Saúde mental de estudantes indígenas carece de atenção e investimentos

No Rio Grande do Sul, existe um psicólogo especializado na saúde indígena a cada 11 mil habitantes

Vitória Pimentel
Redação Beta
8 min readApr 5, 2022

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Homens indígenas são as maiores vítimas de suicídio no Brasil. (Foto: DanielAcosta2d/Pixabay)

Os direitos dos povos originários seguem sendo pauta de uma luta diária. No âmbito da saúde mental, os dados são alarmantes. A taxa de suicídio entre indígenas foi 2,9 vezes superior à taxa entre brancos no período de 2015 a 2018, segundo dados de 2021 do Ministério da Saúde.

Somada aos altos índices, ainda há a precariedade no acesso a atendimentos na área da saúde mental. Apenas três psicólogos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) são responsáveis pelo atendimento de cerca de 30 mil indígenas no Rio Grande do Sul, como conta Guilherme Müller, sanitarista da Secretaria Estadual de Saúde do RS (SES RS). Os escassos recursos refletem diretamente na qualidade de vida da população.

É o caso de Angélica Domingos, estudante indígena do povo kaingang que cursa mestrado em Política Social e Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela é uma das estudantes indígenas precursoras no acesso aos atendimentos na Clínica de Atendimento Psicológico da universidade.

“A gente tá tentando um fluxo mais direto com a UFRGS, porque alguns estudantes não conseguem o atendimento ou com esse valor [auxílio de 250 reais dados pela universidade] pagar particular. Eu consegui pela clínica da UFRGS porque acionei a Secretaria Municipal de Saúde e falei dessa demanda”, lembra.

O que levou Angélica a buscar pelos atendimentos foram as crises de ansiedade causadas pela distância de sua família e os problemas ligados ao “mundo ocidental”, como ela define. A mestranda explica que questões como capitalismo, competitividade, individualidade e racismo estrutural na universidade e em outros espaços são problemáticas que afetam o seu bem-estar.

Outra questão é central para o seu bem viver indígena: a garantia de uma moradia segura e digna. Sem poder conviver com seus filhos, parentes e lideranças, estudantes indígenas são deslocados de suas culturas e obrigados a se adaptarem à cultura dos brancos.

Quando estava em sua primeira gestação, Angélica se viu forçada a deixar a Casa de Estudantes Universitários (CEU). Era seu segundo ano na graduação em Ciências Sociais e ela não tinha apoio financeiro para alugar uma casa próxima à universidade.

Sem auxílio, foi morar em uma periferia de Porto Alegre, distante de suas duas irmãs — também estudantes da UFRGS. Ela relata que foi um período difícil, pois não conseguia manter a casa e pagar o aluguel. Teve que sair. Mesmo com o auxílio aluguel de 450 reais fornecido pelo Programa de Benefícios da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) da universidade, as condições de moradia eram precárias.

Além de mulher indígena, mãe e estudante, Angélica é também uma das lideranças na luta pela moradia estudantil indígena (saiba mais aqui). A Casa de Estudantes Indígenas é demandada para que as culturas e modos de viver dos povos indígenas sejam mantidos, algo que não é possível na CEU, pois o regimento não permite a permanência de pessoas que não sejam estudantes da UFRGS.

Na cultura kaingang, os sintomas de ansiedade relatados por Angélica são compreendidos de forma diferente. A psicóloga kaingang Rejane Nunes explica que a psicologia Kanhgág refere-se a um adoecimento espiritual, que muitas vezes pode ser visto como depressão.

“Para nós, isso que se chama ‘saúde mental’ é diferente da visão ocidental, pois engloba vários aspectos mais amplos da saúde que estão todos ligados entre si: o corpo, a mente, o território e a espiritualidade estão conectados. Quando uma parte adoece, é o todo que está afetado”, explica.

