou que tem muita vontade de ir para o brasil conhecer o hermeto paschoal. ele sabia que o gil foi ministro da cultura e disse que achava isso muito genial. coloquei um som também, maria bethânia, a música do caetano. fiquei ali, numa sala quentinha comendo espaguete com queijo, bebendo vinho e olhando no horizonte um prédio mudar de cor, ouvindo que everybody knows that our cities were bild to be destroyed, e conversando com dois rapazes bonitos sobre as músicas do meu país. quando o amigo foi embora, eu fui também. aproveitei a carona, seguimos caminhando pela rua fria, ele empurrando a bicicleta, me acompanhou até a porta do hostel.

a vida é bonita, né? desculpa o textão, mas essa coisa de estar sozinha mexe com a gente. e é mais bonita quando a gente tá distraída, guimarães rosa já falou isso antes. de um jeito mais poético, certamente.

me conta da casa, da vida e do vizinho. é aquele? aquele mesmo que eu tô pensando? HAHAHA, aguardo as novidades. ansiosamente.

te amo, piranha. e tô com saudades. ❤

*

Fechou o notebook, guardou na mochila. Abriu o zíper da frente — um bolso — e tirou dali um quadradinho de chocolate embrulhado em papel dourado. Rasgou em pequenas lascas, mordeu o bombom pela metade, observou o licor escorrendo. Lambeu, enfiou na boca a outra metade. Percebeu o olhar do rapaz da recepção. Sorriu para ele. Tirou da mochila um espelhinho redondo e constatou os dentes manchados de marrom. Riu. Eu sou patética, pensou. Riu outra vez.

CAPÍTULO 4

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