Às Portas do Paraíso

Um ensaio sobre Gurus & Seitas

Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes
11 min readNov 1, 2020

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Recentemente li o mais novo livro de Chico Felliti, A Casa, em que ele narra a trajetória do — já condenado — João Teixeira de Faria ou João Curador, o João de Deus, e sua íntima relação com Abadiânia, a cidade em que residiu seu centro de cura por quase meio século. Além disso, na mesma semana comecei rever pela 3º vez a série da Netflix sobre o Osho, o Guru do Sexo, e sua cidade criada nos Estados Unidos.

Em ambas as obras, acompanhamos a trajetória de líderes carismáticos — ou nem tanto — exercendo uma influência direta nos seus milhares de seguidores. O que me fez questionar: O que faz alguém entrar em uma seita? O que os fazem seguir um líder tão cegamente?

Capa de “A Casa: a História de João de Deus” de Chico Felliti, publicado pela editora Todavia (Reprodução/Todavia)

Como já foi lembrado nesse perfil, o ser humano é um animal extremamente versátil, por consequência, os produtos criados por nós tendem a ser tão variados quanto as estrelas no céu. Portanto, quando se trata sobre as manifestação da Fé & da Criatividade, tal versatilidade não ficaria de fora.

Segundo Max Weber, existem quatro diferentes grupos de congregação religiosa (ou filosófica): o Culto, a Seita, a Denominação & a Igreja. Enquanto o Culto tem uma administração mais livre & suas crenças focadas nas experiências individuais — o Santo Daime, por exemplo; a Denominação é uma fase transitória, mais burocrática e menos centralizada, um meio termo entre Seita & Igreja.

A Igreja é o patamar mais alto que um grupo religioso pode se tornar — quando levamos esse conceito a Filosofia, as Escolas & Academias assumem esse papel. Com uma sociedade interna altamente complexa, com diferentes níveis & castas, a Igreja tende a ser um dos pilares das sociedades em que são inseridas, servindo as normas & regras sociais da mesma, assim contribuindo para a manutenção do status quo dos Estados.

Além disso, Igreja ainda é um agente monopolizador das crenças. Muitos dos que integram essa organização já nasceram nela, portanto, são criados a partir de suas filosofias & dificilmente serão expulsos dela, sendo o banimento algo muito incomum. Elas também tendem a possuir poucas regras de admissão a fim de conseguir ainda mais fiéis & perpetuar seus dogmas.

Fonte: “Novos movimentos religiosos: Realidade e perspectiva sociológica”/ Elaborado por Renan Honorato)

Mas afinal, o que são Seitas?

A palavra seita possui dois significados distintos, porém conectados. O primeiro, secare, significa cortar, ou seja, uma seita é aquela que rompe com uma tradição, que corta seus laços. Sequi, também oriunda do Latim, significaria seguir, portanto, seita é seguir uma pessoa, um profeta ou uma ideia. Independente do origem adotada, Seita é aquele grupo que rompe com a tradição a fim de seguir outra ideologia ou líder.

Segundo o investigador do Centro de Pesquisa em Antropologia de Portugal, Donizete Rodrigues, a seita é uma fração mais radical dentro de uma religião instituída. Diferentemente das Igrejas, elas tendem a serem mais exclusivas, apenas um seleto grupo de pessoas podendo fazer parte, evidentemente, esses critérios podem variar, podendo ser o uso de apenas um tipo de roupa à uma total dedicação ao mestre.

Dado a grande variedade de filosofias & visões de mundo, separei-as em dois grupo genéricos & de fácil compreensão: Seitas Individualistas & Seitas Catastróficas.

Sannyasins, os seguidores que vestiam tons vermelhos & marrons do “Guru do Sexo”, Osho, na cidade construída por eles no Oregon nos anos 1980 (Reprodução/Matthew Naythons)

Seitas Individualistas

Por definição própria, Seitas de caráter Individualista seriam aquelas que, independente da filosofia adotada, são focadas no indivíduo, ou seja, no intrapessoal, na subjetividade, no crescimento — ou iluminação — próprio. Um exemplo disso é a já citada seita dos Sannyasins de Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho.

A filosofia Rajneesh era baseada em fundamentos de inúmeras filosofias, como o cristianismo,o budismo & a psicanálise, podendo ser considerada como a “personificação” do sincretismo religioso. Osho propunha que a Iluminação era o objetivo a ser alcançado através da desconstrução das tradições & do silêncio, em que cada pessoa deveria seguir por conta própria o caminho da verdade & do amor.

