Por dentro das seitas: Reforma do pensamento — A Lista de Lifton

Daniele Cavalcante
c/textos
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6 min readMar 9, 2019

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Para detectar um culto destrutivo, é importante entender como o líder faz com que seus seguidores permaneçam fiéis. Muitos gostam de usar o termo “lavagem cerebral” para descrever as técnicas de controle exercidas dentro dessas seitas, mas, como vimos na primeira parte deste artigo, pesquisadores preferem expressões como “persuasão coercitiva” ou “reforma do pensamento”.

Seitas modernas se apropriaram e evoluíram técnicas de persuasão coercitiva, com o objetivo de mudar o comportamento dos fiéis sem que eles percebam que estão sendo controlados. Também vimos no texto anterior a lista criada pela psicóloga e pesquisadora Margaret Thaler Singer, que enumerou seis condições para cultos destrutivos realizarem com sucesso uma reforma do pensamento.

Dessa vez, falaremos sobre outro pesquisador da área: Robert Jay Lifton, psiquiatra e escritor americano. Anterior a Singer, foi um dos pioneiros a pesquisar o tema, ficando conhecido principalmente por seus estudos sobre as causas e efeitos psicológicos das guerras e por sua teoria sobre a reforma do pensamento.

Importante notar que seu trabalho teve foco principal nas práticas exercidas pelo governo chinês sobre a população. Levaria anos até que ele percebesse que a mesma coisa estava acontecendo nos EUA.

No seu livro Thought Reform and the Psychology of Totalism (1961), ele descreve oito procedimentos pelos quais um grupo de pessoas costuma passar para se tornar uma seita ou grupo totalitário. De acordo com o autor, requer apenas seis destes métodos para que a vida das vítimas seja controlada por um líder.

Abaixo, um resumo de cada um dos critérios, ou “dimensões”, descritos por Lifton¹. Embora essa lista não esgote o assunto, ela deve ajudar aqueles que tentam descobrir se estão em uma seita abusiva.

