“O Brasil é referência em eleições digitais no mundo”, diz ex-secretário de TI do TSE

A história da urna eletrônica brasileira, da sua implementação até suas atualizações e embates com fake news

Karolina Bley
Redação Beta
10 min readSep 29, 2022

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As eleições de 2022 irão ter novas urnas eletrônicas, com mais agilidade e acessibilidade. (Foto: LR Moreira/TSE)

Desde a primeira versão de urna eletrônica utilizada em uma eleição no Brasil, no ano de 1996, nunca o processo eletrônico de votação foi questionado como vem ocorrendo nos últimos meses, mesmo sem provas de falhas. Por conta disso, mas também para garantir que o eleitor tenha o direito de entender o funcionamento e a segurança da urna, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vem realizando mais testes de segurança e divulgando mais dados sobre o aparelho.

Nas eleições de 2014, o candidato à presidência Aécio Neves (PSDB) perdeu no segundo turno para a candidata do PT, Dilma Rousseff. Poucos dias após a apuração, o TSE acolheu pedido de auditoria feito pelo partido tucano referente à legenda nos sistemas de votação, apuração e totalização dos votos daquela eleição. Na época, o TSE comprovou em relatório que não houve adulteração ou qualquer indício de violação ao sigilo de voto no pleito.

O segundo turno das eleições presidenciais de 2014 foi disputado por Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), sendo eleita a candidata petista. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Porém, a partir da eleição de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro (PL) como presidente da República, os pedidos de auditoria de urnas nas eleições e até mesmo manifestações por parte da população pedindo voto impresso aumentaram. O atual presidente e candidato à reeleição já afirmou que o sistema eletrônico não teria como ser auditado, o que o TSE rebateu, tendo como exemplo a auditoria pedida pelo PSDB em 2014.

Bolsonaro também acusa, sem apresentar provas, que nas eleições de 2018 um hacker teria tido acesso a dados das votações e violado a segurança das urnas, por conta de uma tentativa de ataque digital sofrido pelo órgão eleitoral naquele ano. Em relação às eleições de 2020, o presidente levantou, mais uma vez sem qualquer prova, a possibilidade de um ataque hacker que teria deletado votos dos eleitores. O TSE também nega essas acusações, afirmando que a urna eletrônica não é conectada à internet, não havendo a possibilidade de manipulação dos votos.

Eleições com votos em cédulas de papel

Giuseppe Dutra Janino é matemático e foi servidor do TSE por 25 anos, sendo secretário de TI do órgão de 2006 a 2021 e um dos autores do projeto da urna eletrônica. Ele explica que o surgimento de um processo eleitoral mais digital no Brasil veio, principalmente, por conta de fraudes no período em que se votava em cédulas de papel. “Era um processo que havia muita intervenção humana, e onde há muita intervenção humana, há pelo menos três atributos vinculados: a lentidão, a prática de erros e muitas fraudes inseridas no processo, isso muito ligado à cultura brasileira, infelizmente”, declara.

Janino exemplifica algumas formas em que a votação era alterada de forma ilegal, como a urna que deveria chegar à seção eleitoral lacrada, porém, já vinha com votos dentro. No momento da apuração, aconteciam casos de subtração de votos e até mesmo, no caso de aparecer um voto em branco, utilização de grafite embaixo das unhas para marcar a cédula.

Segundo o matemático, quando houve fraude nas eleições para governador no Rio de Janeiro, em 1994, foi o momento decisivo para uma grande transformação no sistema eleitoral. Para ele, em países como Noruega e Dinamarca, que votam por cédulas de papel, não houve essa necessidade de sanar um problema, que no caso do Brasil, eram essas fraudes. E ressalta:

“Dizer que só o Brasil usa urnas eletrônicas é uma desinformação. Existem mais de 40 países no mundo que adotam sistemas de votação eletrônica, com urnas semelhantes. A verdade é que o Brasil é referência em eleições digitais no mundo e é reconhecido por isso”.

Giuseppe Dutra Janino foi secretário de TI do TSE por 15 anos. (Foto: Pedro França/Agência Senado)

Combate às fake news

A Justiça Eleitoral utiliza plataformas digitais, principalmente seu site, para combater fake news disseminadas em relação às urnas eletrônicas. Além disso, coloca à disposição diversas informações sobre todo o processo eleitoral.

Segundo o assistente da Seção de Urnas Eletrônicas do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS), Sérgio Fortes dos Santos, ocorreu um aumento nos números de testes de segurança envolvendo a urna eletrônica por conta das desconfianças criadas sobre ela. “Houve ampliação das entidades fiscalizadoras, da quantidade de testes de votação paralela, da amostragem de urnas auditadas durante a cerimônia de preparação das urnas, além do aumento de inscritos e de planos de ataque nos Testes Públicos de Segurança”, coloca. Santos contou com a colaboração de Cássio Zasso, da Coordenadoria de Sistemas de Eleição e Logística, e Luís Fernando Schauren, da Assessoria de Orientação Tecnológica, ambos do TRE-RS, para a elaboração das respostas enviadas por e-mail à Beta Redação.

