Cemitério de Consoles | Sega Saturn (1994): o começo do fim para a Sega

Envolto em problemas internos e pagando caro por uma série de decisões ruins, o console 32-bits da Sega arrastou a gigante do posto de líder de mercado a um amargo terceiro lugar.

G. G. Hoffmann
Aventurine Brasil
18 min readOct 23, 2018

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Tendo realizado a transição dos Arcades para as salas de estar de forma espaçada e gradual, a Sega conseguiu ao longo dos anos 1980 resultados progressivamente positivos conforme foi aperfeiçoando seu maquinário. Na passagem dos tímidos SG-1000 e Master System ao bem-sucedido Mega Drive/Genesis, a empresa japonesa cresceu confiantemente, em especial em territórios estrangeiros: Reino Unido, França, Itália, Estados Unidos e Brasil estavam entre os locais onde a companhia ocupou por certos períodos a almejada liderança de mercado.

Porém, a “vitória em casa” ainda permanecia um objetivo distante: mesmo alcançando o segundo lugar em vendas, a empresa não conseguira superar a eterna rival Nintendo, representando uma ameaça bem menor à hegemonia do encanador bigodudo no quintal de casa se comparada ao prestígio conquistado em terras além-mar. Porém, essa situação estava prestes a mudar. Em vários sentidos — nem todos eles muito positivos.

O Sega Saturn, aguardado console 32-bits da empresa, chegou com tecnologia de ponta após um histórico de produção difícil. Jogando para trás as limitações dos periféricos Sega CD e 32X, o console conseguiu finalmente ter o apelo necessário e se tornar um sucesso indiscutível no Japão, vendendo milhões de unidades com facilidade e ocupando por um bom período a posição de liderança. Vitória da Sega em casa, finalmente!

O detalhe deprimente: enquanto isso acontecia na terra do sol nascente, a base sólida que a empresa havia conquistado ao longo de dez anos nos territórios estrangeiros ruiu completamente. O console 32-bits perdeu feio de seus competidores diretos, a credibilidade da empresa tornou-se irremediavelmente manchada e, com isso, iniciou-se a crise interna que levaria à sua derrocada enquanto produtora de hardware.

No Cemitério de Consoles de hoje, visitaremos a lápide do glorioso Saturn: um indiscutível fracasso e, simultaneamente, um dos maiores sucessos da Sega.

Após assistir a esse comercial uma única vez: “Acho que vou vender meu PS4 pra poder comprar um Saturn branco!”

Ouriço triunfante

A passagem da quarta para a quinta geração de consoles, em meados dos anos 1990, foi um período atribulado na indústria do entretenimento eletrônico. Era um momento de transição e incerteza, com muitas empresas entrando e saindo de um mercado em expansão — ter cautela seria razoável, mas nada recomendado. Acompanhar as tendências e se antecipar às transformações alucinantemente rápidas a nível mundial certamente não era tarefa fácil mesmo para uma empresa estabelecida já há dez anos no mercado.

Desde o início de suas empreitadas no ramo dos videogames, a Sega visou sobretudo um embate competitivo com sua conterrânea nipônica Nintendo, número 1 no mercado doméstico e tendência mundial. Após superar a vice NEC e seu inicialmente poderoso PC Engine, a dobradinha Sega/Nintendo passou a ocupar a maior parte do terreno de disputas do mercado, dando origem a uma das mais icônicas rixas de toda a história da indústria. Em 1993, após quase meia década de disputa, ambas as empresas procuravam reagir às novas tendências emergentes: as tecnologias para renderização 3D e o uso de mídias ópticas para a distribuição de software. Um erro em qualquer uma dessas frentes poderia significar a falha na transição para os cobiçados 32-bits.

“O futuro é assim mesmo, surpreendente e imprevisível.” — nem mesmo as desenvolvedoras sabiam o que esperar do dia de amanhã! (Em tempo: tem algo mais “começo dos anos 1990" do que comparar a chegada do Sega CD à queda do Muro de Berlim?)

