OMBUDSMAN: Uma experiência sobre contar histórias de vida

Confira os bastidores da participação da Beta Redação no projeto Inumeráveis, que homenageia as vítimas da Covid-19

Luana Rosales
Redação Beta
5 min readJun 30, 2020

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Na reta final do “semestre em que a Terra parou”, os repórteres da Beta Redação receberam o convite para participar de um novo desafio: contar as histórias de vida dos que morreram por conta do novo coronavírus através das informações fornecidas por seus familiares. De forma simplificada, essa é a proposta do projeto Inumeráveis, memorial colaborativo em homenagem às vítimas da Covid-19 — que está tendo a participação de incontáveis jornalistas voluntários de todo o Brasil.

O contato com os organizadores da iniciativa foi realizado pelas coordenações dos cursos de Jornalismo da Unisinos e a proposta foi feita aos alunos pelos professores Felipe Boff, Cybeli Moraes e Sabrina Franzoni. “O interesse em participar veio por ser uma questão muito ligada à editoria de Geral e também por poder colocar o nosso grãozinho de areia nessa cobertura da pandemia, que já sabemos ser histórica”, propôs Felipe ao explicar o projeto em aula.

A turma, é claro, embarcou no desafio, que se mostrou uma mistura de homenagem a tantos brasileiros com um processo de aprendizado profissional único. Para colocar a participação em prática, foi preciso seguir uma série de parâmetros na apuração das informações e na produção dos perfis, que têm a veracidade checada por revisores — também voluntários do projeto Inumeráveis — antes de sua publicação no memorial online.

Na produção das narrativas, muitos dos repórteres se depararam pela primeira vez com o obituário, um gênero jornalístico complexo, mas comum ao dia a dia profissional, inclusive em editorias consideradas mais descontraídas, como esporte e cultura. “Esse gênero tem características específicas e, por mais que a gente não preste atenção nele todos os dias, é um dos textos mais frequentes no jornalismo cotidiano”, destaca Cybeli.

O processo de apuração, que envolve um tema tão emocional, foi um grande desafio para a turma da Beta. Na opinião do repórter Gustavo Machado, a realização do obituário pode ter sido a tarefa mais desafiadora do curso de Jornalismo.

“Foi extremamente difícil. Ler o relato das famílias descrevendo os seus entes queridos é como estar vivenciando o momento junto porque, de um jeito ou outro, é como se eu estivesse inserido na história”, conta.

O repórter define o trabalho como dolorido pois, emocionalmente, as pessoas já se encontram mais vulneráveis por conta da “enxurrada de mortes diárias, o medo, o pavor e as incertezas sobre o futuro”, ressalta.

A repórter Helen Appelt também se sensibilizou com o momento das cinco famílias com as quais entrou em contato para a atividade. “Todas com a mesma dor, os mesmos anseios e o mesmo choro inconsolável. E dói também estarmos em um momento em que não podemos abraçar nossas fontes como forma de demonstrar a solidariedade”, relata.

Para ela, não há palavras que possam ser usadas para tentar diminuir o sofrimento das pessoas. “O luto passa por diversas fases e varia de acordo com o enlutado. Esse momento em que estamos buscando homenagear as vítimas é o mais dolorido para os familiares, por ser uma perda muito recente”, pondera.

No caso de Gustavo, o repórter buscou aproximadamente 10 possíveis fontes e a maioria não quis falar ou não retornou o contato. “Uma atitude completamente compreensível de quem momentaneamente está com o coração dilacerado”, entende o repórter, contando que as pessoas que responderam — seja para dar o seu depoimento ou para dizer que não seria o momento de falar — foram sempre muito respeitosas.

Helen conta que, quando os familiares desistiam, entendia que este era o limite até onde poderia chegar como repórter. “É preciso empatia e compreensão para entender o repetido ‘não temos condições de falar sobre isso’. O que resta é um último: ‘Eu lhe entendo e ainda assim agradeço pela atenção. Sinta-se abraçada por mim’”, relata.

