A história de Tatiana Doble, mãe e estudante indígena

Acompanhe o relato da jovem expulsa da CEU pelos colegas e a realidade enfrentada por outras mulheres na ocupação

juliana peruchini
Redação Beta
4 min readApr 13, 2022

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Para Tatiana, o mais importante é a conquista da Casa do Estudante Indígena, assim sua filha Thayla pode morar com ela e a irmã. (Foto: Gabriel Ferri/Beta Redação)

No dia 6 de março de 2022, os estudantes indígenas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ocuparam o antigo prédio da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic), próximo ao túnel da elevada da Conceição, em Porto Alegre.

Na luta pela moradia da Casa do Estudante Indígena (CEU-UFRGS) estavam presentes cerca de 20 mulheres, e entre elas encontramos a história de Tatiana Ferreira Doble, 24, mãe de duas meninas, Thayla, de sete anos, e Thalia, de um ano e dez meses. A Beta Redação conversou com Tatiana, que contou sobre sua vida nos últimos três anos, incluindo as dificuldades para estudar durante a pandemia de COVID-19, o preconceito racial que sofreu e o seu amor pelo curso de Enfermagem.

Da expulsão da CEU até a conquista da moradia

O local da ocupação era escuro durante a noite, com muitos carros e pessoas circulando, com um aparente risco para gestantes, crianças e idosos. Além disso, o prédio apresentava grandes riscos estruturais, já que não era utilizado nos últimos cinco anos.

Quando os indígenas chegaram no local, encontraram moradores em situação de rua que, segundo Tatiana, disseram que deixariam o espaço pois "os indígenas precisam muito mais do que a gente”, relatou surpresa.

O antigo prédio da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio tem previsão de ser demolido, após a saída dos ocupantes indígenas do local. (Foto: Gabriel Ferri)

Tatiana Doble morava em Ronda Alta, RS, e se mudou para Porto Alegre para começar a graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2020, quando ingressou na universidade, já tinha a filha Thayla, que permaneceu em sua cidade de origem, sob os cuidados da avó.

Durante a conversa, relatou os preconceitos enfrentados por amigas na CEU. “Ela estava chegando na casa e viu um cacho de banana podre pendurado na porta do quarto”. A estudante também acrescentou que essa realidade era frequente: ela e outros indígenas sofreram racismo por parte dos demais alunos e alunas.

Ainda em 2020, Tatiana acabou engravidando novamente, da sua segunda filha, Thalia, e contou sobre a importância de uma criança indígena estar com a mãe pelas demandas e cuidados típicos de sua cultura, mas a CEU não permitia crianças no local. Por isso, percebeu que não foi bem recebida pela ex-colega de quarto na sua chegada com a bebê, sendo expulsa da Casa pelos moradores que estavam incomodados com o choro da criança.

Enquanto amamentava a filha, Tatiana contou que no ato de desespero organizou suas coisas e foi pedir ajuda para encontrar um lugar imediato para ficar com Thalia. Com o amparo dos amigos encontrou um quarto, mas sem poder pesquisar muito os valores. A situação financeira ficou apertada durante a pandemia e a jovem teve que deixar o local que ficava na Rua Riachuelo, em Porto Alegre. “O aluguel custava R$ 750”, disse Tatiana.

Local ocupado pelos estudantes indígenas em Porto Alegre. (Foto: Gabriel Ferri/Beta Redação)

Mas a conquista da sonhada moradia foi contemplada em 30 de março, e o prédio da Creche Francesa Zacaro se tornou a nova Casa do Estudante Indígena da UFRGS. A universidade pretende abrigar no espaço destinado aos indígenas um total de 80 alunos e alunas, e vai acolher as crianças também.

O amor pela enfermagem e os próximos passos

A profissão escolhida por Tatiana trata de cuidar do próximo. Ela sorri contando que a filha Thayla pensa que ela é médica, pois viu a mãe usando um guarda-pó e recorda de uma história que contavam em sua aldeia — e que a motivou a sonhar com uma profissão na área da saúde. “Eu queria fazer medicina, pois quando eu era pequena alguém contou que após uma consulta no posto de saúde, um doutor falou: 'se algum dia um indígena se formar em medicina, vocês todos morrem'”.

A dificuldade para estudar se ampliou ainda mais durante a pandemia, com o formato das aulas online e a falta de entendimento por parte de alguns professores quanto a dificuldade de acesso à internet pelos estudantes indígenas. Tatiana tentou pedir ajuda para uma monitora, que também enviou e-mail aos professores, mas apenas uma professora retornou compreendendo a situação.

Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) apontam que em 2018, apenas 0,5% das vagas nas universidades era ocupado por mulheres indígenas. Com o início das cotas em meados de 2012, entre os anos de 2013 e 2014, o número indígenas na universidade começou a crescer: de 3.876 alunos e alunas, passou para 9.018 estudantes. E o aumento mais significativo ocorreu em 2016, chegando a 26.062 estudantes ingressantes. Mas permanecer estudando em uma universidade federal ainda é uma realidade muito difícil para esta população.

Segundo os dados da INEP, apenas 0,5% das mulheres na universidade são indígenas. (Gráfico: INEP)

Para Tatiana, outro sonho agora, já moradora da Casa do Estudante Indígena, é trazer a filha Thayla para que conviva com ela na UFRGS. A história de Tatiana se confunde com as de outras faces femininas da ocupação. Confira os relatos de outras mulheres indígenas no documentário produzido por Isaías Rheinheimer para a Beta Redação.

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