4. Caderno de receitas

Carolina Bataier
Piranhas
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3 min readJul 24, 2020

Sentada no chão da cozinha, abriu a última caixa. Estava no canto há dias, mas, com a chegada do armário, acabaram as desculpas. Pratos, copos, taças, tudo no lugar. Faltava encher duas gavetas restantes, além da dos talheres. Numa, colocou dobrados os três panos de prato e os dois descansos de panela. Isso tem nome? Descanso, mesmo. A terceira ficou reservada para o conteúdo da caixa.

Dois livros de receitas. Num deles, a culinária regional do Brasil invadia as páginas em cores de peixes, ervas, hortaliças, raízes e ensopados. Noutro, pães e bolos dividiam mesas com flores e frutas. E cadernos, três, os últimos a passarem do fundo da caixa para o chão de azulejos. Com um carinho sobre a capa de tecido quadriculado, abriu o primeiro e leu: receitinhas de amor. Na primeira página, pudim. Na segunda, pão de queijo. Na terceira, molho de maracujá (para salmão ou frango, leu, em sua letra à mão). As anotações terminavam ali.

O segundo caderno tinha um casal de pássaros azuis na capa e papeis fugindo entre as páginas: rótulos de lata de leite moça, recortes de revista, pedaços de caixa de maizena, anotações variadas naquela escrita tão parecida com a sua. Encontrou a receita do doce de abacaxi e sentiu saudades dos almoços de domingo na casa da mãe. Semana que vem, quem sabe.

O espiral do terceiro caderno enferrujava. Na capa, uma moça de cabelos cacheados levava flores na cestinha da bicicleta. O vestido, esvoaçando com o vento, poderia ser lilás, laranja ou cor-de-rosa: o amarelado do tempo confundiu as cores. Na página inicial, com L alongando-se muito acima das demais letras, Ss de finais compridos e um T maiúsculo com exageradas voltinhas, lia-se: Bolos e Tortas. No pé da página, em grafia igualmente cheia de firulas, a assinatura: Ester, 1975.

Quando a avó morreu, logo após o enterro — ainda de olhos inchados e nariz avermelhado — pediu à mãe para irem até a casa. Colheu uma pitanga da arvorezinha do quintal, fez carinho no gato cochilando à sombra:

_ Quem vai ficar com ele, mãe?

_Vamos levar. Tiquinho vai sentir saudades dela.

Entrou na cozinha mordiscando a pitanga. O cheiro no ar, o pano de prato no encosto da cadeira, as duas xícaras descansando sobre a toalhinha de crochê esperando alguém guardá-las: tudo era como se a casa ainda não houvesse percebido a ausência.

Caminhou devagar entre os cômodos, entrou no quarto, parou diante do guarda-roupas, abriu a porta. Respirou fundo o perfume que saía dos casaquinhos de lã, cachecóis e cardigans pendurados. Nem sempre sabemos quando é a última vez que vamos sentir o perfume de alguém. Privilegiada por vivenciar aquela despedida, inspirou muito fundo e expirou uma lágrima. No canto, embaixo das roupas, encontrou a maletinha marrom. Pegou dali um álbum de fotos: festa de aniversário, viagem à praia, Natal, um churrasco no jardim, um filete de negativos nunca revelados. Guardou na bolsa as memórias.

De volta à cozinha, abriu a gaveta do armário e retirou o caderno:

_Esse é meu. É aqui que tem aquele bolo de coco.

A mãe riu:

_ Eu nunca consegui fazer.

_Ninguém consegue, mas eu vou tentar.

Nunca tentou. Já haviam passado três anos, quem sabe agora. Folheou as páginas. Bolos de chocolate, amora, tortas de limão, frango, ervilha, milho. Muitas massas, recheios e misturas das quais nunca provou o sabor.

Guardou, na gaveta, os livros e cadernos. Abriu a geladeira: coco ralado, leite, manteiga, açúcar, fermento, ovos. Faltava a farinha.

CAPÍTULO 5

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