(montagem elaborada pelo autor)

O que faz o acordo entre Barcelona e Spotify ser tão interessante?

Dados, branding e entretenimento: entenda o acordo que representa um marco do sportainment

Theodoro Montoto
Published in
10 min readApr 18, 2022

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No começo deste mês foi oficializado um dos principais acordos do futebol das últimas décadas. Marcas líderes em seus ramos de atuação, Barcelona e Spotify fecharam uma parceria de médio/longo prazo, que promete elevar a relação entre esporte e entretenimento a um outro nível.

Para entendermos este negócio com maior profundidade, primeiro precisamos entender o levou cada um a chegar até aqui.

Spotify

O Spotify é uma empresa de streaming de música, fundada em 2006 na Suécia. Na época as pessoas basicamente tinham duas opções para ouvirem suas músicas favoritas digitalmente: pagando por cada uma delas (modelo do iTunes), ou pirateando com plataformas como o Napster.

A empresa, que só foi lançada oficialmente dois anos depois, surgiu como uma opção viável entre essas duas opções, com um modelo de negócios baseado na oferta de um serviço “freemium” (veja mais abaixo), e assim ganhou uma base de usuários muito grande, obviamente muito mais por conta da parte “free” do que da parte “premium”.

Modelo Freemium (grátis -com anúncios- e pago -sem limitações) detalhado (fonte: Four Week MBA)

No mesmo ano de lançamento (2008) o Spotify vendeu cerca de 19% das suas participações para as principais gravadoras (Sony, Universal, Warner e EMI) como acordos de licenciamento de suas músicas. Dez anos depois, abriu capital na Bolsa de Nova York, avaliada em US$ 26,5 bi e meses depois viu as gravadoras venderem suas ações, com exceção da Sony, que ainda manteve metade e da Universal que continua com a mesma participação(hoje ambas têm, somadas, algo em torno de 6% a 7% da empresa sueca). Leia mais sobre a composição acionária do Spotify aqui.

No final do mesmo ano, lançou seu serviços em países do Oriente Médio e Norte da África e em 2019, vieram duas importantes notícias: pela primeira vez, a empresa apresentava lucro, e anunciou uma mudança de estratégia e de posicionamento.

A partir de então passaria a ser uma empresa focada em áudio, ao invés de apenas música. A partir daí, vimos uma série de ações do Spotify na tentativa de expandir sua atuação via mercado de podcasts, comprando de duas start-ups do setor, a Gimlet Media e a Anchor.

Em 2020 adquiriu exclusividade via acordo de licenciamento do podcast mais famoso da plataforma, o controverso The Joe Rogan Experience (vídeo abaixo), por US$ 100 milhões (que depois foi noticiado ter sido pelo dobro do valor), além de firmar parcerias com a influenciadora Kim Kardashian, e com a DC Comics. O investimento no setor de áudio dura até hoje, e se expande até para o ramo de audiolivros.

Esta diversificação/expansão de atuação faz ainda mais sentido quando entendemos um pouco mais sobre a margem que cada “produto” oferece ao Spotify.

Acordo com Joe Rogan representou um marco na atuação do Spotify (Fonte: BBC News/YouTube)

Uma parte do modelo de negócios, citado brevemente no começo do texto, é baseado em uma complexa fórmula de pagamento de royalties às gravadoras e aos artistas (Leia mais aqui). Muitos dos cantores reclamam que recebem muito menos do que deveriam (Spotify passou a ter grande poder de barganha), e demonstraram grande insatisfação. A cantora Taylor Swift chegou até a retirar suas músicas da plataforma em 2014 como forma de protesto.

É estipulado, porém, que 70% dos ganhos que a empresa tem com suas músicas, é repassado para as gravadoras, que por sua vez, são responsáveis por pagar os artistas (O Spotify recentemente inclusive, criou um site institucional, o Loud & Clear, com informações bem interessantes sobre geração de receitas e repasse destas). Já quando alguém ouve um podcast como o do Joe Rogan, a empresa se apropria de todo o dinheiro.