“O orgasmo sexual oferece o primeiro vislumbre da meditação porque, nele, a mente para, o tempo para” — Osho

Dentre os outros elementos da filosofia estão os ideais de progresso da humanidade, das descobertas tecnocientíficas & a importância do sexo como caminho para a Iluminação. Além disso, Rajneesh era simpatizante das ideologias liberais & capitalistas, o que o fez ter grande sucesso nas classes média & alta de países desenvolvidos, principalmente na Europa.

Seus discípulos em vestes brancas buscavam em João de Deus, a cura para as doenças através de cirurgias espirituais ou físicas.

Como já citado por Rodrigues, as seitas tendem a ser ramificações radicalizadas de outras religiões. A Seita de João de Deus, mesmo que envolta em vários casos de assassinato — inclusive na própria Casa de Dom Inácio de Loyola — tem como principal ensinamento a cura do espírito. É extremamente comum que as Igrejas — instituições religiosas no geral — rejeitem & até mesmo expulsem seus dissidentes. João Curador se auto intitula médium & líder espírita apesar de vários líderes espíritas já o terem contrariado.

Seitas Catastróficas

No outro lado da moeda, temos as Seitas Catastróficas — ou Seitas do Juízo Final — são aquelas que tem como principal fundamento a aproximação do Fim do Mundo, seja por ato divino, bombas nucleares ou aquecimento global.

A seita mais famosa de todos os tempos talvez seja a Família Manson, liderada pelo insensível & manipulatório Charles Manson. Não vou me aprofundar nos feitos & efeitos das ações desse grupo porque já temos conteúdo demais sobre. Porém, darei atenção ao motivo que fez a Família se enquadrar como uma seita catastrófica.

Após Manson sair da prisão com 26 anos, ele se deparou com um cenário em que os afroamericanos se organizavam pró-Direitos Civis, em que os Panteras Negras & outros grupos armados “empeitavam” as atitudes racistas dos policiais americanos. Intimidado, Manson elaborou uma profecia cujo o principal efeito seria um mundo avassalado pelos conflitos raciais.

A Guerra Racial — ou o Helter Skelter (igual a música dos Beatles) — teria seu inicio quando os militantes-afro iniciassem um conflito entre brancos racistas & brancos pró-direitos civis, e que após dizimação desses grupos, os militantes perseguiriam os poucos que restaram & governariam o mundo. Para não deixar isso acontecer, Manson & a Família se esconderiam em uma cidade subterrânea no Vale da Morte enquanto desenrolasse a guerra; após seu fim, eles ressurgiriam & governariam a população negra.

Segundo Manson, os afroamericanos eram estúpidos demais para se organizarem, podendo ser facilmente governados pela Família. Foi usando essa previsão apocalíptica que Manson justificou não só os assassinatos de Sharon Tate, mas dos outros tantos assassinatos que sua trupe diabólica cometeram.

Segundo Robert Lifton, psiquiatra americano & estudioso em seitas, Seitas Destrutivas são aquelas em que as pessoas envolvidas tentam sistematicamente prejudicar ou mesmo matar outras pessoas. Portanto, a Família Manson se enquadra também nesses aspecto, assim como a Heaven’s Gate, a japonesa Verdade Suprema ou as famigeradas seitas de vampiros & canibais que rondam as mitologias urbanas.

O suicídio coletivo de Heaven’s Gate: cerca de 30 pessoas se mataram ao “tentar” embarcar numa nave espacial (Reprodução/Wikimedia Commons)

Entretanto, nem todas as Seitas Catastróficas são filosoficamente más ou praticam atos de violência pela sua crença. Os Apóstolos do Amor Infinito foi uma seita que teve sua origem na França quando Michel Collins, um sacerdote católico, teve uma visão em que Jesus & Maria o instruía a purificar a Igreja Apostólica Romana, que no período passava por reformas com Pio XVII.

Em 7 de Outubro de 1950, Michel Collins se autonomeou Papa Clemente XV, após outra visão. Por volta desse mesmo ano, o padre franco-canadense Jean-Gaston Tremblay - também por uma visão - saí a procura do “verdadeiro Papa” nomeado pelo próprio Cristo. Juntos, eles fizeram os Apóstolos do Amor Infinito se espalharem pela Europa, Estados Unidos & Equador.