No Brasil, a distribuição da Tec Toy conseguiu se adiantar e conquistar um alcance absoluto que deixou o NES (e seus primos paraguaios) a comer poeira. A unificação da distribuição de produtos Nintendo sob a Playtronic balanceou um pouco mais as coisas, mas a liderança da azulona não chegou a ser contestada, sendo nosso mercado um dos mais consolidados para a gigante japonesa.

Porém, cabe levar em conta que nossa Tec Toy apenas publicava e adaptava os materiais da Sega, situação que se repetia nos territórios europeus. No que cabe à corporação propriamente dita, as decisões eram tomadas pelas duas divisões mundiais: a japonesa Sega Games Co., Ltd e sua subsidiaria norte-americana, Sega of America, Inc..

Em 1993, o ouriço azul era símbolo de vitória.

Essas duas cabeças, entretanto, não percebiam o momento de mudança da mesma forma: a primeira se via como uma empresa ainda na retaguarda, inclinada a investigar possibilidades de ingressar de forma triunfante na próxima geração com um console de alto custo capaz de expandir sobre as limitações do Mega Drive; a segunda, por sua vez, desfrutava com cautela de uma relativa liderança de mercado e, de olho nas tendências mundiais, tentava entender os próprios acertos e evitar possíveis movimentos precipitados.

Nos primeiros anos da década de 90, foi sob a liderança do executivo veterano Tom Kalisnke que a Sega of America conquistou sua boa posição de mercado. Após vencer a hegemonia do NES e resistir bravamente contra o avanço do Super Nintendo, a subsidiária ocidental conseguiu manter com crescimento constante uma ótima fatia do mercado norte-americano, capitaneando os esforços ocidentais e representando assim o lado mais bem-sucedido da Sega.

Tom Kalinske & Knuckles — hegemonia seguista nos States.

Assim como a Nintendo já se aventurara a explorar a possibilidade de um sucessor ao SNES, no projeto malfadado intitulado Nintendo PlayStation (que acabou gerando como cria o maior pesadelo da dobradinha hegemônica), a Sega buscava delinear seus próximos investimentos para consoles domésticos. Seu console 32-bits precisava cumprir os requisitos necessários para deter o fôlego do maratonista SNES, e antecipar as novidades trazidas pelo sucessor da Nintendo. Além disso, novos players invadiam as prateleiras: a dupla 3DO e Atari Jaguar, especificamente, preocupavam ambas as diretorias da casa do ouriço.

Perturbações no campo gravitacional

Enquanto o projeto Mercury tinha dado origem ao apenas relativamente bem-sucedido Game Gear, o sistema solar da Sega contava com outros corpos celestiais para reforçar suas investidas. Corpos celestiais até demais. O projeto principal de console da próxima geração, uma dupla de aparelhos codenomeados Jupiter e Saturn, encontrava-se em estágio avançado de desenvolvimento, com as pesquisas capitaneadas pela sede nipônica da empresa.

Mesmo com dois consoles, dois periféricos e dois portáteis, a Sega se sentiu bem confortável em anunciar não um, mas DOIS novos consoles de 32-bits. E eles queriam ainda mais!

Além deles, no campo gravitacional caótico do portfolio da empresa se faziam presentes o projeto Mars, que desenhava um add-on 32-bits para estender a vida útil do bem-sucedido Mega Drive e o projeto Venus, portátil que sucederia o Game Gear trazendo os títulos do Mega diretamente para o bolso do jogador. Futuramente, o projeto Neptune integraria o Mega Drive ao upgrade Mars (que seria renomeado 32X na ocasião do lançamento), dando origem à versão definitiva do aparelho — projeto Neptune, uma fusão slim do Mega com o 32X.

O que nos parece uma desnecessária complexidade pode ser melhor compreendida se levarmos em conta que a divisão em “gerações” como estamos acostumados a perceber hoje não era um conceito tão claro à época, sendo que a durabilidade variável dos sistemas e o momento de imprevisibilidade do mercado ditavam que a diversificação do risco era a melhor alternativa. Assim, do mesmo jeito que se tratava de não investir tudo em um console de alto custo (3DO manda um abraço), propiciando uma “ponte” ao consumidor mediano na forma de um sistema 32-bits mais barato, também havia certa relutância em fazer a conversão dos cartuchos para os CDs.

