“Não queremos a comercialização do nosso conhecimento”

Sabedoria indígena entende a cura para além das plantas

Henrique Tedesco
Redação Beta
6 min readApr 6, 2022

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O uso de ervas e plantas é reconhecida e usada no Brasil para tratamento médico sob cumprimento de protocolos. (Foto: subvertivo _lab/Unsplash)

Para a estudante do sétimo semestre de Enfermagem Araci da Silva, os conhecimentos ancestrais sobre ervas e plantas não devem ser comercializados. A aluna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que pertence ao povo guarani, mora em uma aldeia no interior de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre. Ela pondera sobre a chegada da medicina tradicional até as pessoas não-indígenas e afirma que todo o tratamento começa na intenção. “Temos ervas e plantas espalhadas por toda a aldeia e, quando os brancos vêm até nós, fazemos de graça, mas não mostramos o processo”. Ao não revelar o processo é possível preservar o conhecimento ancestral, explica.

Aos 28 anos, o sonho de Araci é se formar e levar seu conhecimento acadêmico até a aldeia. (Foto: Araci da Silva/Arquivo Pessoal)

A medicina tradicional representa o conjunto de conhecimentos ancestrais passados de geração a geração entre os povos indígenas. Segundo relato publicado pelo Greenpeace, em 2020, a técnica já foi utilizada para salvar uma criança do povo tukano picada por uma cobra jararaca, em 2009. De acordo com a matéria, neste caso, a primeira orientação médica indicava a necessidade de amputar a perna da menina. No entanto, os familiares contestaram a medida e acionaram a justiça para que fosse autorizado um tratamento complementar, utilizando os conhecimentos tradicionais. Com a aprovação do tratamento alternativo, a criança foi salva e o desenrolar da história resultou na fundação do Centro de Medicina Indígena do Amazonas, local que realiza tratamentos orientados por líderes espirituais das aldeias.

Reconhecendo a importância do método e da sua preservação, Araci pretende concluir a graduação de Enfermagem e trabalhar diretamente com os seus familiares. “Tem um grupo de saúde que atende diretamente a minha família. Quando eu me formar, quero trabalhar com eles, porque um dos principais desafios é conseguirem se comunicar com a aldeia. A maioria dos profissionais não fala a língua, o que dificulta o atendimento dos mais velhos, principalmente”, disse.

Dividindo com Araci o sonho de levar o conhecimento acadêmico até as aldeias e somar ao coletivo, o estudante de Medicina da UFRGS Leocir Ribeiro, do povo kaingang, explica que a relação dos indígenas com as plantas remete a uma tradição milenar.

“O pinhão é uma semente que caracteriza muito o nosso povo. Tempos atrás, o fruto era usado para marcar o território durante os conflitos. Na época, os nômades sempre retornavam para os mesmos locais e sabiam exatamente onde era, porque as Araucárias demarcavam”, afirma Leocir.

Pinhão é considerado uma semente sagrada para o povo kaingang. (Foto: Leocir Ribeiro/Arquivo Pessoal)

Com a chegada do inverno, Leocir conta que sempre retorna para a sua aldeia, localizada na região nordeste do estado, levando o fruto para dividir com os colegas. O alimento é rico em potássio e ajuda a controlar a pressão arterial. “A fuva (erva-moura) também é uma planta muito utilizada pelos kaingangs. Ela é cozida por três horas para quebrar os entorpecentes, que podem gerar uma intoxicação alimentar. Comemos junto com uma farinha de milho ou carne de porco e gado”, complementa. A verdura possui proteínas que auxiliam quem tem dificuldades para dormir.

Outra planta importante para a culinária kaingang, e dotada de atributos medicinais, é o kumῖ (mandioca brava). “Comemos o kumῖ com carne de porco, gado ou farinha de milho, mas seu preparo é mais longo porque é mais tóxico que a fuva”, explica. Esse tipo de mandioca possui um alto teor de ácido cianídrico, o que pode ser prejudicial caso não seja feita com o devido preparo. Leocir ensina que o alimento é recomendado para repor as energias: “só encontrei a fuva para vender na cidade, mas devido à poluição, o gosto não é o mesmo”.

