36. Um museu sem paredes nem teto

Carolina Bataier
Piranhas
Published in
3 min readFeb 14, 2022

No mapa, a distância parecia menor. O erro foi não considerar que os quarteirões seriam maiores, cada um dava quase três dos nossos. Sentia o riozinho de suor deslizar pelo vale entre as tetas, mas pensou no trabalho todo: primeiro, tirar a mochila, colocar no chão, tirar o casaco, amarrar na cintura, depois ajeitar outra vez a bagagem sobre os ombros, seguir. O suor chegava ao umbigo quando escutou um assovio.

Três casas adiante, debruçada na sacada do segundo andar, a mulher acenava. A cabeleira preta escorria em ondas, balançando no ritmo da mão, inquieta no ar.

- Hello! Here!

Certo. Chegou. Só mais alguns passo. Parou debaixo da sacada, apontou para a porta. A mulher fez sinal para subir. O cheiro de massa assada a recebeu na metade do caminho. A porta de entrada estava aberta.

- Sorry — Marta gritou de longe e, num inglês cantarolado, explicou que não havia descido porque estava cuidando da focaccia no forno. Apareceu na porta da cozinha limpando as mãos num avental estampado com girassóis e mostrou todos os dentes num sorriso largo: — Bem-vinda.

- Obrigada, Marta. Prazer, Letícia — cumprimentou, abandonando a mochila no chão, ao lado do móvel estreito, envernizado, com espelho no topo. Chapelaria, era esse o nome? Há quanto tempo não via um desses? — Sua casa tem um cheiro bom.

Prendendo os cabelos num coque, a anfitriã pediu desculpas, outra vez em inglês. Explicou que arranhava o português, mas era melhor no espanhol. Letícia repetiu o elogio: Your house smells good. Marta esfregou outra vez as mãos no avental, depois mexeu os dedos longos no ar, convidando: venha, é para nós.

Letícia a acompanhou até a outra porta da cozinha. Saíram num terraço onde havia uma mesa redonda, cercada de vasos de barro: um pé de romã, vasinhos de suculentas, cactos, lírios. Marta colocou a assadeira no centro da mesa, entre a cafeteira, as xícaras e o cesto com pãezinhos cobertos de canela e açúcar.

- Ouvi dizer que brasileiros gostam muito de massas.

Mastigando o primeiro pãozinho, Letícia balançou a cabeça. Passou as costas da mão sobre os lábios, limpando o açúcar e a canela:

- Sim, bom, eu amo!

A anfitriã abriu outra vez aquele sorriso largo e, em pouco tempo, já eram amigas de infância. Recém divorciada, Marta passou a alugar um dos quartos da casa para juntar grana e colocar em prática um plano antigo: viver por seis meses no México, sem trabalho, sem preocupações, “apenas bebendo margaritas, comendo burritos e bronzeando as pernas”, disse, entre risos e goles de café.

Letícia contou do seu objetivo por ali: fazer um passeio noturno pelos pontos turísticos de Roma. Perguntou sobre o preço dos táxis. Marta bateu palminhas, entusiasmada e, como trabalhava até meia noite como atendente numa farmácia, propôs ser a condutora, por um preço justo.

- Afinal, há tempos não admirou a cidade.

*

Era como caminhar por um museu sem paredes nem teto. As ruínas iluminadas em azul, alguns casais, pequenos grupos de amigos, as ruas cada vez mais desertas. Marta cantarolava as músicas do rádio, Letícia mordiscava um pedaço de focaccia enrolado em guardanapo, o olhar fixo na paisagem correndo do lado de fora da janela.

Quando a motorista dobrou a esquina e parou diante da Fontana de Trevi, a passageira não se preocupou em engolir a massa antes de soltar a exclamação:

- Caralho, que coisa mais linda.

- Qué es ca-ra-lio — perguntou Marta, reforçando o acento no i.

Letícia riu e quis saber quantas línguas sua anfitriã era capaz de falar.

- Bem mesmo, só italiano. O restou eu brinco, mas estou estudado, aprendendo um pouco — ela respondeu, a frase começando no seu inglês temperado com o sotaque da língua nativa e finalizando num espanhol pausado, saboroso, de vogais alongadas.

- Caralho é um monte de coisa, mas agora é: uau! — Resumiu Letícia, abrindo a porta.

Marta desceu do carro e ajeitou a bunda sobre o capô, observando a moça caminhar em direção às águas azul claras, passos vagarosos, uma garrafa de vinho na mão. Letícia parou diante do monumento e virou para trás:

-Vem, também.

**
CAPÍTULO 37

Este texto faz parte da história “O mundo é pequeno para quem é piranha”. Clique aqui para ler o primeiro capítulo.

--

--