Cultura respira com Lei Aldir Blanc

Socorro financeiro fez diferença no financiamento das produções, mas não garantiu a subsistência dos artistas

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7 min readJul 7, 2021

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Por Kellen Dalbosco, Letícia Costa, Adriana Corrêa e Amanda Krohn

Aldir Blanc foi um dos compositores da canção “O bêbado e o equilibrista”, hino contra a Ditadura Militar no Brasil. (Imagem: Reprodução/flickr)

Era março de 2020, o silêncio tomou os palcos e o vazio das plateias tornou-se imagem recorrente em teatros, cinemas e casas de show. De lá para cá, foram vários ensaios de retomadas, mas os altos índices de contaminação e morte pela Covid-19 têm mantido fechado os espaços culturais e impulsionado a busca por alternativas financeiras para quem vive da arte. “Foi a primeira classe a ser afetada, porque foram impossibilitados de exercer o seu trabalho, e acredito que também serão os últimos a voltar à normalidade.” Quem desabafa é o músico gaúcho e deputado estadual Luiz Marenco. Intérprete nativista com mais de 30 anos de estrada, ele achou, na interação digital, uma forma de resgatar o calor dos apaixonados por sua música.

Nos primeiros dois meses da chegada da pandemia no Brasil, ano passado, 41% dos empreendedores da economia criativa perderam a totalidade de suas receitas. Dois meses depois (entre maio e julho de 2020), 48,88% não tiveram nenhuma renda. A pesquisa, conduzida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) identifica ainda que no mesmo recorte de tempo (março a julho), em torno de 60% das organizações coletivas e 65% dos trabalhadores individuais da cultura não acessaram recursos públicos ou privados que mitigassem os efeitos da pandemia. Foi nesse momento de extrema necessidade econômica do setor cultural, que, em 29 de junho de 2020, a Lei Federal Nº 14.017, batizada como Lei Aldir Blanc, surgiu com a promessa de auxílio emergencial. Foi só então que o governo federal liberou R$ 3 bilhões para que estados, Distrito Federal e municípios, promovessem ações de apoio à categoria.

O projeto, que leva o nome do compositor de “O bêbado e o equilibrista”, trilha sonora da luta contra a Ditadura Militar, eternizada na voz de Elis Regina, foi um respiro em meio à escassez que atingiu à cultura. Os recursos começaram a ser pagos no mês setembro, dois meses após a aprovação da lei, e sete meses após a paralisação do setor. Os valores foram destinados de forma descentralizada por meio dos fundos estaduais, municipais e distrital de cultura ou então através de órgãos ou entidades responsáveis pela gestão desses recursos.

Para o Rio Grande do Sul foram quase 70 milhões de reais. A LAB foi utilizada por 394, dos 497 municípios, ou seja, 79% do total. Os valores repassados dependiam do número de habitantes. Porto Alegre, por exemplo, teve R$ 9.284.239,27 disponibilizados, enquanto André da Rocha, na serra gaúcha, que tem apenas 1343 habitantes, recebeu R$ 31.197,19. (tabela de valores por município).

Conforme consta no portal de informações do Sistema Nacional de Cultura, 100% dos estados e o Distrito Federal estavam aptos a receber recursos através da Lei Aldir Blanc. Segundo o relatório da Lei Aldir Blanc, 21% das cidades gaúchas que não acessaram os recursos. Segundo a Federação das Associações dos Municípios do RS (Famurs) as duas principais razões para o repasse não ter ocorrido são a ausência de cadastramento do Plano de Ação na Plataforma +Brasil (82%) ou a rejeição do Plano de Ação (18%).

O deputado Luiz Marenco, que integra a Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS acrescenta que outros fatores também dificultaram o acesso aos recursos, e o principal é o desaparelhamento da cultura de uma forma geral, que culminou na extinção do Ministério que leva o mesmo nome, um dos primeiros atos do Governo Bolsonaro. Segundo o deputado, faltam secretarias municipais e departamentos específicos para a pasta e sobram revogações de leis de incentivo em todas as esferas. “Aqui no Estado, no começo da pandemia, 70% dos municípios não tinham instalado o seu sistema municipal de cultura (secretaria e conselhos que regem os fundos de cultura). Agora, vieram esses R$ 3 bilhões, divididos para o país e muitos municípios devolveram, porque não sabiam como é que funcionava, não sabiam do que se tratava”, aponta.

Para Marenco, também houve falha na divulgação adequada da Lei. “Esse dinheiro não pode retornar, isso é muito importante, pois a cultura gera muita economia para o Estado, para o município, para todos. É o trabalho, é o alimento para a mesa, é muito importante essa ajuda. Infelizmente, foi pouco divulgado”, destaca.

Segundo o coordenador técnico da área de Cultura da Famurs, Vinicius Brito, a grande maioria das cidades gaúchas que não acessou os recursos foi porque tomou a decisão de abrir mão.