Para Giuseppe Dutra Janino, a informação é o principal meio para manter o eleitor resistente ou imune às mentiras relacionadas à urna eletrônica. Janino conta que em 1996, primeiro ano de utilização da urna eletrônica, houve muita resistência, principalmente por parte daqueles que de alguma forma se favoreciam com o antigo sistema eleitoral por meio das fraudes. Foi preciso convencer o eleitor de que o processo digital era mais seguro. Algo parecido começou a acontecer a partir de 2018, com as fake news, como relata o matemático:

“É um trabalho tendencioso que visa desqualificar a urna eletrônica e o processo eleitoral, justamente para tirar algum benefício disso. Serve para poder contestar um resultado que não seja favorável a esses que usam dessa estratégia”.

O número de testes de segurança das urnas eletrônicas aumentou nos últimos anos como forma de combater a desinformação. (Foto: LR Moreira/TSE)

Programação da urna eletrônica

No site do TSE, é possível encontrar informações sobre todo o processo de criação de programas para cada eleição e sobre testes de segurança realizados nas urnas. Esses programas ficam abertos, um ano antes da eleição, para que instituições como Ministério Público, Ordem dos Advogados, Forças Armadas, partidos políticos e universidades possam analisar o sistema.

Após essa análise, é feito o processo de blindagem dos programas, chamado de lacração. Janino explica esse procedimento: “É como se eu pegasse uma folha de papel e nela tivesse várias linhas. O algoritmo lê todos os caracteres que estão naquela página e depois libera uma espécie de dígito verificador. Se eu alterar um ponto ou uma vírgula nesse programa, esse dígito verificador não vai bater mais e a urna eletrônica não vai aceitar”.

O próximo passo é a assinatura digital de várias autoridades nesses programas. Assinam pessoas como o presidente do TSE e da OAB, o procurador-geral da República, o diretor da Polícia Federal e representantes dos partidos. Para que houvesse qualquer alteração no sistema, todos teriam que assinar novamente. No final do processo de lacração, uma cópia fica guardada em uma sala-cofre.

Já blindados, os programas chegam aos Tribunais Regionais Eleitorais para serem inseridos nas urnas eletrônicas. Esse procedimento chama-se carga de urna e é capitaneado por um juiz eleitoral. Nesse momento, por meio de audiência pública, em que participam advogados, políticos e eleitores, é feita uma votação teste e se estiver tudo correto, a urna está pronta para ser usada.

A urna eletrônica possui programas criados especificamente para cada eleição. (Foto: Agência Brasil)

Dia da eleição

No momento em que a urna é ligada, ela fará a leitura das assinaturas digitais. Se houver qualquer adulteração, o sistema não irá carregar. Segundo Janino, isso significa que “não é possível um software adulterado ou que não seja de autoria do TSE funcionar numa urna eletrônica”. Quando chega o fim do horário de votação, o mesário digita uma senha e a urna encerra o funcionamento.

A partir daí, a apuração acontece na própria seção eleitoral, não no TSE, já que a urna imprime os resultados dos votos (Boletim de Urna) daquele local específico depois de somá-los internamente. Após a impressão dos votos da seção, a urna gera um pendrive com o resultado digital criptografado. Os dados são levados a um ponto de transmissão para que sejam transmitidos ao TSE pela internet, mas por meio de uma rede privada e criptografada da Justiça Eleitoral.

O assistente da Seção de Urnas Eletrônicas do TRE-RS Sérgio Fortes dos Santos ressalta que “no momento em que o Boletim de Urna é impresso ou gravado em uma mídia, o resultado da eleição já existe, restando apenas a consolidação matemática desses resultados pelo TSE, o que chamamos de Totalização”. Para aumentar ainda mais a velocidade da apuração, Fortes dos Santos diz que a estratégia para o futuro é “aumentar os pontos de transmissão remotos, que seriam instalados mais próximos aos locais de votação, evitando o deslocamento físico desse pendrive por longas distâncias”.

Sobre a possibilidade de fraude nesse momento de envio dos dados aos pontos de transmissão, Janino rebate alegando que o Boletim de Urna serve para essa verificação. “Se acontecesse adulteração — e é extremamente difícil pois precisaria de supercomputadores trabalhando em uma velocidade que não existe até hoje — iria se verificar facilmente que o resultado da seção está diferente do que o que chegou ao TSE. Qualquer um pode ver isso, inclusive o eleitor”.