Hoje a empresa é líder do seu ramo, com 31% do market share do mercado global de streaming de músicas (gráfico abaixo), de acordo com o MIDiA Research, empresa que realiza pesquisa e análise de mercados digitais em sua pesquisa referente ao segundo trimestre de 2021.

Market Share do mercado global de música streaming por assinatura de Q2 2021(Fonte: Midia Research/Elaboração do próprio autor)

Apesar de consolidado no topo, o Spotify viu seu percentual de participação cair em relação ao mesmo período dos últimos anos: 33% em de 2020 e 34% em 2019. Ao mesmo tempo, começa a ver o crescimento da Amazon Music, serviço oferecido dentro do pacote de vídeo da Amazon, e do YouTube Music. O estudo ressalta que este último:

“Ressoa particularmente entre a Geração Z e os Millennials mais jovens, o que deve fazer os alarmes soarem para o Spotify, já que sua base principal de assinantes Millennials da década de 2010 no Ocidente está começando a envelhecer”

Em 2021, o Spotify implementou um aumento de preço de diversos planos no mundo inteiro, inclusive no Brasil, o que pode indicar, mais uma vez, uma tentativa de aumentar suas margens, mesmo com o número de usuários crescendo a cada trimestre. Atualmente, conforme a última prestação de contas publicada, o Spotify tem 406 milhões de usuários mensais ativos (entre contas grátis e premium), com previsão de que chegaria a 418 milhões no primeiro trimestre deste ano.

Spotify e Futebol

Dentro deste contexto, o Spotify passou a se aproximar do futebol há alguns anos, começando com parceiras com clubes que passaram a ter perfis oficiais na plataforma, e disponibilizar playlists criadas por seus jogadores. Foi o caso de clubes do Brasil, como Palmeiras, o primeiro do país a ter um perfil na plataforma, São Paulo e Santos. O Boca Juniors também fechou com a empresa (vídeo abaixo) em 2019. Todos estes acordos inclusive, foram entre 2016 e 2019.

Boca Juniors foi mais um clube sul-americano a fechar parceria com o Spotify (Fonte: Boca Juniors/ YouTube)

Mais recentemente em 2021, o CEO do Spotify, Daniel Ek, chegou a fazer uma oferta para comprar o Arsenal, logo após a saída do clube da polêmica Superliga Europeia. Torcedor declarado do clube, Ek, teve uma oferta recusada pelos proprietários, a família Kroenke, de 1,8 bilhão de libras esterlinas, na época o equivalente a R$ 12,8 bilhões.

Barcelona

Do outro lado, nos últimos anos o Barcelona se encontra em uma situação econômica delicada. Com a pandemia de COVID-19 os números pioraram tanto, a ponto que o ex-CEO, Ferran Reverter, declarou que se o clube fosse uma sociedade anônima, poderia ter ido à falência no começo de 2021.

Além de ter receitas menores (principalmente relacionadas ao seu Estádio, foto abaixo), o Barcelona bateu o recorde de gastos de sua história: €1,13 bi. €112 foram de investimentos para desenvolvimento do Espai Barça (projeto de modernização e reforma do Camp Nou e seu entorno), além de outros “gastos extraordinários”.

Receitas do Barcelona projetadas (esq.) e reais (dir.) da temporada 2020/21 (Fonte: FC Barcelona)

Como consequência, o clube catalão divulgou suas contas da temporada 2020/21 com déficit de € 481 milhões. A receita projetada para a atual temporada por sua vez, foi aprovada em 765 milhões, um aumento de 21,2% em relação aos ganhos passados.