“Na grande maioria dos casos, municípios muito pequenos que não identificam espaços de cultura ou trabalhadores do setor. Além disso, houve ainda o receio com prestações de contas e responsabilidades posteriores. Dos municípios que não receberam o recurso, a imensa maioria sequer tentou acessá-los”, destacou Brito. O desconhecimento ou a falta de interesse das administrações municipais quanto a adesão ao Sistema Nacional de Cultura foi um grande empecilho para o aproveitamento pleno dos valores disponibilizados pela Lei Aldir Blanc.

De qualquer maneira, Brito pondera que a fatia de recursos para a cultura nos orçamentos públicos, de maneira geral, poderia ser mais generosa: “Trata-se de um setor produtivo que aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, gera mais empregos que as indústrias coureiro-calçadista e automotiva, mas, de qualquer forma, foi um marco”.

Embora desmantelado e desacreditado, o setor cultural tem se mostrado de vital importância nestes meses de isolamento social. As melodias que embalam o trabalho remoto, os filmes que fazem companhia, e mesmo os instrumentos musicais tocados das janelas e varandas nas cidades contrastam com o silêncio das casas de shows. Como nos lembra Aldir Blanc, apesar do contexto histórico que novamente tem se mostrado trágico, “Azar, a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”.

Elis Regina em 1979 interpretando “O bêbado e o equilibrista”, composição de João Bosco e Aldir Blanc. (Reprodução Youtube)

Lógicas diferentes para setores distintos

Engana-se quem enxerga a cultura a partir de uma perspectiva única, categorias diferentes possuem lógicas de atuação distintas e a LAB as atingiu de forma variada os setores. De um lado, o incentivo ajudou a tirar do papel iniciativas que aguardavam a oportunidade de acontecer, como a das chamadas Culturas Vivas. De outro, escancarou a fragilidade de setores que já estavam sofrendo com o desmantelamento da cultura, como o caso das produções audiovisuais, que foram significativamente atingidas pelo desmonte da Ancine — Agência Nacional de Cinema.

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Encerramento das oficinas feitas com os recursos da Lei Aldir Blanc no Instituto Capoeira Social, de Sapucaia.(Foto: Facebook Capoeira Social)

Criada em 2016, a Associação Cultural Desportiva Sapucaiense de Capoeira já atuou em nove municípios, atendendo mais de 1.500 crianças e adolescentes. Fundado por Elias Tom, o projeto foi impactado pela pandemia, como qualquer esporte e atividade coletiva, principalmente pela necessidade de adequação rápida a protocolos de segurança e distanciamento social. A participação de edital de repasse de recursos da Lei Aldir Blanc através da Prefeitura de Sapucaia do Sul, possibilitou a criação de quatro novas oficinas. Através delas, crianças puderam participar de aulas de desenvolvimento pessoal, inovação, criatividade, jumbo e maculelê.

A pandemia da Covid-19 mandou para casa milhares de estudantes em todo o estado do Rio Grande do Sul, realidade que escancarou problemas familiares e comportamentais de crianças e adolescentes que se viram obrigados a permanecer em casa e cessar o convívio social com pessoas da mesma idade. Nesse sentido, o Instituto também interviu junto às famílias, discutindo os problemas da nova realidade. Mas o período conturbado também trouxe esperança. Com a rotina cheia e através dos recursos da lei, Elias Tom conseguiu manter o objetivo — desde o início da pandemia, até o momento, nenhum aluno deixou de frequentar o Instituto.

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Da sala do cinema ao streaming, audiovisual encontra barreiras na produção

Da esquerda à direita: Luka Machado, Gustavo Deon e Lau Graef. (Foto: Gabz 404/Arte: Luka Machado)

A extinção do Ministério da Cultura em 1º de janeiro de 2019 também significou o desmonte da Ancine — Agência Nacional de Cinema. Grande responsável pelo incentivo de produções que já concorreram ao Oscar com melhor atriz, Fernanda Montenegro, e melhor filme, Cidade de Deus, a entidade tem tido sua atuação comprometida. A Lei Aldir Blanc, que prometeu socorro à cultura, não parece ter sido suficiente para o setor, deixando as realizações audiovisuais reduzidas às grandes produtoras e resultando no fechamento dos pequenos negócios.

Porém, os recursos da LAB permitiram a realização de produções como a do documentário Intransitivo, que conta a história de oito transexuais gaúchos. Ao lados dos amigos Gustavo Deon, Lau Graef e Luka Machado, o videomaker Gabz 404 contou com R$ 50 mil do Edital Criação e Formação — Diversidade das Culturas, na região do Vale do Caí. Embora o valor possa parecer alto, os custos de uma produção audiovisual são superiores ao montante, e o grupo precisou planejar outras formas de arrecadar valores para continuar com as filmagens.

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