  1. Controle do ambiente. Também conhecido como “Milieu Control”. A característica fundamental desse tópico é o controle da comunicação. Obtém-se controle do que a vítima ouve, lê e escreve, diminuindo sua autonomia pessoal. Relações com outras pessoas são programadas. Geralmente, há seminários e reuniões que se intensificam gradualmente em frequência e duração. Este fator geralmente provoca uma deterioração na identidade da pessoa e gera um sentimento de antagonismo (“nós” contra “eles”) em relação ao mundo exterior. Se isso for implementado com intensidade o suficiente, o “controle internalizado” é alcançado, e com isso a “verdade” será uma posse exclusiva do grupo.
  2. Manipulação mística. Procura-se criar certos padrões de comportamento e estados emocionais específicos nas vítimas, de uma maneira que pareça acontecer espontaneamente no momento e no contexto escolhidos pelo líder. Assim, supostas experiências místicas, milagres e fenômenos sobrenaturais são simulados de modo estratégico dentro do grupo. Os líderes chamam a si mesmos de “escolhidos por Deus”, ou por alguma força sobrenatural. Os membros se acham predestinados a fazerem parte central da História da Humanidade, ou mesmo a ter a responsabilidade de salvá-la. Assim, as vítimas tornam-se instrumentos do grupo e participam ativamente da manipulação uns dos outros. Essa manipulação leva a recrutar novos membros e levantar fundos. São usadas liturgias, rituais, jejuns, vigílias, cantos, mantras ou outras formas de exaltação ou enfraquecimento físico e mental.
  3. A busca pela pureza. O mundo está dividido entre aqueles que são puros e os impuros. Claro, a pureza é característica do grupo/seita e o impuro é qualquer outra coisa externa ou contrária à doutrina do culto. Todas as impurezas devem ser identificadas e eliminadas — por mais impossível que seja. Culpa e vergonha são usadas para controle do grupo, porque as vítimas nunca atingem os objetivos propostos. Comportamentos obsessivos são estimulados e estados de ansiedade e medo são induzidos para que as vítimas se esforcem em não cometer erros. Isso resulta em uma perfeição fingida. Qualquer desvio do “caminho” flagrado (muitas vezes por membros que vigiam uns aos outros) é considerado como uma imperfeição que tem consequências drásticas, tais como humilhação diante de todos os membros e ritos de confissão pública.
  4. Culto de confissão. Os cultos exigem a confissão pessoal como meio de purificação. São planejadas sessões ou reuniões nas quais as vítimas confessam pecados e imperfeições. Crítica é incentivada, fazendo com que os membros apontem os erros uns dos outros. Também deve haver a auto-crítica, o que leva ao fingimento de uma mudança pessoal. Essas confissões de questões privadas tornam as pessoas vulneráveis, já que elas expõem informações que depois podem ser usadas contra elas. As confissões são estimuladas a tal ponto que podem ocorrer mesmo que sejam falsas.
  5. Aura da ciência sagrada. Uma aura sagrada é mantida em torno da doutrina ou ideologia na qual a seita se baseia. Essa perspectiva faz com que a doutrina ganhe vestes de verdade absoluta que permite explicar qualquer coisa sobre o mundo. Isso oferece segurança considerável aos indivíduos. Questionar ou criticar os preceitos básicos é proibido ou desencorajado. Recomenda-se espalhar a ideologia para toda a humanidade. Também é promovido um debate aparentemente real sobre a doutrina, mas na verdade os pontos centrais nunca serão questionados.
  6. Mudança da linguagem. Palavras e frases recebem um novo significado, muito diferente daquele dado pelo mundo exterior. Também são implementados jargões linguísticos fáceis de memorizar, que muitas vezes o mundo exterior não entende. Esses jargões consistem em clichês que servem para alterar os processos de pensamento dos membros para que eles se adequem ao modo de pensar do grupo. Isso cria uma comunicação mais restrita, levando as vítimas a pensarem de modo mais estreito e sob parâmetros muito abstratos e longe da realidade. O culto inventa um novo vocabulário, dando a palavras conhecidas novos significados, transformando-as em clichês triviais, que por sua vez encerram as questões mais complexas possíveis de modo bastante raso. Controlar palavras ajuda a controlar os pensamentos das pessoas, e os jargões restringem, ao invés de expandir, o entendimento humano.
  7. A doutrina acima da pessoa. As experiências pessoais dos membros são subordinadas à “ciência sagrada”. Qualquer experiência pessoal contrária à doutrina do culto deve ser negada ou reinterpretada para se adequar à ideologia do grupo. Tudo o que a pessoa viveu até então será inválido se estiver em conflito com a nova moralidade adotada. O valor dos indivíduos é insignificante quando comparado ao valor do grupo. Não importa o que uma pessoa experimentou no passado, o importante é a crença no dogma. Essa crença em grupo substitui a consciência e a integridade individual.
  8. A dispensação da existência. Como o grupo tem uma visão de verdade absoluta/totalitária, os que se recusarem a adotá-la não terão direito à vida. Isso geralmente não é literal, mas significa que aqueles que estão no mundo exterior não serão salvos, são ignorantes e devem ser convertidos à ideologia do grupo ou serão rejeitados pelos membros. Assim, o mundo exterior perde toda a credibilidade. Além disso, se algum membro deixar o grupo, deve ser rejeitado também. A manipulação do medo é usada como uma estratégia de controle, indicando uma série de terríveis consequências para quem deixa o culto ou renuncia a Deus. O grupo é a “elite”, enquanto aqueles que não fazem parte são os “outros”, os “mundanos”, os “maus”. Essa é a base da dependência do culto. Dentro, todas as soluções são oferecidas: cura, crescimento pessoal, felicidade, salvação, vida eterna, etc. Fora, a pessoa está totalmente perdida, enfrentando e sucumbindo aos seus maiores medos. Para algumas seitas, os que saem estão condenados a não existir ou a viver em condições muito piores do que se permanecessem no culto. Isso explica a sensação de perda e dor a que muitas vítimas se referem quando deixam esses grupos.

É notável que a lista de Lifton não é tão distante dos seis critérios de Singer, mas tem suas diferenças. Cada pesquisador tem sua abordagem e amostragens distintas, colhidas em épocas e contextos diferentes. Mas todas tem pontos em comuns, apontados por outros estudiosos e ex-membros de seitas.

Alguns desses pontos já foram mencionados em artigos anteriores, e você pode encontrar todos eles no guia abaixo:

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Daniele Cavalcante
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Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.