O acordo

Dentro destes contextos, Barcelona e Spotify parecem ter encontrado um no outro, possibilidades de solucionar seus (atuais e futuros) problemas. O Spotify será patrocinador do Barcelona e parceiro oficial de Audio Streaming do clube. O acordo, válido a partir de julho deste ano, envolve basicamente quatro frentes:

1. Patrocínio do material esportivo

O primeiro ponto se refere ao patrocínio dos uniformes de jogo das equipes profissionais de futebol masculino e feminino (até 2025/26), que segundo o portal Mundo Deportivo, será de € 57,5 milhões (R$292,5 milhões). O que manterá o Barcelona como terceiro clube que ganha com patrocínio em seu uniforme (gráfico abaixo). O Spotify também irá estampar as camisetas de treinamento das duas equipes, e das escolinhas de futebol dos catalães, o Barça Academy Pro, até 2024/25, por outros €5 milhões (R$ 25,4 milhões).

Acordo com Spotify não representa grandes ganhos financeiros imediatos ao Barcelona (Fonte: Sponsors Data)

Agora, Spotify assume o posto de único patrocinador do futebol do clube, ao substituir três outras empresas. A Rakuten, japonesa do ramo de comércio eletrônico, pagava algo entorno de €55 mi a €60 mi (nesta última temporada, os valores caíram para entre €30 mi e € 35 mi devido aos efeitos da pandemia) para estampar o centro da camisa da equipe masculina.

A Beko, empresa de eletrodomésticos, pagava €19 mi para aparecerem nas mangas do uniforme de jogo, e na camiseta de treino. Com a pandemia, Beko renegociou o contrato para reduzir o pagamento para algo entre €12 e €10 milhões, renunciando o espaço nas mangas.

Já a Stanley Black & Decker, empresa de ferramentas industriais e domésticas, era desde 2018 o patrocinador oficial da camisa da equipe feminina, e pagava €3 milhões por temporada.

2. Naming Rights do estádio Camp Nou

O acordo também envolve o patrocínio de naming rights do estádio que será dividido em dois momentos: 1) enquanto durar a modernização do Espai Barça e 2) outro acordo de longo prazo após a conclusão da reforma do Camp Nou, que passará a se chamar Spotify Camp Nou (foto abaixo) a partir do meio deste ano. A empresa sueca também terá sua marca presente em outros locais do estádio.

Fachada do novo estádio do Barcelona contará com o nome da empresa sueca (Fonte: FC Barcelona)

Ainda segundo o Mundo Deportivo, este será um negócio de €5 milhões pelas seis primeiras temporadas, com possibilidade de renovação por mais 15 anos por entre €15mi e €20 milhões por cada uma delas.

A aprovação do projeto Espai Barça, aconteceu no final do ano passado, coincidência ou não, dois anos depois do projeto de modernização do Santiago Bernabéu. As obras devem ser concluídas no final de 2027, mas o estádio Camp Nou tem previsão de término dois anos antes, como demonstrado em documento oficial do clube. O gasto previsto é de €1,5 bilhão.

Esperando que a aliança com o Spotify faça com que o projeto “transforme as instalações e o entorno do estádio em uma nova experiência de entretenimento de primeiro nível mundial aberta para a cidade de Barcelona”, o Barcelona pretende financia-lo com eventos que não envolvam partidas de futebol (veja no gráfico abaixo). Em dossiê (bem detalhado, aliás) divulgado pelo Barça, 63% das receitas projetadas virão de hospitalidade, patrocínio e naming rights, e com encontros e eventos.

Fontes de receitas projetadas pelo Barcelona para financiamento do Espai Barça (Fonte: FC Barcelona)

3. Ativos publicitários

A terceira parte do acordo envolve ativos publicitários no Spotify Camp Nou e Estadio Johan Cruyff (onde jogam as equipes femininas e as inferiores do futebol masculino),em painéis publicitários , sala de imprensa, zona mista entre outros.

4. Experiências

Por último, a parceria inclui também experiências e presença de conteúdos audiovisuais, pacotes de hospitalidade (lembra do gráfico acima?) e “experiências Barça”.

O que podemos tirar disso tudo?

Um acordo dessa magnitude representa um passo à frente do sportainment. Este negócio é o maior envolvendo esporte e música (embora tenhamos outros importantes, como mostrado na relação de Jay-Z com o futebol). Com este panorama podemos analisar ainda mais possíveis vantagens para cada um dos envolvidos.

