A conexão dos indígenas kaingang com a natureza e o espaço territorial

Tradições e saberes ancestrais são essenciais para a relação de respeito e reciprocidade com a biodiversidade

Mariana Necchi
Redação Beta
5 min readApr 13, 2022

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Iracema Nascimento possui extenso conhecimento de elementos botânicos florestais e cultivos de hortas. (Foto: Henrique Abrahão/Beta Redação)

“A natureza nos dá tudo, nós só temos que saber aproveitar e respeitar”, afirma Ga Téj Iracema Nascimento, líder, guia espiritual e xamã (kujá) kaingang. Ávida conhecedora das ervas, plantas e árvores, ela é a personificação da força e dos conhecimentos dos seus antepassados. “A terra é mãe”, define.

Para os indígenas kaingang, natureza, ambiente e território são conceitos unificados e coletivos que se inter-relacionam e se complementam. Animais, plantas e rios, além de possuírem alma e espírito, também são agentes participativos na construção do universo kaingang — e é nesse mosaico de reciprocidade e respeito que os indígenas desenvolvem suas identidades como sociedade.

Árvores e frutos ganham simbologias sagradas, principalmente no caso da araucária (fãg). Segundo pesquisa produzida em parceria por arqueólogos e historiadores do Brasil e do Reino Unido, as primeiras matas de araucária foram plantadas há aproximadamente 4 mil anos e foram determinantes para a sobrevivência dos povos kaingang e xokleng no período pré-colonial.

Através de gerações, povo kaingang mantém tradições milenares

Iracema nasceu em Nonoai, cidade gaúcha que faz divisa com Santa Catarina, e conta orgulhosa que seu nome de origem (Ga Téj) significa redemoinho: “Terra que faz o moinho voar, terra que voa”, explica.

Criada pelos avós, foi logo na infância que ela recebeu a missão de transmitir e proteger as tradições e os costumes da cultura kaingang. “Acho que eles [avós] já sabiam que tinha que ser eu para seguir seus passos. Nós éramos em sete meninas, mas foi para mim que destinaram os conhecimentos”, relembra.

Para o povo Kaingang, a natureza é uma concepção territorial, cultural e espiritual. (Foto: Henrique Abrahão/Beta Redação)

Para ela, a natureza tem sua linguagem própria e se comunica ativamente com o seu povo. “Se estiver perdido no mato, é só abrir uma taquara que ali tem água. Se tiver fome, é só comer a ponta da samambaia”, diz. Além disso, ela declara que os pássaros e o direcionar do vento são carregados de significados para o seu povo.

Iracema participou da retomada do antigo prédio da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC). Lá, mesmo com o espaço limitado, ela fez questão de plantar uma bananeira (). “Não podemos plantar mais coisas, porque precisamos da decisão da justiça. Nossa vontade é plantar uma araucária”, manifesta.

A araucária, árvore responsável pela semente do pinhão, é o maior símbolo kaingang. Usada para alimentação, produção de medicamentos naturais e demarcação de territórios durante períodos de conflitos, a árvore também é protagonista de rituais e cerimoniais tradicionais — principalmente no Ritual Kiki, realizado em épocas de colheita do pinhão, que se caracteriza por ser um culto aos antepassados.

Ilustração de Gene Woiski, feita em 1938, representa o ritual e demostra a relação entre indígenas Kaingang, animais e a araucária. (Imagem: Museu Paranaense/Acervo)

Biólogo, mestre em Ecologia e professor, Juliano Morales de Oliveira tem uma vasta trajetória de pesquisas acadêmicas sobre a araucária. “Dentre todos os pinheiros, a araucária é a árvore mais antiga evolutivamente. Elas surgiram há aproximadamente 250 milhões de anos e foram contemporâneas dos primeiros grupos de dinossauros”, conta.

Além disso, Juliano discorre sobre o conceito do tempo na biodiversidade. “As plantas atuais têm estruturas e funcionamentos realmente similares com as primitivas. É fantástico saber que hoje convivemos com espécies que já existiam desde a pré-história, quando o ser humano nem estava perto de surgir”, expressa.

Araucárias no cânion de Itaimbezinho, localizado na serra gaúcha. (Galante 86/Flickr)

“Inicialmente as florestas se formaram no Paraná. Em tempos mais recentes, nos últimos mil anos, começaram a surgir no Rio Grande do Sul também.” No Brasil, as matas de araucária são típicas de todo o território da Região Sul e das partes mais elevadas dos estados de São Paulo e Minas Gerais. O clima subtropical, com estações do ano bem definidas, é determinante para seu desenvolvimento.

A disseminação das araucárias no Sul do Brasil acontece diretamente pela ação de pequenos mamíferos e aves que enterram sementes no solo. As populações indígenas, principalmente kaingang, também foram responsáveis pelas plantações da espécie. “A característica interessante da araucária é a sazonalidade. Sabemos que, em uma determinada época do ano, ela vai dar pinhão. E isso é muito importante para garantir a alimentação de pessoas e animais”, relata.

Com o hábito de enterrar sementes, a ave gralha-azul é considerada a maior responsável pela disseminação de araucárias na Região Sul do Brasil. (Foto: Thiago Pessato/Flickr)

A cosmologia kaingang

“O mundo ocidental parte da concepção da separação do homem da natureza. Quando olhamos para sociedades tradicionais, as concepções são completamente diferentes”, explica Luís Fernando da Silva Laroque, graduado em Estudos Sociais, doutor em História, professor e pesquisador da Universidade do Vale do Taquari (Univates). “Para os kaingang, o homem é a natureza. O nosso mito de origem judaico-cristão coloca o homem no centro das coisas e do universo, já o dos kaingang é inter-relacionado em todas as dimensões”, elucida.

O mito de origem kaingang é fundamentado em uma estrutura dualista, por meio da divisão de metades complementares: Kamé e Kaîru. O primeiro é associado aos raios de sol e representado por meio de linhas, enquanto o segundo é relacionado à lua e representado por formas redondas. “Essa dualidade é a base da estrutura e organização social kaingang e a natureza está presente em todo esse contexto. Homem, natureza e território são sinônimos”, afirma.

Luís Fernando da Silva Laroque pesquisa temáticas relacionadas aos povos originários há 20 anos. (Foto: Luís Fernando da Silva Laroque/Arquivo Pessoal)

Para Luís Fernando, além de continuar aprendendo, a sociedade ocidental precisa dar mais visibilidade para os conhecimentos indígenas: “O respeito com a natureza e a sustentabilidade são coisas que sempre acompanharam os povos originários. Colonialismo, capitalismo e globalização nunca foram capazes de destruir a relação de homem e natureza dos kaingang. Isso é algo a ser valorizado”, finaliza.

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