Meritocracia
Não há uma única conquista que tenha mérito exclusivo seu
A narrativa da meritocracia é míope. Na verdade ela é construída para fazer você acreditar que se você conseguiu, todos poderiam conseguir. E quem não conseguiu, foi derrotado por você. E por isso, ao reclamar, essa pessoa quer tomar de você algo que você lutou muito para conseguir.
Mas não é isso. Primeiro, que a lógica do ponto de partida de cada um já desmonta completamente a narrativa da meritocracia. Uma abissal desigualdade social, por exemplo, já não torna isso uma competição entre iguais. Use as analogias que quiser, mas o fato é que só quem realmente nasceu dentro da pobreza absoluta é capaz de descrever dificuldades e realidades do seu cotidiano que alguém da classe média jamais sonhou existir. Imagina, então, para os mais ricos?
Mas qualquer privilégio já corrói o mito da meritocracia. Um mundo onde há machismo, elitismo, racismo, estados religiosos, xenofobia, onde as mais diversas condições são diferenças irreparáveis, não se pode dizer que você tenha competido em pé de igualdade com os outros. Se você é brasileiro, branco, homem, hetero, nascido em São Paulo, não pode achar que quem mereceu ganhar a vaga concorrendo com uma mulher, negra, gay e imigrante nordestina.
Outro ponto é que a sociedade capitalista é também construída dentro da lógica da competição, da corrida, em torno do “vencer na vida”. Isso elabora sua vida desde cedo, muito cedo. Seus pais desejando que você cresça e seja alguém. Dar a melhor educação, os melhores estudos, as melhores oportunidades. Pré-escolas bilíngues, onde 90% dos alunos são brasileiros pipocam pelas capitais do país. Tudo sinal dos tempos. Tem criança de 8 anos estudando mandarim. Tudo para “vencer na vida”. A escolha da escola muitas vezes passa pela idéia de se fazer contatos e que contatos seus filhos irão ter no futuro. Já ouvi de pais falando que escolheram determinada escola porque ali só tem filho de gente importante e que isso ajudará suas conexões no futuro.
Competição! A vida se torna uma competição com outro dentro da lógica capitalista. Mas a vida gregária aconteceu justamente para que sobrevivêssemos não ao outro, que é igual a nós, mas às ameaças que vinham de fora. Homo Sapiens sobreviveram graças à gregaridade. Para além disso, somos também parte de um ecossistema, um planeta, uma natureza, onde muitos recursos naturais que nos são vitais são (e estão) esgotáveis.
Este vídeo viralizou já há um tempo. Ele mostra de uma forma muito interessante o que é o mito da meritocracia. Veja:
Não deveríamos viver em competição, pelo menos não uns com os outros, em busca das condições básicas da vida. Poderíamos ter sim um embate real com as forças que nos pretendem dominar de alguma forma, para terem amplos privilégios, amplo domínio de tudo, inclusive dos recursos naturais. Essa deveria ser nossa competição, mas que deveria gerar união da imensa maioria.
Mas, como já escrevi antes neste blog, é a escassez, a falta, e o medo que isso gera, que nos tornam competitivos uns com os outros. Mas não é tão simples. É porque nos fazem acreditar que se eu competir com você e vencer eu terei e você não terá. Portanto, a escassez passa ser sua, não minha. Eu venci! Entretanto, o controle que gera a escassez é feito por gente que, ao fazer isso, controla a todos. É no medo que a miséria e a fome trazem que nos faz lutarmos uns contra os outros, ao invés de lutarmos juntos contra os poucos que tudo detém. E o mais importante, nessa "corrida" nunca estamos competindo com quem realmente detém e controla tudo. Estamos a competir com gente muito perecida conosco em muitos sentidos.
A escassez, o medo, e a sensação de “vencer na vida”, formam um quadro repleto de egoísmo. Está aí o caminho quase sem volta de uma vida que apenas contém luta contra o outro, busca por conquistas, quase sempre materiais, e poder. No fim, tudo vazio. Poucos, de fato, conseguem a vida que desejam. E ao final, destruíram umas tantas vidas para conseguir isso.
A meritocracia é, portanto, um sistema de cegueira egocêntrica. É um apagamento da vida em sociedade e na forma ecossistêmica em que vivemos. A única maneira de quebrarmos essa via, que tem levado a todos ao caos constantes como guerras, aquecimento global, fome, invasões, refugiados, racismos, preconceitos, é compreendermos que há outra forma de se viver, produzir, ter, e não ter a escassez. Essa forma se chama vida colaborativa. Não haverá bem para mim se não houver para todos.
O único mérito que interessa numa vida em sociedade é aquele de você dispor do seu ego para cuidar da própria sociedade. Ajude e valorize o próximo. Seja honesto e proteja a todos. Não há uma única conquista sua que tenha acontecido sem depender de muitas outras pessoas. Nenhuma, nem uma bem pequena, muito menos sua maior conquista. Os maiores nomes da humanidade sempre tiveram colaboração em todas as etapas de suas vidas e, principalmente, em suas grandes realizações.
A ética não é uma tabela de valores, ela tem praticamente um único valor soberano: Se o que é bom para mim não é bom para os outros, não pode ser bom para mim.
