Novas formas de consumir, fake news, redes sociais, eleição e, claro, a comunicação.

arribanicolas
BOdoGPRS
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8 min readNov 13, 2017
Ao fundo, advogados do Twtter, Facebook e Google testemunhando sobre a investigação em relação a intervenção russa nas eleições.

Aqui está a questão, governo americano está investigando o Facebook, Google e Twitter em relação ao envolvimento da Rússia nas eleições de 2016 para a presidência. Além de ser crime forte para eles lá, quem levanta uma questão relevante é a tecno-socióloga turca, Zeynep Tufekci, em um Tedx:

“Estaríamos desenvolvendo uma distopia (o contrário de uma utopia) somente para fazer as pessoas clicarem em anúncios?”

Acontece que tudo depende da perspectiva que se olha para as coisas. Por exemplo, olhando o Facebook de outra forma, como uma ferramenta. Ele é como um banco, mas que ao invés de transferir dinheiro, transfere dados, entre amigos, entre marcas e pessoas. Isso é curioso, mas é mais que uma analogia, porque transferir dinheiro é transferir valor e, hoje, transferir informação é, ou pode ser, transferir valor. Adiante explicamos.

Mas seguindo e depois voltamos.

Todo mundo sabe que estamos passando por uma transformação absurda em todas as esferas da vida que tem base na conectividade das coisas. O processo, tem como base a internet e ele pode ser entendido mais ou menos assim.

Resumindo, conceitualmente, entende-se que a internet passou por duas fases: a Web 1.0 que seria basicamente um instrumento e a Web 2.0, também chamada de Web Relacional. A diferença é bastante simples, a primeira era utilizada para a difusão de informação, o tratamento e transmissão de dados, textos, sons e imagens. A segunda, bom, a segunda é a que vivemos e você sabe que é muito mais que isso.

Ela desenvolve coletivos, é uma web social, que mais do que distribuir dados, também cria dados. Há um conceito de bidirecionalidade por traz dela, você pode receber, modificar e publicar novos dados. Consumidor é também um criador, não só de dados, mas de valor.

A internet mudou o conceito de consumidor vs produtor. E isso explica da tecnologia blockchain a uma série de outras transformações.

Se você tiver interesse em aprofundar o assunto, vale dar uma olhada no artigo do sociólogo Francisco Coelho dos Santos sobre as novas dimensões de consumo, que faz uma análise profunda sobre o desenvolvimento da web e de seu impacto no consumo.

Mas voltando para o início. Mesmo pressionada, parece que o Facebook se recusa a desenvolver garantias de que a inteligência russa, ou qualquer outra, utilize como ‘arma’ a plataforma para seus interesses políticos-econômicos. Coisas que o New York Times, e uma série de jornais e grupos de comunicação já o fazem. Mas, para o Facebook, ele são uma empresa de tecnologia e não de mídia.

Afirmar isso tem seus motivos, não só conceitualmente, mas politicamente. Seria ruim para o negócio em si, para o seu capital, suas ações, além de se colocar em um espaço onde a política partidária impera.

Acontece que, como comentado, a internet mudou muita coisa. Inclusive, o que seria ou não uma definição de empresa de mídia. E, por mais incrível que pareça, nesse caso o Facebook prefere ficar no passado e se defender a partir de antigos conceitos de mídia do que assumir uma posição.

Sim, eles são uma empresa de tecnologia — ninguém pode negar. Acontece que a diferença entre uma empresa de mídia tradicional e o Facebook, ou qualquer outra rede social, é a essência da web 2.0 já citada: produtor e consumidor, leitor e escritor não estão separados, a relação é bidirecional. Consumir nas redes sociais é também produzir, é também gerar valor como coloca o artigo.

A exemplificação de como a web 2.0 coloca o consumo como um gerador de valor pode ser exemplificado de uma série de formas. O caso Anitta atingindo o topo da parada pop da Bilboard é excelente. A matéria, com o título ‘fãs profissionais’ do Uol já esclarece muito —são fãs ‘profissionais’.

A história é que um grupo de fãs, da Central Anitta, ensinava o público a como consumir o conteúdo da artista e ao mesmo tempo gerar views de um IP americano e contribuir para o sucesso da artista por lá. O que gera um retorno direto para a artista. Abaixo o site:

Em uma página, uma série de tutorias para subir a quantidade de views em cada plataforma nas paradas americanas. (Central Anitta)

O já citado blockchain tem na essência o mesmo princípio. Consumir e gerar valor. A tecnologia de blockchain exige que existam mineradores, que podem ser qualquer computador no mundo, sem entrar em muitos detalhes para tornar, por exemplo, as criptomoedas seguras e viáveis. Ou seja, sendo um minerador você ao mesmo tempo que torna viável a existência da moeda, você lucra com ela. Você, produz e consome ao mesmo tempo. Não há um intermediário separando os dois.

Isso é possível pelo desenvolvimento de comunidades onlines, envolvidas em um mesmo objetivo. Começa com consumo, citado no caso Anitta, mas é ampliado para outras esferas. A própria Tok & Stok, por exemplo, introduziu o conceito, ainda que de forma tímida. Ao transferir a responsabilidade pelo transporte e montagem ao consumidor, a empresa faz com que a montagem faça parte do consumo, e fazendo parte do consumo é um forma do próprio consumo gerar valor.

