Da Coligay à Coluna Vermelha: a politização das torcidas da dupla Gre-Nal

Coletivos de torcedores unem o amor ao clube à luta por uma sociedade menos preconceituosa e mais inclusiva

Patrícia Wisnieski
Redação Beta
8 min readOct 19, 2021

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Por Patrícia Wisnieski e Laura Santos

Primeira torcida de pessoas homossexuais do Brasil, a Coligay lutou contra o preconceito nas arquibancadas durante a ditadura militar. (Imagem: Reprodução/Google)

Não é de hoje que futebol e política se misturam. Torcidas organizadas e coletivos de torcedores pautados pela luta política, não só em defesa da democracia, mas também contra o racismo, a homofobia e o machismo seguem mobilizadas mesmo durante a pandemia de Covid-19. Neste período, o amor pelo esporte uniu os torcedores em campanhas solidárias de arrecadação de absorventes, alimentos e roupas, ajudando pessoas em situação de vulnerabilidade social no Rio Grande do Sul. De dentro do estádio, essa mobilização passou a ganhar as ruas, concentrando tanto torcidas tradicionais quanto as fundadas com o intuito de se posicionar.

Uma das principais críticas levantadas pelas torcidas é a elitização do futebol. Essa questão não poderia estar distante do esporte, dos estádios e das torcidas, visto que ela alcança todos os segmentos da sociedade e todos devem ter acesso ao esporte. Essa luta está presente nas arquibancadas há muito tempo e clama por valores de ingressos a preços acessíveis para tornar os estádios espaços mais democráticos.

“A gente anseia por um Internacional democrático, popular, transparente e vencedor. Queremos um Beira Rio pintado de povo”, destaca Ivandro Morbach, 40 anos, conselheiro de Gestão do Inter pelo Povo do Clube. O coletivo de torcedores surgiu em 2012, após o descontentamento de um grupo de colorados com a elitização do estádio. “Nestes nove anos fomos agregando outras pautas, como o combate a todos os tipos de preconceito, à LGBTfobia, ao machismo, e também por uma melhor gestão do clube, com transparência, profissionalização e democracia”, conta Ivandro, ao enfatizar que a principal luta do coletivo é para que o Internacional volte a ter a identidade de clube do povo.

Torcedores se mobilizam para lutar pelos direitos da população. (Imagem: Reprodução/Instagram)

Atualmente, o Povo do Clube tem 78 conselheiros, que na última eleição para o conselho deliberativo representaram a chapa 04, eleita com recorde de votos. Na maior eleição da história colorada, mais de 6 mil pessoas votaram pelo coletivo. “Entre as nossas maiores conquistas dentro do estádio estão um setor sem cadeiras, pois a forma de torcer de alguns torcedores é pular o tempo todo, ficar em pé e as cadeiras atrapalhavam. A outra foi a criação da modalidade Associação Popular, voltada para os torcedores de baixa renda, que tem como valor 10 reais a mensalidade e 10 reais o ingresso”, conta Ivandro.

Ainda de acordo com o conselheiro, há muita luta pela frente, mas as conquistas mostram que este é o caminho a seguir para a popularização do futebol. “Nosso coletivo mobiliza torcedores comuns, da arquibancada, membros ou ex-membros de torcidas organizadas, aqueles que são mais excluídos, inclusive marginalizados. Nós representamos esta luta do povo para resgatar as origens populares, esse torcedor de arquibancada identificado com a história do Inter de clube do povo”, salienta.

Na Arena torcedores também se mobilizam

A luta por direitos nos estádios não é exclusiva de um clube. No Grêmio, a organização política dos torcedores tem movimentado ações e reunido pessoas que almejam um clube mais seguro e popular. A Grêmio Antifascista é um exemplo. Criada em 2014 após o caso de racismo sofrido pelo goleiro Aranha, o coletivo começou mobilizando torcedores contra o racismo e a homofobia dentro dos estádios através das redes sociais.

Grêmio Antifascista se faz presente em atos a favor da democracia. (Imagem: Reprodução/Instagram)

Segundo o integrante Diego, 38 anos, (que prefere não ser identificado), o grupo acredita que o futebol é um dispositivo importante, identitário e afetivo do povo brasileiro. “Quando a gente fala do Grêmio são 7 ou 8 milhões de torcedores, ou seja, é muita gente. Então a luta das torcidas, em parte, se direciona às políticas do clube, porque a gente quer que as pessoas mais pobres voltem a ter acesso ao futebol”, salienta. Não há representantes e conselheiros do coletivo na estrutura administrativa do Grêmio, contudo, segundo o grupo, o papel que a torcida Antifascista desempenha é de pressão e crítica às decisões e posturas da administração.

“A luta política é essencial dentro das torcidas. As torcidas de futebol ainda são muito demonizadas, porque elas ainda representam o pouco de povo que se quer eliminar destes espaços”, lamenta.

Segundo Diego, o coletivo não usa o futebol para discutir a sociedade como um subterfúgio, mas sim o futebol para discutir o futebol. “A gente ama o Grêmio, a gente ama o futebol e a gente quer que seja um lugar menos tóxico e mais seguro, que seja um lugar mais acessível para o povo e que o povo possa voltar para o estádio. Que as pessoas possam estar lá independente de gênero, raça, etnia, credo. Que a gente possa estar lá se sentindo confortável e respeitadas, porque estamos lá pelo Grêmio, pela instituição”, reforça.

Aliados na luta

Do outro lado, no Beira Rio, um grupo de torcedores também almeja um clube mais popular e livre de preconceitos. A Coluna Vermelha surgiu justamente com a intenção de trabalhar questões políticas no contexto do Internacional. De acordo com o integrante Marcelo Cougo, 51 anos, a Coluna Vermelha não é uma torcida organizada e não tem a intenção de disputar espaços dentro do estádio.