O primeiro protótipo do Saturn apresentava-o como um sistema duplo CD-ROM/Cartuchos. A versão final, por sua vez, relegou o slot do cartucho a periféricos, rodando os jogos exclusivamente a partir do CD.

Quando foi inicialmente apresentado, o console next-gen da Sega foi desenhado tendo em mente a utilização tanto de cartuchos ROM quanto da novidade representada pelos discos ópticos. O Jupiter, mais barato, operaria somente com cartuchos, enquanto o Saturn, opção mais avançada, traria tanto o drive de cartuchos quanto o leitor de CDs. Com o desenvolvimento do projeto, a ideia do Jupiter acabou sendo deixada de lado em favor de um sistema focado na tecnologia óptica. Uma versão mais simples e econômica do projeto cumpriria esse papel: o Mars/32X trazia uma arquitetura intermediária entre o Mega e o futuro Saturn, a um preço relativamente acessível. Foi a filial norte-americana quem mais se interessou pela ideia, investindo pesado no desenvolvimento do 32X, visando vitaminar o ainda forte Genesis para as provações que estavam para chegar.

Mega Drive em 1994: a busca pelo padrão Arcade e a inventividade da tecnologia lock-on.

Duas cabeças pensam pior do que uma

No entanto, de maneira geral, o verdadeiro foco de ambas cabeças (ocidental e oriental) da Sega não podia estar mais distante do 32X. A chegada iminente do Sony PlayStation causava preocupações crescentes, em especial no mercado ocidental. Com sua tecnologia robusta e acessível de renderização 3D, o PS assustou até mesmo o assertivo Tom Kalinske, que procurou reportar à matriz japonesa suas preocupações a respeito da arquitetura do Saturn. Focado no processamento 2D, o projeto falhava em adereçar as tendências à tridimensionalidade que ele percebia como mais fortes no mercado ocidental, e lançava mão de uma estrutura de processamento desnecessariamente complexa para conseguir seus resultados.

O bom-senso sugeriria que seu sucesso indiscutível à frente da companhia nos EUA lhe daria credibilidade, porém Kalinske foi sistematicamente desacreditado pelo comitê diretivo da Sega, que reportadamente não moveu uma palha no sentido de levar em conta seus feedbacks. Não era nenhuma novidade: o cara já havia tido que recorrer à pura insistência para garantir algo tão simples quanto incluir Sonic the Hedgehog no lugar de Altered Beast como jogo do bundle básico do Genesis — decisão que se provou um acerto colossal no longo prazo.

O PlayStation embarcou na agressividade típica das campanhas da Sega, e chegou se autodeclarando “mais poderoso do que Deus”. A Sega comprou a ideia, e tratou de equipar seu hardware da maneira que pôde para enfrentar a ameaça divina!

Palpitar em relação ao hardware, no entanto, se provou um passo além do que um “reles CEO” deveria ser capaz de propor na empresa. Com o foco dividido em tantos projetos, a Sega enfrentava sua maior e verdadeira cisão no racha interno entre suas metades ocidental e oriental. Kalinske articulou por conta própria parcerias de ouro, na tentativa de alavancar novas possibilidades ao Saturn: um novo processador gráfico em parceria com a Silicon Graphics e uma parceria com a Sony para um hardware em conjunto foram os principais projetos dele recusados pela Sega do Japão. Péssimas escolhas: o hardware da Sony acabaria sendo o grande algoz do Saturn no Ocidente, enquanto a Silicon Graphics teria um papel chave como parceira no desenvolvimento do bem-sucedido Nintendo 64.

Os problemas identificados por Kalinske diziam respeito à arquitetura excessivamente complicada do console. Dispondo de processadores duplos de som e vídeo, a estrutura do processamento ainda remontava demais ao modelo de funcionamento 16-bits e não incorporava melhoras básicas que poderiam otimizar o desempenho. Por exemplo, o processamento gráfico separava o VDP1 para sprites e o VDP2 para backgrounds — possibilitando uma miríade de cores e efeitos à disposição do programador, ao custo de um verdadeiro pesadelo programístico em dez atos. O PS apresentava menos robusteza, mas ganhava pela extrema facilidade em se obter quaisquer efeitos desejados, notícia que certamente já fazia derreter o coração dos programadores da época.