O tratamento, neste caso, envolve um grande ritual para acalmar os espíritos. Rejane conta que, dependendo do problema, a cerimônia pode ser feita para os espíritos da mata, das águas, da Mãe Terra e outros. A base para a saúde está no respeito à natureza e aos seres espirituais. Na medicina tradicional kaingang, comidas típicas, fogo, fumaça, cinza e água são ingredientes indispensáveis.

Para os povos indígenas, a cura está na relação com a natureza. (Foto: Kazuend/Unsplash)

Os problemas relacionados à saúde mental também podem trazer efeitos preocupantes, como o alcoolismo e o uso de drogas. O cacique Luís Jacinto, da aldeia indígena Pinhalzinho, na Terra Indígena Nonoai, percebeu o aumento do número de jovens que fazem uso de substâncias, algo que não era comum antigamente. “Quando eles estão assim, meio tristes e fazendo o uso de álcool, a gente senta, aconselha pra ele sair disso.”

Também são entregues medicamentos naturais e laboratoriais. Os primeiros, retirados do mato — uma tradição que se repete há anos; os segundos, distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Rejane, que também é mestranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, explica que o uso de álcool e drogas nas aldeias é um reflexo da colonização, do preconceito, do evangelismo e da falta de oportunidades no mercado.

“Existe a necessidade e a importância da discussão da problemática do consumo de álcool entre os povos indígenas, assim como seu enfrentamento, visto ser esta uma questão que vem trazendo sérios transtornos dentro das aldeias indígenas, seja do ponto de vista patológico, como estrutural, social e cultural”, afirma.

O ambiente interfere na saúde dos estudantes

Além da Clínica de Atendimento Psicológico, a UFRGS oferece auxílio financeiro para que os estudantes possam pagar consultas particulares. Foi assim que a discente do povo kaingang, Gabriela*, conseguiu amparo. Através do Prae e de conversas com a psicóloga da casa estudantil, ela recebeu prioridade na fila devido a um episódio de tentativa de suicídio. “Foi bem difícil sair da minha aldeia, vir pra cá e não ter nenhum referencial cultural, porque eu não tinha ninguém aqui”, aponta.

Nascida na aldeia indígena de Pinhalzinho, ela se mudou para Porto Alegre em 2017 para cursar Fisioterapia. Foi depois do início do ensino remoto e do falecimento de um tio que ela teve suas primeiras crises de ansiedade e começou a tomar remédios para dormir.

Entretanto, as crises diminuem — e até somem — quando ela está próxima de seus parentes. Os remédios para dormir são descartados quando Gabriela está em casa, inclusive. Ela prefere os chás de ervas e os rituais realizados pelas curandeiras e pajés da aldeia ao invés dos fármacos.

“Quando eu vou pra minha aldeia, a minha vó, que é uma benzedeira, me benze. Eu acho que o fato de eu estar na minha aldeia me ajuda bastante, porque quando estou lá, perto do meu referencial cultural e espiritual, eu sinto que eu tenho menos crises, que eu fico menos nervosa. Parece que tudo flui melhor.”

Quando a Casa de Estudantes Indígenas estiver funcionando, Gabriela pretende se mudar. Ela acredita que o espaço será aberto para que ela possa se expressar, dividir histórias e ser acolhida.

No final de 2022, a futura fisioterapeuta pretende retornar para sua aldeia. O objetivo dela é dividir e espalhar os conhecimentos obtidos durante a sua graduação nas aldeias de Planalto — e em todas as outras que conseguir chegar.

Atendimento na UFRGS

Os atendimentos disponibilizados pelo Prae são realizados por três psicólogos. Ao todo, mais de 4 mil estudantes estão vinculados ao programa de benefícios da assistência estudantil. Destes, 80 são indígenas. Segundo a UFRGS, o acolhimento em saúde mental é feito a partir da solicitação do próprio estudante.

