A Copa do Mundo como reflexo das três fases do futebol na década

Os pensamentos hegemônicos no futebol contemporâneo estão presentes nas organizações de diversas equipes — das mais importantes às mais emergentes — na maior competição do esporte

Arthur Menezes
Redação Beta
13 min readJun 26, 2018

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Por que o Pelé é, com larga vantagem, o maior jogador de todos os tempos? Por muitos motivos, é claro. Mas eu arrisco dizer que, provavelmente, não fossem os títulos de Copa do Mundo, talvez o nosso craque fosse apenas uma unanimidade nacional. Vários foram gigantes nos seus respectivos períodos de glórias, mas quantos conseguiram chegar três vezes ao topo do esporte? Só Pelé. Enfim, o parágrafo tem apenas uma intenção: argumentar que a Copa do Mundo é a competição mais importante do planeta, pois é ela, mais do que qualquer outra, que coloca os melhores em rota de colisão e, o mais importante, transforma os jogadores incríveis em imortais.

Mas o futebol mudou muito desde Pelé — e este não é um texto sobre o Rei. No meu último escrito, que você pode conferir clicando aqui, fiz uma análise de como essas mudanças no esporte se aprofundaram na última década, estabelecendo o que chamei de fases do futebol pós-Guardiola, para entender os pensamentos que dominam — desde a estreia do espanhol no comando do Barça, em 2008 — os espaços de comentaristas e as influências do mundo da bola.

O texto anterior é um pouquinho extenso e, em algumas partes, até um pouco introdutório — mas garanto que vale a pena. De qualquer forma, se você está habituado a ouvir e ler termos como “futebol reativo”, por exemplo, pode continuar a leitura deste texto e garanto que não terá grandes prejuízos caso não tenha lido o outro. Enfim, aqui vou dar continuidade àquela reflexão com base na decorrente Copa do Mundo de 2018, mostrando que o futebol propositivo e o futebol reativo vieram para ficar.

Quando os pequenos também podem ser propositivos

Seleção Saudita mostrou um futebol prepositivo. Foto: Shaun Botterill/Getty Images

Durante a semana que passou, em uma conversa trivial, eu disse a um professor que a Arábia Saudita tivera o controle do jogo em diversas situações contra o Uruguai, e que isso não havia se revertido em vantagem no placar por outros aspectos que vão bem além da posse de bola — ter de explicar isso já demonstra como as pessoas ainda não se deram conta do que está acontecendo -, porém complementei afirmando que, se essas duas seleções jogassem dez vezes seguidas, isso se repetiria mais nove vezes — chutei que seriam nove só para impactar, é óbvio.

No meio do bate papo, outro professor fez um apontamento interessante: noutros tempos, seria inimaginável ver um time como aquele dos árabes sair tocando a bola na sua própria defesa, dentro até da sua área. Bingo! O que eu defendi na conversa com os educadores e explico melhor aqui é que essa estratégia estarrecedora do time de Antonio Pizzi não caiu do céu, não foi por acaso e também não deixou surpreso quem havia acompanhado os jogos anteriores das duas equipes na competição.

Pizzi, o comandante da seleção árabe, é um argentino naturalizado espanhol. Enquanto jogador, atuou no Barcelona durante os anos 1990 — foi colega de Guardiola, inclusive. Como treinador, o que nos interessa aqui, em seu último trabalho antes da ida para o país que só permitiu agora que mulheres pudessem dirigir automóveis, o comandante levou a seleção chilena ao bicampeonato continental, vencendo a Copa América do Centenário, realizada em 2016. Mantendo muito do que Sampaoli havia formado na equipe, seu time costumava ter mais posse de bola, trocar mais passes e chegar ao ataque com a bola pelo chão — valorizando as características de seus jogadores, em maioria pequenos na estatura e enormes na qualidade técnica.

Pizzi levou uma ideia para os donos do petróleo. E, se tem uma coisa que eles podem fazer, essa coisa é comprar. Então, eles compraram a ideia. Por outro lado, não se pode, pelo menos por enquanto, comprar craques para um país. Sendo assim, o que resta a um treinador nesse caso é potencializar o que ele tem nas mãos. No caso específico de que tratamos, um time com razoável capacidade de reter a bola e fazer a transição dentro dos preceitos de um time propositivo. Não é uma garantia de vitória, muito pelo contrário, mas é uma garantia de fazer movimentos repetidos e atingir um padrão de jogo.

