De mal a pior: balanço sobre a gestão de políticas culturais no Brasil
Entenda as mudanças no setor cultural desde a redemocratização até o governo Bolsonaro
Instigar pensamento crítico, encantar, desafiar, afrontar, embelezar e transformar são algumas das muitas finalidades das artes. Já a cultura é definida no Dicionário Aurélio como “o complexo dos padrões de comportamento, das crenças das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade”.
Mas, e se a cultura fosse definida pelo governo atual, qual seria seu significado?
O cenário atual preocupa as pessoas ligadas ao setor cultural, que em dois anos teve a somatória da pandemia de Covid-19 e o rebaixamento do Ministério da Cultura. Na gestão de Jair Bolsonaro, o setor enfrenta cortes no Orçamento, vetos em projetos emergênciais, trocas constantes de secretários e censura.
Após o rebaixamento do status da Cultura para uma secretaria, em 2019, sete pessoas já ocuparam a secretaria. As trocas são um reflexo da visão que o Governo Bolsonaro tem da área.
O histórico de desmontes inicia no período da redemocratização do país e continua nos tempos atuais. As dificuldades vão desde o investimento nas leis vigentes até as barreiras na implementação de novas legislações.
Ataques sistemáticos à Cultura
Doutor em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Rafael Moreira publicou recentemente o livro O Fim do Ministério da Cultura: Reflexões sobre as Políticas Culturais na Era Pós-MinC, em conjunto com o jornalista Lincoln Spada. Em sua publicação mostra que essa não foi a primeira tentativa de extinção do MinC.
No Governo de Fernando Collor (1990–1992), houve a edição de uma medida provisória tornando a pasta uma Secretaria Especial, vinculada diretamente à presidência da República. Com o impeachment, a medida foi revertida após a posse de Itamar Franco (1992–1995).
Segundo Rafael, a primeira tentativa teve cunho neoliberal. Ela ocorreu durante o governo Collor, no final do processo de transição democrática do Brasil. “Era a primeira eleição direta para o cargo de Presidência da República, mas que, ao mesmo tempo, coincide com a onda neoliberal varrendo a América Latina. Uma das ideias que essa onda neoliberal procura reproduzir é a redução, e a cultura acaba virando alvo”, explica.
A segunda ameaça de extinção veio em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência e buscou incorporar a Cultura ao Ministério da Educação. A medida, entretanto, durou pouco. Após repercussão e mobilização do setor cultural, a determinação foi revertida em nove dias.
A tentativa de Temer contava com resquícios da retórica neoliberal, segundo Rafael. Porém, o que mais motivou a reação do então presidente contra a cultura foi o “golpe parlamentar que tira a presidenta Dilma Rousseff da Presidência da República”. Ele ainda afirma que era esperado que os setores culturais reagiriam ao ato e promoveriam reflexões críticas de conscientização da sociedade brasileira, fazendo oposição ao governo Temer.
A produtora cultural, jornalista, atriz e ativista Dinorah Araújo participou e ainda atua ativamente em mobilizações da classe artística. Ela estava presente nos protestos contra a extinção do MinC em 2016.
“Nós, como trabalhadores da cultura, fizemos o ‘Ocupa MinC’, ocupamos os prédios do MinC Brasil a fora. Em Porto Alegre, ocupamos o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), porque a sede que ficava o MinC era alugada, então não era prédio próprio do Governo Federal, e conseguimos trazer o MinC de volta”.
Apesar do levante feito em 2016, a mesma mobilização não voltou a ocorrer em 2019, quando o Ministério foi extinto. Dinorah explica como esse processo foi desgastante para os artistas.
“A gente já sabia que não iria adiantar. A gente achava muito difícil, e recém a gente tinha feito uma luta absurda. Além de que ele poderia meter o pau em nós, bater, prender. Não conseguimos lutar contra esses milicianos.”
Rafael Moreira entende que o grande apoio conquistado por Bolsonaro nas urnas possa ter intimidado os artistas. “Gostando dele [Bolsonaro] ou não, ele tinha um certo apoio popular para levar esse tipo de medida. Então a resistência por parte do setor cultural ficava muito mais difícil. E ele conseguiu enterrar o MinC e todas as suas décadas de história”, lembra.
O ministério conta historicamente com orçamento pequeno, conforme Rafael. Isso permitiu a construção de um discurso que afirma ser mais fácil a extinção da pasta, ao invés do fomento e promoção de políticas públicas para o segmento.