A repórter e editora Vanessa Puls concorda que a experiência foi um exercício de empatia muito grande e muito importante para os futuros jornalistas. “No início, me senti um pouco insegura, não sabia ao certo o que perguntar ou como perguntar. Mas depois acabei me colocando no lugar dessas pessoas que perderam entes queridos e pensei: ‘O que eu gostaria de falar caso fosse um parente meu? Como eu gostaria de ser abordada?’”, conta.

No caso de Guilherme Pech, a primeira fonte foi uma amiga que havia perdido o irmão e o repórter já havia visto a vítima uma vez. “É diferente falar com um desconhecido e conversar com uma pessoa que tu conheces e sabe que não está bem”, comparou o colega, acrescentando que teve muito cuidado na abordagem com a entrevistada.

“Eu estava ‘cheio de dedos’, 'pisando em ovos' para não falar nada que a sensibilizasse mais. Redobrei a atenção, pensando em como ia abordar detalhes, e até tive o cuidado de não perguntar se está tudo bem, o que fazemos quase sem perceber em todo começo de conversa”, conta.

Para Gustavo, não existe uma fórmula exata de abordar as pessoas. O repórter contou ter utilizado as formas mais sutis possíveis para não acabar ferindo os familiares. “É complicado lidar com tudo que envolva o sentimento alheio porque cada pessoa reage de uma forma quando o assunto é perder alguém da família”, opina.

Já um dos casos abordados por Ketlin de Siqueira foi o de uma senhora de Garibaldi, mesma cidade onde mora a repórter. Ela viu que o filho da vítima tinha postado uma foto referindo o acontecido no Facebook e, por coincidência, a mãe da repórter tinha conexão com ele na rede social. “Eu entrei em contato e ele aceitou responder algumas perguntas, mesmo que 'no automático' por estar em um momento difícil”, conta.

Guilherme relata que também utilizou as redes sociais para a apuração sobre o primeiro homenageado e seus familiares, pesquisando fotos e informações para construir a narrativa. Ele já havia escrito um obituário anteriormente, quando trabalhava na Câmara de Vereadores de Esteio, cidade onde reside. “Mas não era um obituário assim, em formato de homenagem”, explica. O material abordava de forma mais tradicional a causa da morte de um vereador e trazia seu histórico de vida.

Já a repórter Bruna Bertoldi achou o processo mais tranquilo por também ter tido experiência com o gênero obituário durante um estágio. De qualquer forma, ela reconhece que se trata de um momento de dor e perda, “o que exige muita sensibilidade por parte do repórter”. Bruna confessa que foi pega de surpresa com a atividade, que acabou envolvendo toda a redação, uma vez que trabalhou durante o semestre como editora de redes sociais.

Já Ketlin nunca tinha feito algo parecido. “Eu achei um desafio porque eu não estou acostumada a fazer perfis relacionados a pessoas que já morreram e sim reportagens mais gerais, mas é um ótimo desafio para os futuros jornalistas”, acredita.

Vanessa também viu a participação no memorial como um grande desafio. “Aprendi muito com esta experiência e tenho certeza de que ela me deixou mais forte e preparada para outras que virão”, acrescenta.

Para Helen, cada experiência acadêmica prepara para a jornada profissional e, esta em especial , ajuda a mostrar os caminhos a seguir no futuro. “Sem dúvida, colaborar com o Inumeráveis foi o mais tenso de tudo o que já fiz. O medo de errar e ser inconveniente foi muito grande, mas serviu para aprender o limite da coragem, determinação, cuidado e, ao mesmo tempo, empatia”, observa.

Todos obituários produzidos pelos repórteres da Beta Redação podem ser conferidos na página do Medium e no site Inumeráveis.

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Luana Rosales
Redação Beta

Escrevo, aprendo, viajo, logo existo. Não necessariamente nessa ordem.