Na estreia da Copa do Mundo, a Arábia jogou. Ou melhor, tentou. E alguém deve estar esbravejando, pensando como é possível assumir que um time que leva 5 a 0 é capaz de ser classificado como detentor de uma capacidade de controle e posse de bola. Pois bem, apesar do placar acachapante sofrido pelos comandados de Pizzi frente à dona da casa, a Rússia, é interessante pensar sobre o que os dados do jogo nos mostram: segundo o Footstats, a Arábia Saudita completou 460 passes, enquanto que a Rússia completou 266. Além de trocar mais passes, a precisão também foi maior — aproveitamento de 91% contra 88%. Ou seja, ele pode até não dar certo, mas o planejamento existe e está muito claro.

A essa altura, alguém já deve estar concluindo que ter a bola mais do que o adversário não garante nada. E isso é verdade. Reter a bola é uma prática que não se encerra em si mesma. Até porque, não é uma finalidade, mas um meio — que pode funcionar ou não. No caso da Alemanha, na partida disputada contra o México, também não funcionou.

A Alemanha “guardiolizada”

Alemanha não abriu mão do seu estilo de jogo contra a Suécia.Foto: El País/Divulgação

Como mencionei no texto anterior a este, a Alemanha é um caso muito interessante. Para chegar à vitória, teve de rever vários conceitos de futebol, um processo que começou lá em 2002, quando perdeu a final para o Brasil. Nesse processo de reconstrução, a Alemanha deixou de ser o que se entendia por futebol alemão, superando um jogo baseado no contato físico e na bola jogada para a área para chegar no refinamento que rendeu o título de 2014, e que se mantém em 2018.

É sempre importante narrar a construção de 2014 para compreender o time que vem para esta Copa, até porque este é uma continuação daquele. Mas, como o texto não é sobre a história do tetra alemão, vou me limitar a falar de um nome específico para elucidar o que pretendo dizer: Philipp Lahm.

Joachim Löw chegou à seleção alemã em 2004, para auxiliar o então treinador e ex-atacante Jürgen Klinsmann. Löw estava na comissão técnica quando Lahn foi para a sua primeira Copa do Mundo. Atuando em casa, e jogando pela lateral esquerda, Lahn fez uma boa competição, com direito a golaço e tudo. Era a Alemanha reunificada tentando ainda o seu primeiro título. Mas não deu. Em 2010, Löw já era o responsável pela formação de sua equipe. O sempre de confiança lateral Lahn agora estava do outro lado, naquele que se espera ser ocupado por um destro — na lateral direita.

Lahn já estava consolidado na seleção e era pra lá de conhecido do treinador quando, aos 30 anos, virou revelação na Europa. Revelação porque, nas mãos de Guardiola, o lateral virou — na verdade, já havia sido na categoria de base — volante. Como contou Marti Perarnau, em um de seus escritos em que biografou Guardiola, Pep afirmava que o sucesso da equipe se devia, em muito, ao jogador na nova (velha) função. Também Marti tratou de como isso impactou a seleção alemã, contando que tão logo Guardiola fez essa experiência com o jogador, na próxima convocação o mesmo era feito (a mudança de posição de Lahn) na seleção também.

Apenas para tratarmos de cronologia, Löw trabalhava com Lahn desde 2004. Guardiola chegou ao Bayern em 2013. E, mesmo assim, uma mudança deste não demorou sequer uma convocação para ser “acatada” por aquele. Assim, Lahn jogou (durante a preparação e) a primeira fase da Copa do Mundo de 2014, bem como as oitavas de final da competição, como volante. Considero Guardiola o pai do futebol propositivo nos termos em que se dá hoje e não vejo exemplo melhor — por ser tão simples, quase banal — para sintetizar o quanto suas idéias influenciam alguns dos grandes treinadores.

Lahn nem joga mais futebol profissional. Despediu-se da seleção alemã em 2014 mesmo, com a faixa de capitão no braço e o troféu mais importante de todos nas mãos. Mas a Alemanha de 2018 está, mais do que nunca, “guardiolizada”. A equipe dita o ritmo, avança as linhas, troca passes e controla o jogo. Ou, ao menos, tenta.

Na sua estreia em 2018, a Alemanha foi propositiva. Teve 61% de posse de bola, com 523 passes completados, alcançando 95% de aproveitamento nesse quesito. A equipe ainda teve 25 finalizações, colocando dez delas na direção do gol. Os comandados de Löw foram fieis ao seu estilo de jogo, tentaram da maneira que estão treinados, mas, ao final, saíram derrotados pelos mexicanos — que fizeram um futebol absolutamente reativo nesse jogo. No jogo contra a Suécia, porém, a Alemanha conseguiu dar a volta por cima e alcançar a vitória. Mesmo que tenha estado muito próxima de ser eliminada da Copa do Mundo na primeira fase, o que seria uma grande tragédia para a forte equipe, ela se manteve jogando como foi pensada para jogar.