Processadores, muitos processadores! 1. CPU: 2x Hitachi SH-2 @ 28.6 Mhz; 2. Processadores de Video: VDP1 e VDP2; 3. Processadores de som: Motorola 68000 @ 11.3 Mhz e chip customizado com Yamaha FH1 @ 22.6 Mhz.

Priorizando a força bruta, a companhia japonesa respondeu ao sucesso da Sony em desenvolver o processamento 3D no PlayStation duplicando a CPU, que foi de um para dois chips Hitachi SH-2. Curiosamente desdobrando os eventos do mundo real nos circuitos do novo console, o fato é que o processamento “de duas cabeças” apenas adicionava uma nova camada de complexidade a um design já conturbado.

O foco da abordagem de cada metade da companhia refletiu as diferenças de filosofia e agudizou ainda mais o cisma. Com a agenda de lançamentos desordenada, a SoJ deserdou o pobre 32X praticamente no dia de seu nascimento — o qual ocorreu de forma praticamente concomitante ao Saturn em terras japonesas, no final de 1994. A SoA, por sua vez, lançou o 32X no mesmo período, mas guardou a introdução do Saturn para o sábado distante de 2 de setembro de 1995, data que foi nomeada “Saturnday”, em trocadilho com saturday.

Além de precursor absoluto dos jogos de luta 3D, o primeiro Virtua Fighter trouxe uma qualidade revolucionária de audiovisual padrão Arcade para o âmbito doméstico.

Mesmo com uma biblioteca absurdamente restrita de jogos, o 32X parecia brilhar muito mais aos olhos da SoA do que na matriz japonesa, onde o ótimo desempenho inicial do Saturn ofuscou totalmente o add-on intermediário. Quem diria: um aparelho completamente novo trazendo pela primeira vez títulos com qualidade literalmente de Arcade para a sala de estar era mais interessante do que um periférico mal-servido de títulos para um console pouco popular! “O futuro é mesmo imprevisível”, diriam os executivos da SoJ, antes de prosseguir com um silencioso “chega pra lá” no aparelho em favor do novo favorito Saturn.

Já a SoA tinha consciência de que ignorar o Genesis — com sua dominância expressiva de mercado — em favor do incerto e caro Saturn não era uma opção cogitável. Investindo pesado na publicidade do periférico e depositando esperanças em que a sólida (e ainda crescente) base instalada do Genesis trouxesse uma adesão que se redobrasse em interesse por parte das produtoras, a filial ocidental aproximava-se vagarosamente do “Saturnday” com assumida cautela.

Porém cautela não era bem o que a SoJ tinha em mente…

Virtua Fighter, título de lançamento que vinha no bundle junto com o Saturn, foi lançado também para o 32X. Embora a versão de Saturn fosse claramente superior, a competição interna não foi interessante, no mínimo enfraquecendo a percepção do título como um exclusivo next-gen.

Sony vence a primeira E3 da história

Maio de 1995. A primeiríssima edição da E3 comemora sua independência em relação à ECS. Um Tom Kalinske levemente apreensivo, suado e em certos momentos visivelmente contrariado fala longamente em uma palestra excessivamente acadêmica que nos faz pensar sobre o quanto a feira mudou desde suas origens. Encerrando sua fala, um anúncio pra deixar todos os momentos “épicos” de nossas E3 recentes no chinelo: o Sega Saturn estava efetivamente sendo lançado naquele momento — disponível “a partir de agora” em distribuidores selecionados!

E a gente achando que o lançamento instantâneo de Fallout Shelter foi uma jogada inesperada.

O anúncio pegou todos de surpresa. Literalmente todos, incluindo: desenvolvedoras third-party que pensavam que seus projetos atuais seriam launch titles; consumidores na expectativa e preparação para o aguardado (e agora repentinamente cancelado) “Saturnday”; departamento de publicidade da Sega, que preparava uma campanha massiva para aquecer os ânimos para o lançamento; distribuidoras como o Walmart, Best Buy e a KB Toys, que foram deixadas de fora do novo acordo e ficaram a ver navios e a ter que lidar com consumidores em busca de um produto absurdamente escasso.