Como filosofia religiosa, os Apóstolos queriam retornar ao Catolicismo ancestral, apostólico, criticavam a postura reformista da Igreja Romana que passou a ter missas na língua nacional, por exemplo. Por outro lado, ao mesmo tempo, decretaram que na sua igreja as mulheres poderiam pregar & flexibilizaram o celibato. Apesar de sua estrutura interna ser complexa, com bispos, sacerdotes & freiras, a seita tinha exigências muito restritas para a ingressão, como a venda de todos os bens, a “vida humilde” & a rejeição à modernidade.

Collin, ou Papa Clemente XV, alega ter tido uma revelação que dizia que o mundo encontraria seu fim no ano de 1965 com eclosão da Guerra Nuclear, e apenas os justos seriam salvos. Após sua morte, bem depois do provável fim do mundo, Tremblay assume o papado como Gregório VII. Ambos sofreram excomunhão vitandus, ou seja, considerados extremamente hereges & perigosos sendo aconselhados que católicos evitassem qualquer contato com eles.

Assim como João Curador, o então papa Gregório VII & os Apóstolos foram acusados de abuso infantil (sexual, moral, físico & psicológico) por no mínimo 15 ex-seguidores, mas diferentemente do caso do Curador, nenhum tribunal encontrou provas de tais atos — ainda.

João Curador “possuído” por alguma das suas entidades médicas: Oswaldo Cruz, Dr. Fritz, Caboclo Gentil, entre outras. (Reprodução/Internet)

Por que entramos em Seitas?

Antes de entender como os líderes de seitas atuam no seu jogo de carisma & persuasão, torna-se importante analisar o motivo que fazem tantos milhões de pessoas caírem no seu charme. Usualmente, tendemos a ficar mais suscetíveis a incursões metafísicas & filosófica quando passamos por uma crise, sentido a necessidade de uma mudança de vida, de pensamento ou mesmo de atitude.

Segundo a antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina, Sônia W. Maluf, essas crises tendem a se manifestar como um mal-estar individual. Nesses momentos nos tornamos mais suscetíveis, perceptivos & atenciosos com coisas que não ficaríamos atentos quando chafurdados em nossa rotina emocional, física e moral. Bem provavelmente, depois de sermos demitidos ou descobrirmos que temos uma doença, os pôsteres de curas espirituais ou de adivinhações místicas tornem-se mais chamativos. O acaso deixa de existir sendo substituída por uma predeterminação cósmica.

Em seu artigo “Peregrinos da Nova Era: itinerários espirituais e terapêuticos no Brasil dos anos 90”, Maluf apresenta 3 principais motivos que levam uma pessoa entrar em crise: problemas na vida amorosa, sentimento de ter falhado profissionalmente ou nas projeções de vida & problemas de saúde, principalmente os terminais. Nesse cenário, portanto, que os gurus & líderes de seita, com seu carisma, luz & filosofia cativantes invadem os corações desamparados.

Ao viver em um mundo tão diverso, encontramos um número quase infinito de gurus espirituais, líderes religiosos & seitas metafísicas. Então, qual seguir? Isso vai depender de vários fatores externos & internos, como sua classe econômica, seu posicionamento geográfica, afinidade de pensamento &, principalmente, seu círculo de amizades. No livro de Chico Felliti, vemos vários relatos de pessoas que acabaram se dirigindo à Abadiânia depois de amigos indicarem as curas do médium João.

Cenas do filme “Asharam in Poona de Wolfgang Dobrowolny”: filme que retratava a meditação dinâmica elaborado por Osho.

O Charme dos Líderes

De Alastor Crowley a Charles Manson, as lideranças de seitas sempre foram objeto de estudo & fascínio de muitas pessoas, precisamente por conta desse encanto que eles exalam & executam durantes suas pregações. O sociólogo alemão Max Weber, em seu estudo sobre os tipo de influência & dominância, definiu a Liderança Carismática como sendo aquela baseada na devoção a um específico e excepcional ato de heroísmo, ou a um carácter exemplar de uma pessoa, o que lhe legitima a autoridade.

O que podemos ver nos relatos na obra A Casa ou na minissérie Wild Wild Country — ou mesmo qualquer outro produto que explore o relacionamento das seitas — são os seguidores desses dizendo “como era forte a sua presença” ou “como o ambiente se iluminava adiante seus passos”. Ma Anand Sheela, o braço direito de Rajneesh/Osho, disse que em seu primeiro encontro com o mestre ela ficou tão emocionada com a presença dele que seus olhos encheram de lágrimas.