O México reativo

Mexicanos mostraram um futebol reativo. Foto: FIFA/FIFA via Getty Images

E se a Alemanha chega para essa Copa com toda a credencial que tem, o México chegou sem qualquer alarde. Comandados pelo colombiano Juan Carlos Osorio — que passou pelo São Paulo antes do atual destino -, os mexicanos têm em Chicharito a sua principal estrela. Ainda que sem o brilho das campeãs mundiais, a tricolor da América do Norte foi uma das equipes que deixou melhor impressão ao final da segunda rodada da fase de grupos.

Contra a Alemanha, o México fez um futebol que poderia muito bem ter sido executado por um time treinado por Jurgen Klopp. É certo, contudo, que o alemão não deve ter ficado feliz com a excelente execução do futebol reativo por parte dos mexicanos contra a seleção de seu país. Azar o dele. Foram contra-ataques dignos daquele grande Borussia Dortmund finalista da Champions League.

O México teve apenas 39% de posse de bola, mas, ainda assim, conseguiu chegar repetidas vezes com perigo ao campo adversário. As retomadas rápidas ocorriam sempre com o característico jogo vertical dos times que reagem. Chegar ao último terço do campo era uma tarefa a ser cumprida como fora planejada. Semelhante a muitas atuações de outras equipes de Osorio, a seleção mexicana trocou passes rápidos e não abdicou da bola longa. No caso dos toques curtos, foram 242 que encerraram nos pés de um companheiro, número menor do que a metade de passes completos dos alemães. No caso das bolas longas, porém, os papéis se invertem: mesmo que tenha passado bem menos tempo com a bola, o México tentou 39 lançamentos (18 chegaram a companheiros), mais que o dobro da equipe alemã — que tentou 19 vezes e completou apenas oito.

Como foi sugerido, jogar assim é algo que não chega a ser exatamente novo na carreira de Osorio: comandando o Atlético Nacional, da Colômbia, El Profe conquistou diversos títulos nacionais e chegou à final da Copa Sul-Americana fazendo com que seu time atuasse com grande intensidade e conseguisse chegar ao gol adversário em grande velocidade. Logo depois desse trabalho de Osorio, aliás, o clube chegou, com Reinaldo Rueda, ao título da Libertadores e a mais uma final de Sul-Americana — quando ocorreu a tragédia com a Chapecoense.

Voltando aos dados do jogo entre México e Alemanha, fica claro que as opções foram distintas. O México queria pegar a Alemanha com a defesa desmontada. Para isso, precisava ser rápido e direto. Dessa forma, a equipe chutou 12 vezes, indo na direção da meta em quatro oportunidades. Bastou para fazer o único gol do jogo.

Já no segundo jogo, o México pegou uma Coréia do Sul com opção semelhante: retomadas rápidas. Com isso, de certa forma houve um embate em mesmo estilo. Quando isso ocorre, o nome que se convencionou chamar a esse tipo de futebol, o reativo, pode parecer um pouco sem sentido. Talvez aqui fosse o caso de se repensar a nomenclatura — discussão para outra hora. O fato é que os números se alteraram um pouco e, pela maior qualidade, o México acabou tendo mais posse de bola e trocando mais passes, ainda que o procurasse fazer de maneira vetical — algo que contra um time que também adota uma postura mais recuada será possível menos vezes. No fim, as chegadas ao gol no segundo jogo se deram nos mesmos números que o primeiro e o placar foi mais uma vez favorável: 2 a 1.

A surpresa iraniana

Iranianos comemorando o gol contra de Marrocos. Foto: AFP PHOTO / Giuseppe CACACE

Ainda que se tenha dito que o México não pode ser considerado um favorito antes da Copa do Mundo e que não é uma potência como a Alemanha, cabe salientar que o futebol mexicano tem histórico e tradição internacional. Só que o mesmo não pode ser dito do Irã. Mas, assim como a Arábia Saudita é capaz de ter uma cara, um padrão de jogo propositivo, o Irã, também fora dos grandes centros, apresenta um idioma bem claro: o futebol reativo.

O treinador do Irã, o português Carlos Queiroz, tem mais tempo de carreira em centros periféricos e como auxiliar do que sob os holofotes. Mas, o que se tinha como base antes do atual trabalho, era a seleção espanhola que ele assumiu na metade de 2008, com o objetivo de se classificar para a Copa de 2010 — algum luso diria que o objetivo era vencer, mas sejamos honestos. Já naquele momento o treinador conseguiu fazer um time que sofria poucos gols, mas também não fazia muitos. A vocação defensiva segue firme e forte, em geral.