Ou seja, essa nova forma de consumir reflete em boa parte das transformações que vivemos. Que vem mudando, também, a forma que comunicadores trabalham, empresas se desenvolvem, a vida se institui em suas relações. Mas a grande questão, que é como iniciei esse texto, é entender todos os impactos dessa transformação. O lado bom e o lado ruim.

Por exemplo, vamos utilizar a tecnologia blockchain, brilhantemente inventada, para financiar mercados ilegais, como era comum principalmente no início, ou desenvolver ações como a CatCoins, uma entre uma série de casos de contribuições sociais, que promove a participação de mineradores revertendo o dinheiro para assistência de gatos de rua.

Saindo um pouco do contexto, na metade desse ano, tive a oportunidade de assistir uma palestra do Paul Heritage, um professor de dramaturgia britânico, de Manchester. Estudioso da economia criativa, ele colocava, a partir de uma série de questões, o quanto a economia criativa contribui para o desenvolvimento da nossa liberdade.

Crescendo mais que qualquer outra economia nos últimos anos, colocava que o brasileiro devia aprofundar duas coisas: primeiro se estamos explorando, aproveitando e desenvolvendo toda a diversidade existente no Brasil, algo que todo o britânico, segundo ele, sonha em ter; segundo, o quanto estamos promovendo uma cultura de liberdade das pessoas, através da indústria criativa.

Aproveito para estender a questão:

O que as novas tecnologias, os modelos instituídos pela indústria criativa, as plataformas sociais que modificaram as nossas relações, o dinheiro investido pela empresas anunciantes promovem?

Parece longe da gente, mas a verdade é que existem muitas mudanças acontecendo que estão ou ainda vão impactar profundamente nossa sociedade. E muito disso, tem a ver com o nosso trabalho, com a comunicação em si. Como colocou a socióloga turca, promovemos uma série de tecnologias — e isso é só uma parte da questão — para fazer as pessoas clicarem, mas que por outro lado, abre um espaço que para mal intencionados utilizem como uma arma.

Até 2022, segundo um estudo do Markets and Markets, é esperado que o marketing analítico em redes sociais atinja 9.5 bilhões de dólares. Ou seja, estima-se que a análise de dados das estratégias de comunicação em redes sociais tenha uma taxa composta de crescimento de 28.9% anualmente.

Com esse crescimento você tem o surgimento de empresas especializadas em inteligência artificial (um assunto que por si só já é muito polêmico). Surgem empresas especializada em criar algorítimos para melhorar a performance de campanhas de anúncios, especializadas em otimizar investimentos, especializadas em identificar personas. Tudo voltado para trabalhar dados existentes.

Facebook, Twitter, Google e todas as outras redes sociais possuem uma grande base de dados que é, e cada vez mais será, um paraíso para essas empresas.

Estamos falando da maior biblioteca do mundo com dados sobre uma parcela cada vez maior da sociedade que qualquer um pode se debruçar.

E, mesmo que tenha algo de coerência na defesa, essas empresas por característica tentam fugir de uma responsabilidade de uso. Por princípios, tentam ao máximo usar algorítimos ao invés de discernimento humano, fugir da fricção humana faz parte do modelo de negócio. Defendem, como coloca o The Guardian em um artigo, que sua função é conectar as pessoas e o mundo, mas ignoram que seu crescimento está baseado na venda de anúncios ou dados.

É difícil saber quando eles vão ceder — se é que vão ceder. E também se é que precisam. Mas quanto mais se demora, quando menos se discute, maior a chance das plataformas serem utilizados de forma mal intencionada.

O fake news no pós-eleição 2016 dos Estados Unidos foi mais pauta do que qualquer debate que aconteceu. E não precisamos nem dizer que diariamente está presente no nosso dia a dia aqui no Brasil.

Análise do Buzzfeed comparando o desempenho do fake news e das mainstream news. (Buzzfeed).

E isso não significa nada ainda. Mas pode significar muito, a tecnologia utilizada nos EUA, que hoje é fruto de investigação, já está no Brasil. Quem se associou a agência Cambridge Analytica, que atuou na campanha de Trump, foi o marqueteiro André Torretta. “Estou te enganando? Não, estou apenas entregando o que você quer ver”, afirmou ao El País. O que não deixa de ser verdade.

Mas o Facebook já anunciou que dez milhões de americanos foram expostos a aproximadamente três mil anúncios comprados por trolls direcionados pelo Kremlin. Não só isso, já reconhece que até 126 milhões de americanos podem ter visualizado as propagandas em sua plataforma.

Como comentando, Paul Heritage questionou ao mesmo tempo que louvou nos Diálogos em Economia Criativa promovido pela UFRGS na metade do ano: o que a indústria criativa vem fazendo pela liberdade das pessoas? Aqui, acho que é hora de levantar a questão: como a indústria criativa vai olhar para esses casos?

Não há uma relação direta entre as situações. Mas vamos permitir que empresas e tecnologias utilizem essas plataformas afetando a sociedade de forma negativa ao iludir pessoas? Parece longe, mas quanto antes se levantar a bandeira, melhor. A web 2.0, a web relacional, vem promovendo uma série de coisas positivas.

Mas existe o outro lado da moeda, não tem porque fugir, não tem porque se esconder, não tem porque ignorar. Existem duas formas de nossa atividade ser posicionada nessa problemática, mesmo que não tenha relação direta: a favor da sociedade ou, ao ignorar a existência desses casos, contra ela. Fingir que não temos nada a ver com isso, é de certa forma enganar a si mesmo.

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