Dicas de Narrador

Como criar cenários e tramas interessantes para suas narrativas.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
4 min readJun 18, 2020

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Por Porakê Martins

Frame de “Kiriku e a Feiticeira” (1998), filme francês do diretor Michel Ocelot, retratando um griô, os ancestrais contadores de histórias em África.

Em meio ao processo em curso de criação de nossa proposta para um cenário Changeling no Brasil, focada no “Reino” Encantado de Ewarë (cuja introdução você já pode conferir AQUI), uma questão partiu de um dos membros de nossa equipe: Como criar cenários e tramas envolvemtes para nossas narrativas?

Sem contar com muito mais do que minha própria experiência como narrador de RPG, algumas incursões temerárias como escritor amador e uma vida inteira como leitor e cinéfilo voraz, decidi arriscar alguns pitacos:

Acredito que três ferramentas são fundamentais no arsenal de qualquer pessoa que se proponha a tal desafio:

1. Criatividade

2. Simbolismo

3. Verossimilhança

Criatividade tem relação direta com a imaginação. É a capacidade de abstrair, de enxergar as coisas por outros ângulos, ver além do óbvio e lançar uma nova luz sobre o comum. É ser capaz de transformar o ordinário em excepcional. Para criar uma boa história, cenário ou trama é preciso antes de mais nada ser criativo. Ou seja, propor algo novo, desafiador, inesperado, fascinante aos seus jogadores.

Para algumas pessoas, infelizmente poucas, ser criativo é algo que flui muito naturalmente. A criatividade é a marca dos rebeldes, dos inquietos, dos revolucionários, dos questionadores e dos loucos. Daqueles que rompem os limites impostos pelo senso comum, que não se conformam com o óbvio, que não se contentam com as coisas como eles são, ou como elas costumam nos ser apresentadas.

Essa característica se torna cada vez mais raras em um mundo que parece cada vez mais tomado pela desesperança, o pessimismo e a apatia, onde somos condicionados desde o berço a calar, aceitar, obedecer e não ousar.

Felizmente, mesmo para quem encontra dificuldades em ser criativo, há um caminho alternativo, que passa pelo nosso segundo tópico, o Simbolismo.

Simbolismo está relacionado às metáforas, aos significados ocultos e abstratos, às analogias que damos aos elementos, sejam eles da realidade ou de seu próprio universo ficcional, lhes atribuindo novas camadas de significado.

Os pombos, por exemplo, são aves bem comuns, que podem passar desapercebidas em qualquer cidade pelo mundo e, na verdade, são até vetores de várias doenças bem conhecidas por nós, o que evwntualmente lhes rendeu o apelido de “ratos com asas”. Contudo, se a pomba for branca e, especialmente, se carregar no bico um ramo qualquer, instantaneamente a relacionamos, em nosso imaginário cristão-ocidental, ao simbolismo da paz, do Espírito Santo e de emissária do divino, do extraordinário.

Assim, o simples registro da aparição de uma pomba em uma história pode tornar um animal banal em um presságio para seus jogadores. O que poderá tornar muito mais profunda, marcante e interessante sua história. É óbvio, desde que você consiga explorar esse tipo de simbolismo, através de metáforas que façam sentido e que, de alguma forma, impactem e repercutam em sua história.

Uma boa forma de garantir que suas metáforas e simbolismos façam real sentido é estar atendo a nosso terceiro tópico, a verossimilhança.

Verossimilhança está associada à coerência narrativa e à compreensão da(o) narradora(o) em relação aos vínculos entre a ficção e a realidade.

Primeiro é preciso ter muito claro que verossimilhança não significa, necessariamente, realismo. Você não precisa explicar de forma plausível e minuciosa como funciona o sopro flamejante dos dragões em seu mundo de ficção, mas precisará de uma boa explicação se este sopro, mesmo capaz de derreter metal, se mostrar ineficaz em trucidar seu antagonista favorito.

Mundos de ficção, por definição, sempre terão aspectos que fogem à realidade como a conhecemos, por isso, são Mundos de Ficção e não registros documentais de nossa realidade. Mas você precisa ter muita clareza sobre quais são estes aspectos que subvertem a realidade como a conhecemos e estabelecer regras claras de como funcionam, afinal, se você subverte as regras que estipulou em seu mundo de fantasia, ou simplesmente esquece de estabelecê-las, no lugar de gerar imersão, só vai conseguir frustrar e aborrecer seus jogadores, leitores ou expectadores.

Não é porque em sua história há dragões, que as pessoas não precisarão mais de ar para respirar, ou que a gravidade não manterá mais seus pés firmes no chão. Em regra, aquilo que conhecemos da realidade costuma ser válido para preencher as lacunas em qualquer mundo de ficção.

Sim, um dragão pode até soprar uma chama devastadora, mas, a menos que em sua história o fogo mágico seja capaz de burlar as leis mais básicas da física e da química, um mago ou feiticeiro habilidoso poderia extinguir, mesmo essas chamas, criando um vácuo em volta da boca e das narinas de nosso suposto dragão. O que seria uma bela recompensa para uma ação criativa e perspicaz do personagem em questão.

Porém, se sua chama mágica não precisa de ar para queimar, ela deveria ser tão útil nas condições mais usuais, quanto nas profundezas de um oceano, ou no vácuo do espaço, e essa nova regra estabelecida em sua história para as chamas do sopro de um dragão poderão ser usadas de alguma forma criativa por personagens em outro ponto da história, talvez num duelo épico entre um Dragão Vermelho e um Kraken, nas profundezas do oceano. Aliás, dragões precisam ou não respirar em seu universo ficção? Eles sabem nadar?

Regras claras sobre como funcionam os aspectos fantásticos de seu cenário, mesmo que essas regras inicialmente não estejam claras para os jogadores, aumentam a imersão dos envolvidos na história, sejam jogadores, expectadores ou leitores, por transmitirem uma sensação de coerência e coesão narrativa. Além de lhes oferecer a chance de desvendar tais regras e, eventualmente, encontrar formas criativas de se valer delas ou, até mesmo, eventualmente burla-las de alguma maneira criativa. E esta é a matéria prima para histórias realmente memoráveis, divertidas e interessantes.

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Fanpage brasileira do universo clássico de RPG de Mesa, Mundo das Trevas (World of Darkness).