“A Coluna Vermelha nasce com o intuito de ser politizada, de fazer política, de incidir politicamente dentro das arquibancadas e também fora, nas manifestações de rua, de sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras”, pontua Marcelo.

Para o membro, dentro do estádio o grupo representa, além do combate à elitização do futebol, a luta por direitos, pela diversidade e contra os preconceitos. “A gente acompanha o futebol feminino de maneira bem atuante, levando faixas e confeccionando material de apoio. Também nos organizamos para a venda de camisas alusivas às nossas lutas e ao Colorado. Com isso, conseguimos arrecadar dinheiro não só para ações da Frente, mas também apoiar outras causas, como as lutas dos quilombos Machado e Lemos, em Porto Alegre”, compartilha Marcelo, ressaltando que apesar da pandemia e do afastamento dos estádios, o coletivo se organizou para estar presente e apoiar o clube.

Coluna Vermelha marcou presença no estádio durante a pandemia. (Imagem: Reprodução/Instagram)

Para a Coluna Vermelha, ser torcedor assíduo de arquibancada é também um ato político. “Não tem como a gente separar fazer política e ocupar um espaço dentro do estádio de futebol, porque ocupar um espaço dentro do estádio é ocupar um espaço dentro da cidade”, reforça Marcelo, que garante que lutar pelo direito de ir ao estádio é lutar pelo direito à cidade.

Tem luta contra o patriarcado também

“O coletivo Elis Vive nasceu para usar as arquibancadas dos nossos estádios para ecoar nosso grito, nossas pautas e torcer muito pelo nosso Grêmio amado”, destaca Patrícia Ferreira, 44 anos. Ela é uma das 50 mulheres que integram o coletivo Elis Vive, que reúne mulheres gremistas para lutar contra o machismo e todos os tipos de preconceito.

“Nosso grupo surgiu através da reunião de gremistas, feministas, anti fascistas, anti racistas, que lutam contra todos os tipos de preconceito, como a homofobia, transfobia, lesbofobia, bifobia, capacitismo, enfim, mulheres propostas a discutir questões importantes no que diz respeito ao nosso direito de ser torcedora, sem machismo, sem misoginia”, pontua.

A defesa das políticas públicas para homens e mulheres, assim como o acesso pleno da população aos direitos humanos e sociais são as bandeiras levantadas pelo coletivo. De acordo com Patrícia, política e futebol são indissociáveis. “Uma torcida que se une para torcer por seu time precisa lembrar que esse time, esse clube, está numa cidade, num estado e num país e que essas instituições precisam cumprir seus papéis”, comenta. Ela frisa que os torcedores fazem parte do clube e, por isso, devem lutar pelos seus direitos, tanto em relação ao próprio clube quanto à cidadania em geral.

Coletivo luta contra o machismo promovendo debates com mulheres importantes como Elza Soares. (Foto: Arquivo Pessoal/Patrícia Ferreira)

Patrícia conta ainda que a escolha do nome é uma homenagem a Elis Regina, gremista associada que marcou história com a luta pela emancipação da mulher. “Além do passado tricolor da nossa pimentinha, Elis nos representa nas pautas das mulheres, pois todas suas entrevistas, vídeos e manifestações dão conta de uma mulher que lutava por nossos direitos e pela nossa vida. Inclusive morreu lutando contra o patriarcado que a destruiu”, enfatiza.

Primeira torcida homossexual fez festa dentro do estádio

Falando em história, a Coligay quebrou barreiras no futebol ao se estabelecer como torcida organizada nos anos 70. “Fundada em 1977, a nossa história, a nossa ida, era exatamente torcer pelo Grêmio. A gente sabia que iam existir pessoas contra, pessoas a favor, mas dentro do Grêmio nós sempre fomos muito bem recebidos”, conta Sérgio Luís Cunha, 64 anos. O membro da primeira torcida formada apenas por pessoas homossexuais do Brasil relembra com emoção os momentos de alegria vividos no estádio.

“Eu nunca vou esquecer do nosso segundo jogo, Grêmio e Juventude, em Caxias do Sul. O presidente do clube na época era o Hélio Dourado e, quando ele nos viu na arquibancada, ficou bege”, disse Sérgio, ressaltando que o principal objetivo do grupo era torcer pelo Grêmio. “Dançávamos, brincávamos, pulávamos, mas na hora do jogo a gente ia lá torcer”, destaca.

Coligay marcou história dentro dos estádios do Tricolor. (Imagem: Reprodução/Google)

Apesar de ter se reunido por apenas seis anos (1977-1983), a Coligay representou um marco para as torcidas organizadas. Ela se constituiu durante a ditadura militar no Brasil e, por isso, sofreu forte repressão do Estado. Ainda assim, Sérgio garante que o grupo sempre foi bem recebido no Olímpico. De qualquer forma, todos os integrantes eram treinados para a autodefesa.

O torcedor relembra a emoção de acompanhar a entrada dos jogadores em campo. “Eles sempre entravam e ficavam em uma linha horizontal para saudar as sociais do Grêmio. Depois disso, todos iam até a frente da Coligay e nos saudavam. Se eu já gostava do Grêmio, se eu já era gremista fanático, isso era maravilhoso”, recorda.

Sérgio agradece, com alegria, a experiência que viveu e as vezes que brincou, pulou, se divertiu, independente de julgamentos, dentro do estádio. “A Coligay representou uma mudança radical no Grêmio, desde a maneira de torcer, até de alegria, de festa. Ela veio pra mudar isso e eu acredito que mudou muito”, conclui.

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