Em busca da paisagem perdida

Um ensaio confundindo referências e resultados

Marcelo Armesto Dos Santos
atrito
Published in
6 min readApr 23, 2018

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Lembro-me, agora, de uma das primeiras pinturas não figurativas que realmente me encantou: Construção em branco e preto, de 1938, de Joaquín Torres-García. E de uma das últimas pinturas com a qual fiquei obcecado antes de começar a pintar as paisagens: Fachada de uma casa, de 1914, de Egon Schiele. Entre esses dois marcos, o trabalho como designer me levou a conhecer a obra de Josef Albers e seus estudos de cor. No momento de reaproximação mais séria da arte, Sol Lewitt e o minimalismo foram influências importantes em meu pensamento. Mais recentemente, venho buscando outras relações com o trabalho, em artistas locais e artistas mulheres, como Gisela Waetge e Agnes Martin.

Lembro-me de quando conheci a escultura da Eva Hesse, chamada Accession II (1968), em que um cubo de aço aberto no topo tem suas paredes internas recobertas por finas tiras de vinil, como se o próprio cubo — frio e austero por fora — quando aberto revelasse seu interior quente e aconchegante. Foi um momento de epifania, em que percebi esse tipo de trabalho como uma resposta ao minimalismo, mantendo seus aspectos geométrico-cerebrais, por assim dizer, e revelando os sintomas de uma produção humana, que nas obras de artistas como Donald Judd ficavam em segundo plano. Outro trabalho de Eva Hesse que me chamou atenção foi Repetition Nineteen III (1968): dezenove objetos separados, espécie de tubos atarracados de fibra de vidro, todos com a mesma forma mas em que acidentes e deformações resultam em formas semelhantes porém não iguais.

Eva Hesse, "Accession II" (1968), aço galvanizado e vinil

Existe nos trabalhos minimalistas algo que se impõe evidentemente ao nosso olhar: sua convexidade, seu volume visível. O risco que advém daí é permanecer aquém da cisão pelo que nos olha no que vemos, em tornar a visão um exercício de fim em si mesmo, acreditando que o que vemos é o que vemos.

Estar além da cisão seria entender o olhar enquanto crença, em uma tentativa de superar tanto o que vemos quanto o que nos olha: negar a existência do aço, do volume e do vazio e criar um modelo fictício, relegando o visível a um segundo plano em prol de um invisível a ser previsto.

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Passado um ano e meio, volto a olhar para a primeira aquarela sobre paisagem que fiz usando a grade, as coordenadas geográficas e hora, quando ainda no caderno antigo. Consigo recuperar alguns dos meus pensamentos da época e do que me interessou naquele trabalho. Uma série de contradições: entre a rigidez da grade e do estêncil e a fluidez da aquarela; a busca da precisão tonal que resulta em uma paisagem vaga, etérea e diáfana; uma imagem vaga pontuada por coordenadas precisas. Outra coisa que me interessava era uma certa ideia de trabalhar pelo avesso: quando coloco o estêncil sobre a folha para pintar novos retângulos, não consigo mais enxergar o que já pintei. Além disso, a fluidez da aquarela gera uma série de acidentes que me atraem: vazamentos de cor que invadem retângulos vizinhos e se sobrepõe, manchas de contato do próprio estêncil, falhas de pigmentação, diferenças de tonalidade por conta do relevo do papel e de como os pigmentos fluem sobre ele, espaços vazios que surgem dos encontros dos retângulos de cor por conta de deslocamentos da matriz.

Penso agora se realmente eram meus pensamentos da época ou se é o que penso agora sobre o que pensava na época e esses pensamentos são uma soma do que já achava, com o que me disseram, subtraído do que esqueci. Pergunto-me se é possível não ser anacrônico mesmo quando se trata do próprio trabalho. Em relação a essa aquarela que acabo de ver, tenho certeza que sou anacrônico. Muitas coisas me separam de quando fiz esse primeiro trabalho; talvez a principal delas seja que naquele momento jamais imaginei que ele poderia estar sendo objeto desse texto. Ou imaginei e esqueci de ter imaginado. Será então possível que só não se seja anacrônico durante o momento de feitura de um trabalho?

É possível mantermos diversas atitudes perante a questão de sobre como olhar para arte. Pode-se, por exemplo, dar mais ênfase ao ato do fazer do que para a obra feita. Por outro lado, pode-se colocar a imagem e, portanto, a coisa feita, no centro da pesquisa e da relação com o mundo. Penso aqui sobre qual o papel do artista ao falar sobre seu próprio trabalho e qual dessas duas posições lhe é possível.

Por um lado, o artista é aquele que faz o trabalho e que tem uma série de intenções iniciais mais ou menos conscientes; por outro lado, o falar sobre o trabalho se dá sempre em um momento posterior — e chamo de momento posterior mesmo o exato instante em que o lápis deixa o papel, em que o pincel deixa a tela, em que o dedo libera o obturador, em que a mão solta o mouse, em que se vestem novamente as roupas civis, em que as mãos não mais interferem na matéria. Penso que nenhum trabalho de arte jamais é finalizado, mas sim, abandonado de forma mais ou menos arbitrária ou devido às contingências do mundo. E esse trabalho quando abandonado, tem sua própria materialidade, traçou caminhos talvez intuídos mas não necessariamente previstos e, muitas vezes, que criaram o inesperado para mim. A produção artística equivale a forçar uma pausa em um estado de indeterminação — como uma mão que forçosamente para uma roleta e espera pelo momento de parada da bola em alguma casa.

O pintor vive entre três passos que, hora o afastam da tela para que seja possível apreciar o que acabou de fazer, hora o aproximam para colocá-lo de volta em ação. É nesse pendular que vive o artista, oscilando freneticamente entre o papel do crítico e do produtor. Talvez seja justamente nesse entre, na cisão entre o papel do crítico e do produtor, da fenda aberta entre essas duas posições que emerge o artista.

Outros nós

As ideias de “cisão”, “anacronismo”, “sintoma”, "o que vemos e o que nos olha" e o tipo de abordagem do trabalho de arte que faço aqui estão inspirados em:

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

___. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

A abordagem poética e a ideia de trabalho como abandonado

VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de Poética. In: _________. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 179–192

___. Acerca do cemitério marinho. In: _________. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 161–168.

Os três passos do pintor

CORONA, Marilice. Autorreferencialidade em território partilhado. 2009. 282 f. Tese — PPGAV — UFRGS, Porto Alegre, 2009

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