Recorte sobre planos de saúde | Pesquisa sobre autistas na pandemia de Covid-19
Neste recorte, foram analisadas as diferenças de perfil e acesso a atendimentos médicos entre as pessoas autistas que possuem ou não plano de saúde.
O Comitê de Autistas contra a COVID-19 (CAVID) realizou uma pesquisa via questionário online de 26/05 e 21/06/2020 para entender o impacto da pandemia em pessoas autistas maiores de 12 anos. Esta pesquisa é a primeira de uma série que visa identificar demandas de autistas para gerar um manifesto que será compartilhado com o poder público.
Além de investigar aspectos no contexto da pandemia, o questionário de 16 perguntas buscou compreender o perfil das pessoas respondentes em diferentes dimensões, como mercado de trabalho, grau de instrução, acesso a atendimento médico ou psicossocial, aceitação da família e identidade de gênero.
Dada a riqueza de informações coletadas, os dados estão sendo analisados por recortes temáticos, para que cada tema possa ser explorado em profundidade. O William Silva já publicou o recorte sobre faixa etária e o Ricardo Oliveira sobre mercado de trabalho.
Comecei a atuar como voluntária ainda durante a coleta de dados e, neste artigo, trago a análise relacionada ao recorte sobre plano de saúde, correlacionando com outras vertentes da pesquisa.
Amostragem
A pesquisa teve 195 respostas, mas estou considerando 193 respostas válidas em minha análise, visto que duas pessoas respondentes eram pais/mães de autistas. A intenção foi analisar somente as respostas de pessoas autistas.
Como ainda não há estudos oficiais e precisos sobre a prevalência do autismo no Brasil, principalmente na fase adulta, não foi possível definir a significância estatística da amostragem. Porém, como um primeiro estudo, é uma quantidade considerável de respostas.
Método de análise
A variável principal da análise era a pergunta sobre a pessoa ter plano de saúde, onde ela poderia indicar “Sim” ou “Não”. A partir desta questão, realizei a segmentação e cruzamento com outras perguntas para identificar como o fato da pessoa possuir ou não plano de saúde impactava nas respostas.
Esta análise visava responder às perguntas:
- Qual o perfil de quem tem plano de saúde?
- Qual é a diferença de acompanhamento médico ou psicossocial entre as pessoas que possuem plano de saúde e as que não possuem?
- Ter ou não plano de saúde impactou no acesso a acompanhamento médico ou psicossocial?
- Autistas que não possuem plano de saúde e não fazem acompanhamento médico sentiram maior impacto da pandemia em suas rotinas?
Vamos começar entendendo o perfil das pessoas que possuem plano de saúde.
Quem são as pessoas autistas que possuem plano de saúde
A pesquisa teve um número tecnicamente equivalente de pessoas que possuem e não possuem plano de saúde: de 193 respondentes, 48% (92) possuem plano de saúde e 52% (101) informaram não possuir plano de saúde. Não foram feitas perguntas para entender se a pessoa possui o plano de saúde como titular ou dependente. Podemos assumir que as pessoas que trabalham podem ter plano de saúde como titulares.
O perfil das pessoas é similar nos dois grupos quanto ao diagnóstico e à faixa etária: a maioria são autistas com diagnóstico formal de 19 a 40 anos. Vale salientar que, entre os autistas com diagnóstico formal (136), exatamente metade não possui plano de saúde. Já entre os autistas com autodiagnóstico (48), a maioria (62,5%; 30) não possui plano de saúde.
Em relação à identidade de gênero, os perfis se diferenciam entre os grupos: 50% dos autistas que possuem plano de saúde se identificam como mulher (cis ou trans), enquanto 37% se identificam como homem (cis ou trans) e menos de 8% indicaram identidades de gênero como não binário, gênero fluido ou agênero; dos que não possuem plano de saúde, pouco mais de 45% se identificam como homem, enquanto cerca de 40% se identificam como mulher e 9% descreveram outras identidades de gênero.
Nota: não realizei uma análise mais aprofundada em questões de composição familiar, perfil demográfico, profissão e orientação sexual.
A Figura 1 apresenta um infográfico comparando o perfil das pessoas que possuem e não possuem plano de saúde.
Plano de saúde vs. inserção no mercado de trabalho
Ao relacionar a informação sobre ter plano de saúde e empregabilidade (Figura 2), identifiquei que pouco mais da metade dos autistas que possuem plano de saúde trabalham (53,3%; 49) e pode-se assumir que o plano de saúde é provavelmente um benefício trabalhista.
