1. senta que lá vem sermão

Carolina Bataier
Piranhas
Published in
4 min readJun 18, 2020

oi, amiga.

eu chorei lendo seu e-mail, mas não foi só de emoção, a senhora não se empolgue tanto comigo. chorei também de dor e confusão pós-bebedeira, mas já te conto essa parte. antes, quero te falar uma coisa e eu juro que se você não der atenção eu vou te ignorar por três meses e não levo nenhuma lembrancinha. tô tirando forças do útero pra te escrever. sim, ressaca.

segura sua xícara de chá e senta que lá vem sermão: lembra quando pegávamos ônibus juntas e você ia pra aula de espanhol e eu pro curso de teatro? que, depois, você passava naquela livraria e eu parava na galeria pra paquerar o tatuador e até arrumei essa cereja horrível na virilha da qual me arrependo amargamente? naquele tempo, eu já sabia que vc iria brilhar, quantas vezes aliás te falei isso? mas tô aqui pra lembrar. a gente tinha 16–17 e vc já falava inglês, colecionava livros e tinha dado fora nuns 3 caras. eu só tinha dado, risos. quando não tava recortando receitinhas de bruxaria da todateen e parava um pouco pra pensar na vida, eu sabia que ali pelos 30 vc estaria linda, poderosa, com sua casa e uma carreira brilhante, um marido talvez pq naquela época eu acreditava, risos novamente. eu sempre soube e veja bem: foi seu aniversário de 30 anos, eu tenho certeza que você tava maravilhosa, eu não vi as fotos mas sei, sorridente, bêbada e cercada de pessoas muito deliciosas, TENHO CERTEZA. e entre elas havia essa maçã podre cujo nome me recuso a escrever neste email pois não quero correr de novo pro banheiro, me desculpa, mas se eu já não gostava dele antes, imagina agora. nem tudo é perfeito, mas, meu amor, minha deusa, minha inspiração, eu não admito que uma mulher maravilhosa como você, exatamente aquilo que imaginei para os nossos 30 anos (tirando o marido, ufa!), uma mulher que escolheu SOZINHA o próprio apartamento, que tem um carro com as parcelas pagas, luxo!, e um emprego bem legal, esteja com a cara inchada de choro por causa de um cara de 33 anos que mora com os pais e não sabe escolher sapato. por favor, mulher. foi sua festa, ele foi um babaca, ele tem saudades da ex, ele não te merece. tão babaca que estragou sua noite, pensa bem. ele não merece essas lágrimas de deusa, fim. e, obviamente, ele não estragou festa nenhuma porque daqui cinco anos você vai se lembrar dessa noite gostosa, cheia de pessoas maravilhosas e vai rir muito e sentir saudades. tenho certeza que os meninos te encheram de carinho e que a senhora tá com dor no joelho de tanto esfregar a bunda no chão, não me decepcione.

amiga, seguinte. os homens precisam de terapia. pra ontem. as mulheres também, mas a diferença é que a gente faz, vc mesma, há anos, tá aí com a cabeça boa, vc não pagou todas essas sessões com suzana pra deixar uma conversa ridícula num fim de noite te derrubar, hein? eles trazem aquela carga toda pras nossas vidas, haja banho de alecrim. me fala: quantas mulheres você já viu usando essa de problemas com ex? é ridículo.

então engole esse choro, que numa hora dessas já foi engolido. deve ser o que aí, madrugada? tô confusa. você vai ler de manhã, com seu chazinho de hortelã. estarei online na próxima hora aproveitando o wifi do hostel e ai de vc se me responder agora e eu souber que a senhora anda virando madrugada chorando por causa de macho medíocre.

sobre mim, vou ser breve, já gastei todas as força nesse textão, faça bom uso dele, imprime e põe na parede meu sermão ❤. fiz amizade com duas australianas recém divorciadas e ontem fomos conhecer os bares da cidade. tivemos a brilhante ideia de fazer um pub crow, aquela coisa genial de juntar um monte de turistas para passar de bar em bar e tomar uns drinks com desconto. as cervejas belgas são maravilhosas e no terceiro bar eu já tava achando todo mundo lindo, beijei um italiano do nosso grupo da via sacra dos butecos e quase me encantei por uma das australianas, toda bronzeada de sol, saradíssima, mas ficamos só na conversa, cheguei no hostel às 4h, dormi de maquiagem, acordei com cara de quati, desci correndo para não perder o café da manhã, me atacou aquela fome absurda da ressaca, devorei omelete e torrada com bacon, o atendente bonitinho que eu tava paquerando desde quando cheguei veio falar comigo finalmente!!!, me deu dor de barriga, precisei sair correndo para não me cagar na frente dele, risos. voltei pra mesa bem envergonhada e vim me esconder atrás do notebook, cá estoy yo. vi seu e-mail e senti tantas saudades, dei uma choradinha, sim, bateu aquela sensibilidade pós noitada. queria vc aqui pra rir comigo agora, eu tô um lixo, rs, cara amassada e toda a dor de cabeça do mundo neste instante, considerando desmarcar o passeio com as australian girls, comprar chocolates e voltar pro quarto dar uma dormidinha.

ainda fico por aqui mais cinco dias. te escrevo, tentarei ser mais presente, eu juro. te amo, bem-vinda aos 30, a vida é linda e os homens as vezes são uns trouxas.

bjos,

com bafo de ressaca

*

Letícia arrastou-se até a mesa do café da manhã, encheu um copo com suco de laranja, pegou mais uma torrada, voltou. Rosto apoiado na mão esquerda, passeava o mouse sobre a tela. Bebeu o suco num gole, mordiscou a borda do copo, enfiou a língua no cilindro de gelo, cuspiu de volta. Guardou o notebook na mochila, esbarrou de propósito no atendente parado ao lado da mesa do café. Bonitinho. Saiu para comprar chocolates.

CAPÍTULO 2

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