A primeira vítima do golpe de marketing fora o próprio Kalisnke, o qual se opôs veementemente ao plano, concebido pela SoJ para fazer frente ao avanço implacável do PlayStation. Eles tinham razão em temer o console da estreante, porém a tática foi descuidada e trouxe mais malefícios do que benefícios. Anunciado a $399, em bundle com Virtua Fighter, o console roubou a atenção da feira… por algumas horas. Na conferência da neófita Sony, o presidente da SCEA foi chamado ao palco para uma fala especial. Uma palavra bastou para desarmar o discurso de uma hora de Kalinske:

“$299."

Assim, a edição original da feira acabou sendo desastrosa para a Sega, sendo que seu resultado final, no curto prazo, ficou entre um Tom Kalinske ainda mais desacreditado com a gerência japonesa e o problema de lidar com uma demanda alta a qual não tinha capacidades de atender naquele momento. A logística de distribuição era incapaz de fazer as poucas unidades do produto chegarem até as mãos dos interessados — e nada pior do que um produto caro e inacessível para fazer frente a uma alternativa mais barata e plenamente disponível.

O lançamento do PlayStation acabou deixando ainda mais marcadas as diferenças entre os mercados ocidental e oriental. Com o hardware já consolidado, era a hora das divergências em termo de software tomarem forma. Com a tecnologia avançada, novas possibilidades se apresentavam para os desenvolvedores do mundo todo e as sensibilidades ocidentais pareciam se diferenciar das expectativas do mercado japonês de uma forma que a Sega não foi capaz de antever.

Segata Sanshiro vs. Deus

Representada pelo carismático “mascote” Segata Sanshiro, a campanha do Saturn no Japão teve sucesso em ir ao encontro das expectativas dos consumidores. Interpretado por Hiroshi Fujioka (ator lendário das séries tokusatsu responsável por interpretar Takeshi Hongo, o primeiríssimo Kamen Rider), Segata Sanshiro é um mestre em artes marciais que viaja o mundo com um Saturn branco nas costas, espancando aqueles que insistem em não jogar no console. Além de ser uma das coisas mais fantásticas a serem produzidas no ramo da publicidade dos videogames, Segata representava uma campanha bem humorada de uma Sega quase hegemônica frente a uma Sony inicialmente desacreditada e uma Nintendo ainda restrita ao SNES. Porém, isso pouco reflete a imagem que nós tivemos do console aqui por essas bandas. Qual seria o diferencial, o segredo da força de Segata Sanshiro?

Num momento inicial, a busca pelo “padrão Arcade” parecia ser o fator orientador do uso das novas tecnologias 3D. A ausência do tradicionalíssimo gênero plataforma no lançamento de ambos consoles é emblemática desse efeito, indicando a ausência de parâmetros para a conversão da jogabilidade bidimensional em um mundo de polígonos. Todos sabem das dificuldades que a enxurrada de mascotes passaria nos próximos anos ao tentar se aventurar no plano 3D — seria apenas dois anos mais tarde, em 1996, que os títulos Crash Bandicoot e Super Mario 64 chegariam lá. De forma semelhante, no campo dos RPGs, Wild Arms demoraria o mesmo tempo para fazer o uso dos polígonos em um título de sucesso.

Exemplo de um Top 10 característico para o console: primazia completa da jogabilidade Arcade.

Ou seja, aos consoles caseiros, por hora, restava recriar os gêneros típicos do Arcade: corrida, luta, shooters e simulações em geral. Prova disso é que a SoJ designou justamente sua divisão de arcades para desenvolver os títulos de ponta para a investida 32-bits nos consoles. Foi o caso da AM6, que desenvolveu um dos principais exclusivos do Saturn, a série Panzer Dragoon, um rail-shooter 3D que trazia uma abordagem inventiva ao gênero para o console doméstico. Já a AM2 cuidava de portar títulos com fidelidade completa aos arcades, como o bundled Virtua Fighter, Daytona USA, Virtua Cop, Fighting Vipers e desenvolver exclusivo como o bizarro Fighters Megamix.