Quase metade (47%; 43) dos autistas que possuem plano de saúde mas não trabalham podem ser dependentes do plano de seus pais/mães ou companheiros(as). Dos autistas que não possuem plano de saúde, 62% (63) não trabalham e 38% (38) trabalham.
A presença da pessoa autista no mercado de trabalho pode impactar em possuir um plano de saúde e ter acesso aos tratamentos. Se a pessoa autista trabalha, há mais chances de possuir um plano de saúde e ter acesso a acompanhamento médico ou psicossocial, como será mostrado no próximo tópico.
Porém, essa diferença ainda é pequena. De cada 10 autistas que trabalham, podemos estimar que somente 5 ou 6 teriam plano de saúde.
Plano de saúde vs. acompanhamento e atendimento médico ou psicossocial
O impacto da falta de plano de saúde começa a ser percebido nas questões sobre acompanhamento médico/psicossocial e acesso a atendimentos.
Das 92 pessoas autistas que possuem plano de saúde, 82% (75) fazem acompanhamento médico/psicossocial, enquanto isso acontece somente com 46% (46) dos 101 autistas que não possuem plano de saúde (Figura 3).
Para fins de comparação, podemos dizer que 8 a cada 10 autistas que possuem plano de saúde fazem acompanhamento médico, enquanto esse número cai para 4 ou 5 a cada 10 quando a pessoa não possui plano (Figura 4).
Ao perguntar se a pessoa teve acesso a algum atendimento médico ou psicossocial online durante a pandemia desde que começou a quarentena, a maioria de respondentes apontou que não teve nos dois grupos, mas diferença foi consideravelmente maior entre autistas que não possuem plano de saúde. Enquanto 51% (47) das pessoas que possuem plano de saúde não teve acesso a atendimentos online na quarentena, este número sobe para 71% (72) entre os que não possuem plano de saúde (Figura 5).
As pessoas que possuem plano de saúde e já faziam acompanhamento, continuaram a ter acesso a atendimento médico ou psicossocial de forma online. Das 75 pessoas que possuem plano de saúde e já faziam acompanhamento médico ou psicossocial, 57,3% (43) tiveram atendimento (Figura 6).
Entre as 46 pessoas que não possuem plano de saúde mas faziam acompanhamento médico ou psicossocial, somente 45,6% (21) tiveram atendimento online após o início da pandemia. Porém, mesmo com acesso a atendimento, estas pessoas relataram diversas barreiras que elas recomendaram ser abordadas no manifesto:
- Despreparo dos profissionais de saúde;
- Dificuldade em cumprir os tratamentos médicos;
- Dificuldade de acesso aos remédios;
- Falta de inclusão, acessibilidade e diagnóstico para pessoas de baixa renda e autistas adultos;
- Atendimento online de forma desigual em comparação ao atendimento presencial.
Plano de saúde vs. impacto da pandemia na rotina
Ao questionar se a pandemia provocou mudanças drásticas na rotina, foi possível observar que a pandemia afetou igualmente autistas que têm ou não plano de saúde (Figura 7), assim como respondentes que fazem ou não fazem acompanhamento médico/psicossocial (Figura 8).
Analisando os diferentes cenários, a pandemia provocou mudanças para uma média de 85% dos respondentes, portanto, possuir plano de saúde ou fazer tratamento não foi determinante neste quesito. Mesmo com acesso a atendimentos, pode-se perceber que este tem sido um período difícil e desafiador para grande parte das pessoas autistas, pela quebra abrupta de rotina.
Considerações finais
O plano de saúde pode ser um facilitador na vida da pessoa autista, permitindo que ela mantenha o acompanhamento médico mesmo à distância. Porém, isso não pode se restringir ao atendimento particular por meio de planos de saúde: o acompanhamento médico ou psicossocial, seja presencial ou online, precisa estar presente em políticas públicas.
Os resultados apontam também que a maioria das pessoas que não teve atendimento médico durante a quarentena não trabalha no momento e, consequentemente, não possui plano de saúde. Dessa forma, a não inclusão da pessoa autista no mercado de trabalho pode dificultar o acesso a tratamentos médicos ou psicossociais no cenário atual e, com isso, impactar na qualidade de vida.
Vale ressaltar que somente o acesso aos tratamentos médicos ou psicossociais não é suficiente. É preciso se atentar se eles estão sendo feitos de forma apropriada, adaptada às necessidades de cada pessoa e, sobretudo, de modo respeitoso. Vários autistas apontaram a falta de acompanhamento online, o tratamento desigual, a dificuldade no acesso às terapias, a ausência de tratamentos e a falta de acompanhamento médico pelo SUS.
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