33. Mergulho dentro

Carolina Bataier
Piranhas
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2 min readJun 21, 2021

O fio de azeite escorreu sobre as fatias de pão. Letícia levou a assadeira ao forno. Leo picava tomates.

— Pimenta?

— Um pouco. Me conta do retiro?

— Foram dez dias sem falar, ler, escrever.

— Não doeu?

— Esse é o propósito. No último dia, quando podíamos enfim conversar, meu colega de quarto contou que eu gritei muito nas três primeiras noites. Eu não lembro de nada.

— Deve ter sido dolorido para ele também.

Os dois riram. Leo empurrou, com a faca, os tomates para dentro da cumbuca. Ralou o queijo, colocou azeite, pimenta, manjericão.

— Chorei muito. No segundo dia, com medo de não conseguir ir até o fim. E no último dia, porque tinha acabado.

— Dez dias sem celular. Deve ser bom.

— Foi, demorei um pouco para conseguir ver as notificações quando voltei. Mergulhar dentro da gente é difícil, mas depois que acostumamos a estar lá, é bom. Dá preguiça de voltar. O mundo aqui fora tem tanta coisa. Gente chata, prazos, contas.

— O que tinha lá?

— Um bosque, um refeitório, os quartos…

— Não. Dentro de você. O que tinha?

— O que tem em todo mundo: trauma.

— Só?

— E amor.

Os ombros se tocaram, ela fez um afago nas costas dele.

— Mas isso eu sabia. — E abriu o forno.

O cheiro adocicado das torradas invadiu a casa. Colocou a assadeira sobre a mesa. Puxaram as cadeiras, Leo abriu uma garrafa de vinho.

— Sabe qual foi a primeira coisa que eu fiz quando sai de lá? Eu bebi uma cerveja. Sozinho, no bar mais perto de onde o ônibus me deixou.

— E o mergulho?

— Eu achei prazer, também, lá dentro. Aqui dentro. E precisava brindar isso.

*

CAPÍTULO 34

Este texto faz parte da história “O mundo é pequeno para quem é piranha”. Clique aqui para ler o primeiro capítulo.

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