Claro que o PlayStation também se serviu de sua cota de títulos ao estilo Arcade — inclusive, em um momento inicial, o hardware menos potente e mais acessível provou-se vitorioso em um embate direto icônico: embora Daytona USA fosse o software superior nos fliperamas em comparação ao ainda sim decente Ridge Racer, o port para o PS tinha uma fidelidade audiovisual que o fazia parecer melhor que o concorrente, que penava para rodar no Saturn.

No entanto, com o tempo, o Saturn ganhou espaço e acabou sendo o vencedor a longo prazo quando o assunto eram ports dos arcades. Tudo isso graças ao slot para cartuchos vestigial do Jupiter, que agora comportava as utilíssimas expansão de RAM. Para títulos arcade badalados como as séries Street Fighter e Versus da placa CPS-2 da Capcom, ou King of Fighters e Metal Slug da placa Neo Geo da SNK, a supremacia 2D do Saturn ficava mais do que clara, mediante um empurrãozinho estratégico da expansão de RAM. Porém, se a briga começou nos arcades, não era ali que ela estava destinada a terminar. A experiência própria do console doméstico exigia maior variabilidade, como a geração 16-bits já havia ensinado. O Saturn poderia ser a máquina perfeita para esses ports, mas as expectativas do consumidor ocidental já estavam partindo para outra.

Se no Japão alguns importantes jogos “de nicho” como Sakura Wars, Puyo Puyo, Super Robot Wars, Langrisser e Mobile Suit Gundam complementavam bem os ports dos fliperamas, a inexistência de tais títulos no Ocidente provou-se um desafio para o Saturn. Somando a facilidade de programação e a agressividade estratégica da Sony, o PS recebeu desde muito cedo títulos importantes que davam pistas do futuro dos games nos consoles domésticos para além da jogabilidade arcade, importando a complexidade vista nos títulos de ponta dos PCs. Twisted Metal, Destruction Derby, 2XTreme e PaRappa the Rapper, por exemplo, foram jogos lançados logo ao início do ciclo do PS1 que traziam inspiração em gêneros típicos do arcade, mas narrativas e complexidade mais alinhadas com a experiência de console.

A situação se agravou com a saída de Kalinske da diretoria da SoA. Em 1996, desmotivado pela falta de credibilidade e erros impostos pela matriz japonesa, o executivo deixou seu cargo, iniciando um movimento de reestruturação interna que custou tempo e foco que a companhia não tinham para oferecer. As administrações que se seguiram apenas agudizaram mais ainda o abismo entre o Saturn vencedor japonês e a estranha máquina cara que se oferecia como alternativa menos confiável ao PS no ocidente. O boicote à localização de títulos considerados “japoneses demais” apenas se consolidou de vez sob as chefias de Shoichiro Irimajiri e Bernie Stolar, enquanto na concorrência títulos como Suikoden e Arc the Lad se faziam presentes desde o início e preparavam o terreno para o vindouro estouro dos JRPGs. Grandia, por sua vez, foi sumariamente vetado pela Sega a dar as caras no Saturn, mas por sorte foi localizado e vendeu muito bem no PlayStation.

É o que? Cadê o Segata Sanshiro, Sega? Assim vocês vão perder, mesmo...

Também não foram raros os problemas com títulos-chave: Resident Evil saiu muito antes para o PS1, dada a facilidade de programação da máquina. O port para Saturn chegou ao mesmo tempo em que a sequência era anunciada para o concorrente — não haveria recursos extras que fossem capazes de remediar uma situação como essa. Com relação a Tomb Raider, sucesso do PC com o qual a Sega conseguiu firmar um contrato de exclusividade temporária, a situação ironicamente se reverteu contra a casa do ouriço: a necessidade de cumprir a data de um port em uma máquina difícil de se programar levou a um lançamento inicial praguejado por bugs, que acabaram corrigidos na versão posterior para o PS1 (vale lembrar: em tempos em que não existiam patches ou updates). Os jogos subsequentes da franquia sequer deram as caras no Saturn, e foram sucesso absoluto no console da Sony.