A universidade explica que, quando é identificada a necessidade do tratamento, são oferecidas as possibilidades de acesso aos serviços da rede externa de saúde. Além disso, a instituição orienta e oferece suporte técnico aos servidores que atuam diretamente com os estudantes.

Em nota, a UFRGS afirma que “a universidade é uma instituição de ensino vinculada às políticas públicas de educação, cujas atribuições diferenciam-se das políticas públicas de saúde. Portanto, o cuidado em saúde mental no âmbito da universidade está em sintonia com os propósitos da instituição e não tem por finalidade substituir as responsabilidades dos serviços de saúde”.

A diferenciação de atendimentos para estudantes indígenas também é levada em consideração pela entidade. Segundo a UFRGS, o atendimento psicológico ou psiquiátrico para indígenas aldeados tem diferentes significados do que para o restante da população.

De maneira geral, essa população dá mais legitimidade ao pajé de sua tribo ou outras lideranças para tratar de seus sofrimentos. “Consideramos importante o respeito a isso como ponto de reconhecimento e preservação cultural. Portanto, entendemos que tratar de saúde mental indígena transcende a disposição de psicólogos ou o auxílio saúde mental”, esclarece a nota.

Saúde pública para indígenas

O respeito às especificidades socioculturais e à medicina tradicional dos povos originários também precisa ser praticado na saúde pública. Guilherme Müller, sanitarista na área técnica de Saúde Indígena da SES RS, explica que os atendimentos da rede pública não direcionados especificamente para indígenas não são qualificados para atuar com as diferentes culturas.

“Eu vejo que a saúde mental indígena tem muitas particularidades por conta das compreensões de mundo que são muito diferentes das nossas. Então, para atuar na saúde mental indígena, tem que se dispor a entender um pouco dessas culturas. E isso não é feito. Na rede municipal é muito difícil encontrar municípios interessados em compreender mais, então isso acaba ficando na mão da própria Sesai”, explica.

A Sesai é a área do Ministério da Saúde responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. A secretaria surgiu a partir da necessidade de reformular a gestão, demanda que foi reivindicada durante as Conferências Nacionais de Saúde Indígena.

No Rio Grande do Sul, onde existe um psicólogo para cada 11 mil habitantes indígenas, o acompanhamento da evolução de transtornos mentais fica praticamente impossibilitado. Devido à falta de profissionais, os atendimentos realizados com essas populações não podem ser individualizados, acontecendo em formato de oficinas.

(Imagem: Vitória Pimentel/Beta Redação)

Os povos originários também têm acesso à assistência da rede básica de saúde, nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). “Os indígenas moram dentro dos municípios, então qualquer política pública de saúde deveria abarcar a necessidade deles também”, complementa.

Apesar disso, as equipes não especializadas não estão qualificadas para atuar com as diferentes culturas. “O que a gente percebe na prática é que esses serviços não têm uma qualificação ou não buscam dar acesso à população indígena, assim como é o acesso a outras populações”, finaliza Guilherme.

No relatório epidemiológico da Sesai, publicado em janeiro de 2022, o órgão afirma que ampliou o número de profissionais na área de saúde mental e qualificou 583 profissionais das equipes multidisciplinares de saúde indígena (EMSI) nos últimos três anos.

Segundo o documento, as orientações dadas pela Sesai levam em consideração “as perspectivas nativas e tradicionais sobre seus adoecimentos, e sobre como desenvolver ações de promoção da saúde e do bem-viver, valorizando as medicinas tradicionais indígenas e suas práticas de autocuidado”. As informações podem ser encontradas na cartilha Atenção psicossocial aos povos indígenas: Tecendo redes para promoção do bem-viver.

(*) A pedido da fonte, seu nome foi ocultado na reportagem para preservar sua identidade.

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Vitória Pimentel
Redação Beta

Jornalista pela Unisinos. Gosto de contar histórias e tenho interesse em tecnologia. Tutora de um gatinho amarelo.