Combate à pobreza menstrual ganha espaço dentro e fora de campo

Torcidas, times amadores e clubes profissionais promovem campanhas de arrecadação de absorventes

Patrícia Wisnieski
Redação Beta
7 min readSep 27, 2021

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Pobreza menstrual atinge 4 milhões de mulheres no Brasil. (Imagem: Reprodução/Pexels)

Não é de hoje que o amor pelo futebol impulsiona a solidariedade dentro e fora do campo. A chegada da pandemia de Covid-19 e a distância repentina dos gramados trouxe à tona uma outra forma de expressar amor pelos clubes. Coletivos de torcedores, times amadores e equipes profissionais têm unido forças para ajudar o próximo, como mostra o texto “Torcedores se mobilizam para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade”. Para além disso, a cada dia, ações sociais com o recorte de gênero ganham espaço não só dentro do campo, mas em todos os segmentos da sociedade.

O tema da pobreza menstrual tem se destacado nas redes sociais e gerado reflexão desde o início de 2021. “Enquanto vamos ao mercado/farmácia adquirir produtos que sanem nossas necessidades básicas, existe um número absurdo de mulheres e meninas que deixam de fazer atividades corriqueiras, como ir à escola, porque não têm acesso ao item mais básico nesse período, o absorvente. Além disso, muitas não têm acesso sequer à saneamento básico para higiene pessoal”, destaca a presidente da Força Feminina Colorada (FFC), Francine Malessa, 30 anos. A torcida organizada por mulheres do Inter arrecada itens básicos de higiene desde maio de 2021, quando o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) divulgou dados sobre o problema da pobreza menstrual no Brasil.

De acordo com o relatório, 4 milhões de meninas em período escolar não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais no país. A pesquisa apresenta não só a carência de absorventes, mas também a falta de saneamento básico e de acesso a banheiros para a higiene pessoal. “A pobreza menstrual é caracterizada pela falta de acesso a recursos, infraestrutura e até conhecimento por parte de pessoas que menstruam para cuidados envolvendo a própria menstruação”, elucida o documento da UNICEF.

Atualmente o assunto tem recebido mais visibilidade, especialmente após a aprovação do Projeto de Lei n° 4968/2019 na Câmara de Deputados e no Senado. A PL, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT/PE), institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual nas escolas públicas nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio no país.

O Projeto, que aguarda sanção presidencial, deve beneficiar 5,6 milhões de mulheres. Enquanto isto não acontece, ações e campanhas de arrecadação de absorventes e produtos de higiene têm sido a forma de amenizar o problema. “Para nos manter próximas durante o período em que os jogos não podiam ser realizados, começamos a nos mobilizar e ajudar as mulheres da própria Liga, especialmente as que já sabíamos que passavam mais necessidades. Mas isso se tornou tão grande que já não dava mais para ficar só lá, pois as meninas da equipe diziam que conheciam pessoas que precisavam mais do que elas”, conta Jaqueline D’avila, 40 anos, presidente da Liga Leopoldense de Futsal Amador (LLFA).

Tanto a Força Feminina Colorada quanto a LLFA têm realizado campanhas permanentes de arrecadação e distribuição de itens de higiene básica às mulheres em situação de vulnerabilidade de Porto Alegre e São Leopoldo, respectivamente. Além de quebrar o tabu da menstruação dentro de uma área historicamente masculina como o futebol, as iniciativas têm dado visibilidade ao problema da pobreza menstrual.

Campanha “Respeitar os ciclos é uma forma de amor” já entregou 250 kits de higiene. (Imagem: Reprodução/ Facebook)

Juntas, as campanhas já distribuíram 400 kits de higiene pessoal

Francine Malessa conta que foi através da realização de ações sociais que a FFC se manteve próxima em meio à pandemia. “A Força Feminina Colorada é uma torcida exclusivamente de mulheres. Iniciou como um grupo de torcedoras que buscavam apoio para ir aos jogos, com o intuito de ter companhia, fazer amizades e torcer de forma mais segura”, compartilha.

O grupo já entregou kits de higiene na Casa Mulheres Mirabal, referência para mulheres vítimas de violência doméstica, na zona Norte e para o projeto “Alimente Essa Ideia”, no bairro Restinga, ambos em Porto Alegre. “Apesar da menstruação ser algo que faz parte das nossas vidas, tomar conhecimento do problema da pobreza menstrual despertou um sentimento de fazer algo por quem não usufrui dos mesmos privilégios que nós”, relembra Janaina Pinto, 37 anos, vice-presidente da torcida.

Para as representantes da FFC, a comunicação, a propagação dos dados e a discussão sobre o problema são indispensáveis para acabar com a realidade da pobreza menstrual. “O amor pelo Inter é incondicional e foi o que nos uniu. Através dessa aproximação, desde que a Força Feminina Colorada existe, independente das mudanças internas e do nosso gradual engajamento nas pautas sociais, ela sempre teve a intenção de fazer algo pela sociedade”, explica Francine.