No entra e sai da Secretaria da Cultura, ao menos sete pessoas já ocuparam o cargo. Entre eles, constam Henrique Pires, que deixou o posto após acusar o Governo de tentar censurar um edital ligado à temática LGBTQIA+; José Paulo Martins e Ricardo Braga, ambos com uma breve passagem; Roberto Alvim, diretor teatral afastado após fazer um discurso inspirado em Joseph Goebbels (Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista); Regina Duarte, atriz afastada depois de interromper uma entrevista da CNN Brasil em que defendeu e minimizou a Ditadura Militar; Mário Frias, ator exonerado no dia 31 de março, no embalo da reforma ministerial de Bolsonaro.
Atualmente, quem ocupa o cargo é Hélio Ferraz de Oliveira, até então secretário nacional do Audiovisual.
O fim das leis de incentivo cultural
Marcelo Milan, doutor em Economia pela Universidade de Massachusetts Amherst e professor de Economia e Relações Internacionais na Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, explica que a Lei Aldir Blanc (LAB) sugere que é possível direcionar gastos do governo para o setor durante uma crise sanitária. Entretanto, a dotação orçamentária também diminuiu.
“Existe uma decisão do Poder Executivo e do Poder Legislativo em reduzir a destinação de verbas para a cultura, mesmo com iniciativas pontuais com a Lei Aldir Blanc”, comenta.
Para ele, a queda de investimentos no setor se deve ao fato de que ele é visto como irrelevante ou perigoso em relação à orientação política, principalmente dos ocupantes do Poder Executivo. Isso explicaria, também, a extinção do MinC.
Dinorah Araújo aponta outras dificuldades em relação a lei de incentivo. “Bloquearam todos os projetos aprovados. Ou seja, tu tem que fazer todo o processo de novo. Outra coisa é que proibiram o uso da linguagem neutra, uma censura, repressão. Além de ser muito difícil acessar as plataformas do MinC”, relata.
Proposta em 2021, a Lei Paulo Gustavo (PLP 73/2021) busca reparar o impacto que a pandemia provocou no setor cultural. O projeto do deputado federal Paulo Rocha, do PT (PA), foi à sanção presidencial no dia 15 de março.
Se aprovada, permitiria o repasse de R$ 3,8 bilhões ao setor. Destes, R$ 2,79 bilhões seriam destinados a ações no setor audiovisual. Pouco mais de R$ 1 bilhão deveria ser destinado para ações emergenciais no setor cultural por meio de editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor ou outras formas de seleção pública simplificadas.
Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro decidiu vetar a legislação na noite de 5 de abril. Um dos argumentos apresentados pela Secretaria-Geral da Presidência afirma que o projeto é contrário ao interesse público, pois cria uma despesa sujeita ao teto de gastos.
Além disso, há a alegação de que a proposta não apresentava “compensação na forma de redução de despesa, o que dificultaria o cumprimento do referido limite”. Vale lembrar que o projeto foi aprovado por unanimidade no Senado.
Dinorah, que faz parte do Comitê Lei Paulo Gustavo do Rio Grande do Sul, conta que houve uma mobilização dos artistas para a aprovação do projeto. Representantes da classe enviaram cartas para todas as pessoas que rodeiam Bolsonaro, chefe da Casa Civil, Secretaria de Assuntos Estratégicos e entidades.
“O comitê Nacional Lei Paulo Gustavo iniciou em 25 de maio de 2021 e já existem comitês por todo Brasil”, revela a produtora cultural. Além dos e-mails enviados, houve um esforço para subir hashtags nas redes sociais, como a #AprovaLeiPauloGustavo.
Mesmo com a tensão da espera pela aprovação da legislação, Dinorah seguiu esperançosa e com espírito de coragem para encarar o que viria a frente. Na noite de terça-feira, dia 5 de abril, a mobilização dos artistas já havia começado. Em grupos de WhatsApp ligados ao setor cultural, ativistas incentivavam as pessoas a pressionar os parlamentares para que pautem a derrubada do veto no Congresso.
O movimento de artistas agora quer levantar a #DerrubavetoLeiPauloGustavo. Para a rejeição do veto, é necessária a maioria absoluta dos votos de deputados e senadores (257 votos na Câmara e 41 votos no Senado).
O interesse de Bolsonaro por trás da verba, que está no Fundo Nacional da Cultura e é, portanto, uma verba definida para esse fim, é destiná-la para outros projetos, como o “Casinha Games”, ou doar para instituições. Se em 30 dias o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não encaminhar o veto para apreciação na Casa, essa pode ser uma realidade.
A esperança agora fica no destino de duas políticas públicas: a rejeição do veto à Lei Paulo Gustavo e a sanção da Lei Aldir Blanc 2, prevista para o dia 13 de abril. Essa lei é uma continuação da Lei Aldir Blanc, aprovada em 2020, e sua proposta é que o orçamento seja válido por cinco anos. Saiba mais sobre essa lei na matéria da Beta Redação “Cultura respira com Lei Aldir Blanc”.