O Irã, que conseguiu vir ao Brasil com o português em 2014, chegou à Russia após uma terceira fase de eliminatórias asiáticas jogando dez partidas e sofrendo apenas dois gols. Na estreia da Copa, contra o Marrocos, foi possível observar a defesa sólida da equipe que, apesar de pressionada, conseguiu resistir até o fim e, ainda, vencer com um gol contra no final. Se concluiu pouco na direção do gol — duas vezes no primeiro tempo, nenhuma no segundo (quando foi brindada com o gol contra marroquino) -, defendeu-se muito e praticamente não deixou sua meta exposta a maiores riscos — no jogo todo, o Marrocos chutou apenas três vezes na direção do gol iraniano.

Jogando dentro de suas possibilidades e estratégias, o Irã completou muito menos passes do que o Marrocos — 126 contra 363 -, mas tentou mais lançamentos — 45 contra 36. Como resultado disso, teve a bola em somente 34% do tempo, não dominando quase nunca o jogo. Mas, ao final, bastou uma jogada para conquistar os três pontos.

Contra a Espanha, o jogo só poderia ser no mesmo tom, é claro. Ainda mais que a Espanha chega a 2018 mais Espanha do que nunca, quer dizer, tendo o futebol de idioma mais claro da Copa — não vou me alongar sobre a constituição da equipe, pois vale em boa parte o que foi dito no texto anterior sobre as seleções espanhola e alemã de 2010 e 2014, respectivamente. Sendo assim, talvez a equipe de Carlos Queiroz também tenha sido mais a sua cara do que nunca. Esse foi, sem dúvidas, um jogo entre o futebol propositivo e o futebol reativo.

O duelo emblemático

Diego Costa comemora o gol em cima do Irã. FRANK AUGSTEIN AP

Espanha e Irã fizeram o duelo mais emblemático do ponto de vista tático nessas duas primeiras rodadas da fase de grupos da Copa do Mundo. Os números de passes são impressionantes: a Espanha teve 73% de posse de bola. Ou seja, passou praticamente o tempo todo com a bola no pé. Isso também se traduz no número de passes completados (uso essa terminologia porque fazer a bola chegar a um companheiro não torna um passe em certo, pois pode haver uma escolha equivocada na opção da jogada ou no tipo de passe): os espanhóis trocaram bola 703 vezes, enquanto que o Irã fez a pelota ir de um jogador ao outro apenas 147 vezes.

Ao fechar o jogo totalmente pelo meio, o time iraniano dava alguns poucos espaços pelos lados, forçando time espanhol, que tem uma pequenina média de altura, a cruzar para a área. Em geral, as tentativas eram neutralizadas pela superioridade numérica obtida pelos defensores. A Espanha fez 25 cruzamentos, ganhando de cabeça em apenas três oportunidades. Assim como no primeiro jogo, o Irã saiu de trás muitas vezes com a bola longa. Ao todo, foram 40 lançamentos, um número gigantesco se levarmos em consideração o pouco tempo que o time ficou com a bola.

Apesar de tão superior tecnicamente, o time espanhol não teve tantas chances assim para colocar a bola nas redes. As finalizações da Espanha chegaram a um número normal da sua produção (15), mas só três foram na direção do gol. Até por conta disso, a seleção espanhola precisou de um lance estapafúrdio para abrir o placar — o defensor, ao tentar cortar, chutou a bola contra as pernas de Diego Costa, que saiu para comemorar após o ricocheteio lhe brindar com o tento. E o Irã, ainda tenha ficado tão pouco com a bola, deu seus sustos — e até chegou ao gol, que foi anulado por uma precisa marcação de impedimento.

Espanha, Irã, México, Alemanha e Arábia Saudita são alguns dos times que apresentaram intenções bem claras nas duas primeiras rodadas do mundial. De forças bem distintas, capacidades técnicas que variam, mostram esses pilares estratégicos, do futebol propositivo e do futebol reativo, e merecem atenção.

E então, depois de tantos caracteres, alguém pode se perguntar: todo time reativo jogo igual? E no lado propositivo da força? Certamente, não. Poderíamos tratar de algumas subdivisões? Sim. Mas isso fica para um próximo encontro.

E, antes de encerrar, cabe a ressalva de sempre: até que se prove o contrário, definições como essas não estabelecem uma maneira certa de fazer futebol. Quando a maioria achar que isso está começando a ocorrer, o futebol muda novamente, ressignifica o que está no passado e, aliado a novas práticas, se configura em algo que é capaz de jogar o atual na obsolescência.

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