Mesários contam com suporte pelo “SOS Urnas”. (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Caso ocorra algum problema técnico na urna eletrônica durante a votação, o TSE disponibiliza um suporte ao mesário chamado “SOS Urnas”. O TRE-RS explica que o auxílio “vai desde um simples reinício do equipamento até um atendimento presencial com substituição de urna”. A urna eletrônica possui vida útil de cerca de 10 anos, sendo esse um parâmetro ideal planejado para viabilizar a evolução tecnológica do parque de urnas. Não há planos para aumentar o número de urnas no Rio Grande do Sul, apenas renová-las.

Para pessoas com deficiência, existe a possibilidade de votar em “seções adaptadas”, um total de 163 mil no Brasil. Segundo o TRE-RS, no estado gaúcho serão 4.949 seções eleitorais com acessibilidade (18% do total) espalhadas em 5.528 locais de votação (68% do total). Deficientes visuais encontram na urna eletrônica o sistema Braille, identificação da tecla “5” no teclado da urna e fones de ouvido para sinais sonoros com a indicação do número escolhido e o retorno do nome da candidata ou candidato em voz sintetizada. Para pessoas com deficiência auditiva, haverá na própria urna vídeo de uma tradutora que indicará qual cargo está em votação por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras). No caso de deficientes físicos, a urna eletrônica segue o modelo das seções não adaptadas. Porém, o eleitor poderá votar em um ambiente de fácil acesso.

Voto digital é mais auditável do que o impresso

Na primeira versão da urna eletrônica, em 1996, os votos eram impressos. Porém, com impressoras comuns, que estragavam com facilidade, gerando um problema de logística para a Justiça Eleitoral. Em 2002, por definição do Congresso Nacional, a impressão de votos retornou, mais uma vez causando transtornos nas zonas eleitorais.

Ainda assim, o problema não era apenas logístico. Janino diz que a digitalização do processo veio justamente para diminuir a interferência do ser humano.

“No paradigma digital, o voto está super protegido. Ele está com criptografia, assinatura digital, rastreabilidade. Até hoje ninguém conseguiu passar dessas barreiras e mexer nele. Quando eu pego a mesma informação e boto no papel, o que eu tenho pra proteger? Nada”, alega o matemático.

Segundo ele, as pessoas que defendem o voto impresso olham para a situação de maneira superficial e sem conhecimento sobre o tema. “Chamar o voto impresso de auditável é um sacrilégio. Hoje, o voto digital tem 15 formas de ser auditado, o papel não tem, é só a mão do homem contando”, coloca.

A urna eletrônica imprime o Boletim de Urna para verificação dos votos em cada seção eleitoral. (Foto: LR Moreira/TSE)

Atualizações e melhorias

Na eleição realizada em 2020, houve atraso de algumas horas na divulgação da apuração dos votos. Os representantes do TRE-RS explicam que isso ocorreu por uma pane no supercomputador que recebe os dados das urnas e os “enfileira” para serem somados. “É como se todos os resultados do país ficassem aguardando em uma antessala por pouco mais de uma hora até que a falha técnica fosse sanada e voltassem a ser somados na totalização final”, afirmam em resposta à Beta Redação.

O TRE-RS ressalta que a pane não alterou as informações recebidas, mas caso isso ocorresse, os dados permaneciam armazenados nos pendrives e impressos nos Boletins de Urna. A pane ocorreu por conta de inovação implementada naquele ano, em que a apuração começou a ser centralizada (antes, ocorria em cada estado brasileiro). “Passados dois anos desde a inovação, a falha não vai se repetir porque tivemos tempo para realizar inúmeros testes garantindo a estabilidade da solução”, declara Fortes dos Santos.

Para o especialista do TRE-RS, a “urna ideal” é aquela que inspira o máximo de confiança de seus usuários, e para isso ela precisa ser simples, acessível, robusta e transparente, o que ele considera que a urna atual já apresenta. Porém, acredita que é possível ampliar a transparência publicando o código-fonte para toda a comunidade científica. “Atualmente apenas entidades fiscalizadoras específicas ou investigadores selecionados têm acesso ao código-fonte, mas há estudos em andamento para viabilizar essa publicação”, explica.

Já Giuseppe Dutra Janino acredita que encontrar a “urna ideal” é um trabalho constante, pois sempre haverá possibilidade de melhorias levando em conta que a tecnologia evolui continuamente. “A cada ciclo, quando se termina uma eleição, se levanta as lições aprendidas, tudo que deu certo e tudo que deu errado. Isso já é insumo para o próximo planejamento”, afirma.

Confira abaixo a linha do tempo da implementação e evoluções técnicas da urna eletrônica no Brasil, segundo informações do TSE:

A urna eletrônica brasileira anualmente adequa-se às novas tecnologias. (Infográfico: Karolina Bley/Beta Redação)

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