O golpe de misericórdia veio com a asseguração da Sony da exclusividade de Final Fantasy VII. Unindo inovações que iam ao encontro das expectativas dos públicos de ambos hemisférios, o sucesso avassalador do RPG não apenas consolidou a supremacia do PlayStation, mas acabou por levar Segata Sanshiro a sucumbir em casa. A Sony alcançou finalmente o reconhecimento no mercado doméstico, sendo que os anos de ouro do PS1 estavam apenas se iniciando — foi entre 1997 e 2001 que alguns dos maiores sucessos do console surgiriam, de Metal Gear Solid a Castlevania: Symphony of the Night, passando por Spyro the Dragon e Tony Hawk’s Pro Skater. A chegada do recordista de vendas absoluto da geração, Gran Turismo, cimentou a diferença em relação as tendências antigas: a simulação realista e jogabilidade complexa interessavam mais do que a estrutura leve e despreocupada das corridas arcade que iniciaram a geração.

A vida e trajetória de Segata Sanshiro. Dizem que quem lançou o míssil no último capítulo foi justamente uma certa vizinha da Sega em Tokyo…

Descanse em paz, Segata!

A ausência de um jogo da série absurdamente popular Sonic the Hedgehog não apenas representa bem a desarticulação da Sega mediante suas crises interna e externa, como acaba sendo emblemática desse período conturbado. Por mais criticamente aclamado que Nights Into Dreams tenha merecidamente sido, o jogo não era substituto a um título forte da marca mais forte da Sega, e ainda por cima trazia atrelado a si o gamepad 3D especial — mais uma peça de hardware a ser administrada pela Sega e pelo consumidor médio.

O projeto cancelado Sonic X-treme, desenvolvido pela subdivisão norte-americana Sega Technical Institute de Mark Cerny, trazia mecânicas inventivas e uma abordagem ao 3D bastante diferente do que foi visto em Crash e Mario. Infelizmente, o projeto foi outro que sofreu com a completa ausência de sinergia da empresa: com dificuldades variadas na programação e tendo que lidar com imposições da SoJ, o projeto chegou a ser boicotado pela Sonic Team de Yuji Naka, que negou à STI qualquer acesso à engine de Nights Into Dreams. Pouco tempo depois, os principais diretores do projeto o abandonaram após dois anos de árduo desenvolvimento, e a STI deixou de existir.

Valeu, Yuji Naka!

Se é que é possível chutar em cachorro morto, Bernie Stolar declarou na E3 de 1997 que “O Saturn não é o nosso futuro”, desacreditando o console atual da empresa quando o Dreamcast ainda não passava de um sonho distante, e com Final Fantasy VII e Gran Turismo prestes à bater na porta.

Após todos esses revezes, não é difícil entender que o destino do Saturn não teria como ter sido outro que não o nosso Cemitério. A complexa conjunção de fatores que levou ao seu final prematuro pode ser resumida da seguinte forma:

→ Onde é que vocês estavam com a cabeça, Sega!?

Ou, se preferirmos ser mais técnicos:

→ Completa falta de articulação de expectativas, planejamento e operacionalização entre a matriz japonesa da Sega e a Sega of America;
Hardware com design complicado e difícil programação afastou o interesse dos programadores, que tinham uma alternativa muito mais atraente no PlayStation;
→ Concorrência direta de um PlayStation que não parou de crescer ao longo de seu ciclo, e um Nintendo 64 que chegou quando o Saturn já se encontrava desacreditado pela própria Sega;
→ Ausência de títulos impulsionadores do console no Ocidente: tanto parcerias com third-parties quanto localizações de sucessos no Japão sofreram pela conjuntura da Sega à época;
→ Ausência de um jogo de Sonic, franquia essencial ao sucesso da Sega no Ocidente até então;
→ Crise interna geral agudizou os efeitos da má recepção do console no mercado, impossibilitando qualquer perspectiva de virar o jogo.

Na próxima edição, veremos que nem mesmo a Big N estava livre de riscos. Lançado em 1995, o Virtual Boy ficou conhecido como um símbolo da realidade virtual “primitiva”. Acompanhe a série e não perca nosso próximo texto!

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