O filho de Leocir, de quatro anos, junto com a Fuva (Foto: Leocir Ribeiro/Arquivo Pessoal). A folha da mandioca brava, chamada de mandiva. (Imagem: Alexander Rose/Flickr)

Leocir foi um dos estudantes da UFRGS que participou da luta pela retomada do antigo prédio da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (SMIC), de Porto Alegre. O protesto visava a doação de um espaço voltado para a moradia indígena. No dia 28 de março, foi anunciado que a antiga creche da UFRGS será utilizada para abrigar os estudantes. Contudo, durante o período em que permaneceram acampados em frente à antiga sede da SMIC, foi plantado um pé de bananeira e, outro, de espada de São Jorge, no pátio do prédio. Segundo o estudante, a bananeira é, além de simbólica, usada para fazer pão. Já a espada de São Jorge é utilizada para preparar chás que diminuem o estresse.

“Sempre busco trazer algo do meu povo para o campo acadêmico”, conta o futuro médico, que antes de entrar no curso, experimentou a faculdade de Fisioterapia. “O meu professor pediu para eu trazer alguns exemplos de tratamentos tradicionais para traumas físicos. Então, produzi um vídeo com o conhecedor da cultura tradicional espiritual falando sobre como era feito esse tratamento e levei um exemplo do fruto utilizado: o umbu", relata.

Sem a casca e cozido com vinagre antes de aplicar no local da lesão, o umbu funciona como anti-inflamatório. (Imagem: P.O. Anne/Flickr)

Antes de tudo, é preciso conversar

Iracema Nascimento é uma das líderes espirituais Kaingang. (Foto: Henrique Abrahão/Beta Redação)

“Você pede licença e reza antes de utilizar a planta para fins medicinais”, afirma a líder espiritual kaingang, Iracema Nascimento. Nas semanas em que permaneceu junto aos estudantes no processo de retomada da Casa do Estudante, ela conta que o chá mais preparado foi para dor de barriga. “Temos uma caixa de remédios, mas não a utilizamos. Os chás têm dado conta. Esses dias um bebê estava com gripe, fiz chá com casca de laranja e passou”, relembra.

Caixa de remédios usada pelos estudantes durante acampamento em prédio abandonado. (Foto: Henrique Abrahão/Beta Redação)

Entre as ervas mais frequentes, Iracema cita a guiné e a urtiga: “as duas são muito comuns para o tratamento do câncer de útero. Nós fazemos e esfregamos no local. No tratamento, rezamos e falamos sobre o motivo pela qual ela está sendo utilizada”. Em 2014, através da resolução nº 26 do dia 13 de maio, o Ministério da Saúde publicou texto que define quais características determinada erva ou planta deve atender para ser registrada e usada para fins medicinais.

Do pinhão, Iracema comenta que é possível aproveitar o grão para o tratamento de lesões e oferece um exemplo. “Quando assistimos um jogo de futebol os guris falam que usariam ele para tratar esse tipo de machucado”, conta.

Após a definição do novo espaço que será usado para acomodar os estudantes indígenas da UFRGS, ela afirma que sua primeira ação será “plantar uma araucária” no local.

A urtiga é uma planta usada para o tratamento do câncer de útero, assim como a guiné. (Imagem: liesvanrompaey/Flickr)

Saúde preventiva

De origem guarani, o chimarrão tornou-se símbolo da cultura gaúcha. “É o meu chá favorito”, conta o estudante Leocir Ribeiro. Segundo ele, seus irmãos já compram a erva-mate pronta. Ela ajuda a diminuir a ansiedade e evitar o estresse. Além disso, ele toma o chá de mel com milho para fortalecer o sistema imunológico.

Araci também reafirma a importância da medicina tradicional para ensinar que, tão importante quanto tratar, é prevenir. “O chimarrão é feito na própria aldeia. Temos a erva-mate e colocamos outros chás”, declara a estudante de Enfermagem. Com tudo isso, Iracema destaca que “você precisa respeitar a mãe terra, senão, não irá consumir todo chá e nem alcançar o efeito que deseja”.

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