Força Feminina Colorada arrecada itens básicos de higiene desde o mês de maio. (Imagem: Reprodução/ Instagram)

Já em São Leopoldo, a campanha “Respeitar os Ciclos é uma forma de amor”, promovida pela LLFA, já entregou 250 kits contendo dois pacotes de absorventes, dois sabonetes, um desodorante, uma pasta e uma escova dental. “O mais legal é que nunca veio um fardo, é de um em um que a gente vai juntando”, destaca Jaqueline D’Avila. A presidente da Liga Leopoldense de Futsal Amador relembra que a campanha surgiu após ela ter contato com a realidade da pobreza menstrual em uma ação corriqueira da entidade.

“Nós fomos numa visita na comunidade ao lado da Ocupação Justo, na casa de uma das famílias assistidas pela Liga. Enquanto conversávamos, a moradora nos contou que a filha não ia à escola há três dias porque a menstruação dela estava muito forte, que o paninho não dava conta de segurar e que ela já havia tentado ‘completar’ a proteção com um pedaço de jornal, mas não teve sucesso. Isso pesou muito para mim, ficou na minha cabeça e eu tive a certeza de que nós deveríamos fazer alguma coisa para ajudar”, recorda.

Ações de entrega de kits acontecem em sábados e domingos nos pontos mais vulneráveis de São Leopoldo e, para além disso, a Liga atende pedidos urgentes de absorvente íntimo durante a semana. “Enquanto a Liga não volta para as quadras -e está, sim, preparada para voltar- ela se tornou mais social do que esportiva. Eu acho que assim ela segue com o propósito de representar um espaço acolhimento. Antes era o acolhimento através do esporte, agora é o acolhimento por meio de ações solidárias”, comenta Jaqueline.

Para ela, é preciso desmistificar a menstruação e oferecer ao assunto a devida importância. “Nós passamos a discutir sobre a menstruação e a carência do absorvente, especialmente neste momento em que vivemos, e usamos o fato da Liga já estar inserida na comunidade e na gestão pública para impulsionar a campanha”, conclui a presidente da LLFA.

No futebol profissional, base do Atlético Mineiro cresce desconstruída

O combate à pobreza menstrual também tem sido debatido dentro de equipes totalmente masculinas, como é o caso das categorias de base do Clube Atlético Mineiro. Atletas e funcionários arrecadaram mais de 400 pacotes de absorventes que foram doados, no mês de agosto, para mulheres em situação vulnerável do Centro Integrado de Atendimento à Mulher, de Belo Horizonte, e ao Projeto Social Mazinho e Amigos, do município de Vespasiano.

“Como os meninos moram dentro do clube e, justamente por ser um ambiente muito masculino, eles acabam não tendo esta vivência em relação à mulher. Então a gente propôs o projeto para eles, até para que valorizem mais a mulher, e foi muito legal porque eles aceitaram muito bem”, enfatizou a pedagoga do setor psicossocial do Atlético, Izabela Bastos, 38 anos.

Izabela trabalha em parceria com profissionais de serviço social e psicologia há 4 anos. O departamento atua, principalmente, na educação, no fortalecimento de vínculos entre os jovens e na disciplina dentro do alojamento. “É engraçado que eu tive receio que os jovens da categoria sub-20 começassem a rir e debochar da iniciativa, mas eles foram justamente a categoria que mais abraçou o projeto. Os atletas trataram o tema de forma muito madura”, expressa.

Atletas da base do Atlético Mineiro desenvolveram projeto “Mais Que Um Absorvente”. (Imagem: Reprodução/ Atlético Mineiro)

As doações de absorvente integraram projeto intitulado “Mais que um absorvente”, acolhido pelos atletas das categorias de base que, naquele momento, já haviam retornado ao clube. “Hoje, nós temos mais de 250 jovens, mas naquele período apenas duas categorias haviam voltado pela questão da pandemia, totalizando cerca de 125 atletas. Isto demonstra o quanto a campanha foi expressiva, pois estes 125 doaram mais de 400 pacotes”, conta Izabela.

A pedagoga explica que, além da arrecadação, o setor trabalha com a conscientização dos jovens sobre a menstruação e o problema da pobreza menstrual no Brasil. “Eu expliquei para eles como nós mulheres passamos vergonha, o quanto a gente tem medo do absorvente vazar e que a gente não deveria ter esse medo, mas acaba tendo por causa do machismo. Assim, eu fui mostrando e explicando para eles que era algo natural”, relembra.

Conforme Izabela, o incentivo do Clube para a realização das campanhas solidárias fortalece o engajamento dos atletas e serve de exemplo. “O futebol consegue chegar em todas as classes, então é essencial que os jogadores estejam envolvidos em questões sociais e comportamentais, não adianta só a parte técnica. É com isso que trabalhamos o tempo inteiro. Os atletas têm que evoluir como seres humanos e não podem achar que jogador de futebol pode tudo, porque não pode, principalmente quando se trata do respeito às mulheres”, finaliza.

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