Em relação ao branding o primeiro aspecto que fica evidenciado é o reforço do caráter global que as marcas conseguiram neste cobranding, como evidenciado no anúncio oficial:

“A colaboração com o Spotify também marca o objetivo estratégico do Clube de procurar pró-ativamente parceiros que partilhem os valores e a filosofia que definem a sua marca e, ao mesmo tempo, que lhe permitam manter o seu estatuto de referência global, dentro e fora de campo, em um ambiente cada vez mais competitivo”

Enquanto o Barcelona em suas principais redes sociais, tem mais de 260 milhões de seguidores (apenas nas contas oficiais em espanhol), o Spotify, como mostrado anteriormente, tem mais de 400 milhões de usuários ativos e vêm expandindo sua atuação.

Lembra do estudo da Midia Reserach, que dizia que a base de usuários principal do Spotify no Ocidente estava “começando a envelhecer”? Então vamos ao último trecho do anúncio da empresa:

“O Barcelona tem legiões de fãs jovens em todo o mundo — na verdade, a maioria dos fãs do Barça tem menos de 30 anos, o que é um público extremamente importante para o Spotify. Esses fãs também residem em alguns dos mercados de mais rápido crescimento do Spotify, incluindo Índia, América Latina e Indonésia.”

Ainda nestes números, o que pode ter sido o principal fator deste acordo é o compartilhamento de dados. Ambos podem usar da base de dados um do outro, para conhecerem os hábitos de consumo de torcedores/usuários e aprimorarem seus produtos e ainda buscarem vendas cruzadas (cross-selling). Isto pode acontecer, por exemplo, através da geo-localização, como ainda exemplificado pelo próprio Spotify:

“O Spotify está trabalhando com o Barça para alavancar nosso acesso a elementos dentro do estádio para divulgar artistas e permitir a descoberta. Por exemplo, usando os displays digitais dinâmicos para mostrar e segmentar geograficamente artistas relevantes para a audiência global da TV do Barça. Enquanto os espectadores na Europa podem ver uma mensagem sobre um artista, os telespectadores na Índia podem receber uma mensagem diferente e localmente relevante”

Já em termos de gestão, ambos agora também passariam a ser um hub de entretenimento. O Spotify tem a possibilidade de não ficar mais restrito ao âmbito digital, mas agora, pode “tangibilizar” suas experiências em uma das principais cidades turísticas da Europa ao ter o espaço físico do Camp Nou e seus entornos à sua disposição. É possível que vejamos a empresa sueca promovendo lançamentos, eventos ou até produzindo, ela mesma, shows.

É de se imaginar que o Spotify siga a linha das “produções originais”, como fazem Netflix e Amazon, e passe a ser detentora (como o caso do podcast do Joe Rogan) e produtora de conteúdos, o que aumentaria sua margem de ganhos e também seria um diferencial em relação aos seus competidores.

O Barcelona também ganha com isso, porque provavelmente terá ganhos financeiros secundários tendo participação nas receitas de futuros possíveis shows organizados em seu estádio. Além disso, o uso do Camp Nou (foto abaixo) não seria limitado apenas durante a temporada de jogos, mas sim durante o ano inteiro, o que geraria receitas recorrentes por mais tempo.

Relatório do Barcelona sobre a reforma do Camp Nou ressalta o caráter multi-uso do espaço que servirá como palco de shows (Fonte: FC Barcelona)

Isso, sem contar claro, o ganho financeiro imediato que os culés terão. Somando todos os valores, os primeiros anos de acordo darão ao clube cerca de € 67,5 milhões (uniforme de jogo e treino e naming rights), o que representa 10,7% de suas receitas na temporada passada.

Complexa e multi-fatorial, a parceria entre Barcelona e Spotify é muito promissora e, como visto aqui, muito, mas muito coerente.

*agradecimento especial a José Sarkis Arakelian, professor doutor em Estratégia de Marketing, pela “consultoria” na realização deste texto

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Theodoro Montoto

Formado em Administração pela FAAP-SP. Escrevo sobre gestão e marketing esportivo