Ma Anand Sheela, braço direito de Osho — no retrato (Reprodução/Internet)

Esse carisma pode se manifestar de maneiras diversas, podendo ser ações, falas, a presença ou mesmo o silêncio. Já com as pessoas fisgadas, os líderes tendem a isola-los do mundo exterior, cortando relações com família, carreira & sociedade. Os já citados Apóstolos do Amor Infinito eram enviados para um colônia no Quebec, no Canadá, para viverem na humildade. Os sannyanins foram primeiro à Poona, na Índia, depois para o Oregon, onde construíram seu majestoso Campo de Buda, levando a um conflito político armado com os moradores da cidade vizinha.

Robert Lifton, psiquiatra, elaborou uma análise em que aponta 8 atitudes que as lideranças de seita tomam afim de manter o controle interno. Além do Controle do Ambiente citado a cima, temos a Manipulação Mística & Aura da Ciência Sagrada. Tanto João Curador como Charles Manson, usavam da Manipulação Mística para induzir seus asseclas a tomar atitudes, no mínimo, exploratórias, como atrair estrangeiros. Ou matar pessoas.

A Manipulação Mística consiste em fomentar uma ideia em uma pessoa, afim de que ela pense que ela mesma teve esse pensamento ou que foi uma tarefa divina. Era comum que João Curador, ao se interessar por um estrangeiro “mais apessoado” ou uma gringa com bolsa da Versace, sussurrasse em seus ouvidos para que voltasse a seu país com uma missão divina: “Traga mais pessoas como você”.

Complementar a isso, Lifton coloca a Aura da Ciência Sagrada como sendo a atmosfera em torno da doutrina, a ideia de “verdade absoluta” em cima da ideologia: um modelo de pensamento inquestionável. Os outros itens na Lista de Lisfton são: a Busca pela Pureza; Culto da Confissão; Mudança de Linguagem; a Doutrina Acima da Pessoa & a Dispensação da Existência.

Ao mesmo tempo que Osho desprezava as figuras dos líderes pela sua idolatria & monopólio da verdade, ele se tornou o líder de cerca 500 mil seguidores ao redor do Mundo.

Entretanto, por trás das cortinas escondem-se outras características mais perigosas, se aliadas à situações de risco. Dois traços psicológicos comuns aos líderes de seita são os Delírios de Grandeza & Transtorno de Personalidade Narcisista. Os Delírios de Grandeza envolvem uma série de atitudes — falas, ações, inações — que correspondem a um ideal de superioridade & egoísmo, sempre tentando aparecer & ser melhor que os outros.

Os Delírios de Grandeza podem ou não estarem associados a alguns distúrbios psicológicos, como a Esquizofrenia, o Transtorno de Bipolaridade & o Narcisismo, sendo o último o mais relevante. Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID10), as pessoas que são enquadradas como narcisistas tem um senso exagerado de si mesmo, crendo que são mais do que normais. Assim sendo, atraem para si um público que reforce seus egos & reafirmem suas declarações.

Nos dois primeiros episódios do podcast Seitas, os locutores fazem uma análise da personalidade do infame Charles Manson. Durante a infância, Manson demonstrava traços de insensibilidade — eufemismo para psicopatia na infância — e contava mentiras compulsivamente, mesmo se os outros soubessem a verdade. Além disso, Manson demonstrava altos graus de instabilidade emocional & traços psicóticos, principalmente no uso de pessoas como suas armas de perseguição & assassinato.

Segundo Chico Felliti (e relatos), João de Deus não havia terminado os anos da escola, tendo sérias dificuldades de fala & escrita, por conta disso evitava falar em público… Exceto quando estava dominado por uma entidade. Tal fato me trouxe um questionamento ainda sem resposta:

Partindo do pressuposto de que todo o legado do abusador João Teixeira de Faria não passasse de charlatanismo, como ele mudava de postura tão rapidamente? Será que ele era o melhor ator que Mundo já viu & atuava de maneira complexa demais para entendermos?

Ou será que, de alguma maneira, ele sofresse de algum grau de esquizofrenia & a cada incorporação ele virasse uma “chave psíquica” que o libertasse da timidez, como no filme Fragmentado?

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Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes

Como diria Trevisan: tira essa câmera de mim e vai ler um livro! Crônicas, análises e resenhas. Às vezes, um conto. Às vezes, um tonto.