Qual o melhor sistema de RPG?

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
5 min readFeb 6, 2019

Uma breve reflexão sobre a essência de nosso hobby favorito, seus principais aspectos e o desafio de conciliar o sistema com os interesses dos jogadores.

Jogar RPG, como toda a forma de entretenimento baseado em ficção, além de oferecer uma diversão criativa e sem compromisso para uma tarde com os amigos, pode também oferecer uma oportunidade para refletir sobre a realidade que nos cerca e sobre nós mesmos, através de ricas alegorias e simbolismo.

Três aspectos essenciais ou “O Modelo GNS”…

Jogos de RPG possuem alguns elementos básicos em comum, os principais deles são enumerados a seguir:

1. O RPG é um jogo. Ou seja, uma forma de entretenimento que possui regras estipuladas, quase sempre previamente, que regulam as interações entre os participantes e, como tal, tende a evocar a competitividade e o desejo por superar desafios;

2. O RPG é uma é uma forma de contar histórias. Ou seja, a partir dele narrativas são construídas coletivamente através da interação entre jogadores e dos jogadores com o universo ficcional proposto pelo jogo e pelo narrador.

3. O RPG simula uma dada realidade. Ou seja, ele pressupõe a existência ou criação de universos ficcionais que podem ser mais ou menos próximos à realidade, mas que inevitavelmente terão a realidade como parâmetro;

Destes três aspectos, presentes em diferentes graus e proporções em todo o RPG, surgem três abordagens que costumam nortear sistemas específicos de jogo, aquilo que na teoria de jogos se convencionou chamar de GNS, um modelo proposto pelo gamedesigner Ron Edwards para explicar as interações dos jogadores na mesa de RPG, dividindo as abordagens possíveis em três grandes categorias: Gamista, Narrativista e Simulacionista.

A Abordagem Gamista é focada em confrontar desafios e manter o equilíbrio mecânico entre os personagens, ela tende a valorizar o aspecto do RPG como jogo e entretenimento, onde os mais relevantes costumam ser indicadores quantitativos como: níveis de personagens, pontos de experiência, níveis de habilidades e níveis de desafio. Nessa proposta o objetivo dos jogadores e vencer desafios de forma mais direta, a partir de poder bruto ou estratégia em busca de elevar seu personagem até o mais alto nível possível, acumulando pontos de experiência, itens, etc. Essa abordagem reflete a origem do RPG a partir de jogos de tabuleiro e de estratégia e, não à toa, é bem característica dos jogos mais tradicionais, como o pioneiro D&D, que apesar de ter incorporado elementos narrativistas em suas edições mais recentes, como as noções de “Antecedentes” e “Bônus de Inspiração”, mantêm como principal atrativo o foco Gamista. É também essa abordagem que acabou dando aos jogos de cartas e games digitais relacionados ao RPG, como Magic: The Gathering e World of Warcraft.

Já a Abordagem Narrativista é focada na construção da narrativa, na história que está sendo contata pelas ações dos personagens. Ela tende a valorizar muito mais aspectos dramáticos, o objetivo principal do jogo é propor aos personagens jogadores escolhas baseadas em problemas humanos durante as sessões de jogo, abordar reflexões morais, filosóficas e até políticas e socias, mesmo que em detrimento da verossimilhança ou da busca por acumular níveis ou pontuações. Essa pode ser a abordagem que mais delega poder ao narrador, quando há narrador, ao mesmo tempo em que tem o potencial de conferir mais “liberdades poéticas” aos jogadores. O clássico Mundo das Trevas (universo de jogos que compreende títulos renomados como Vampiro: A Máscara, Lobisomem: O Apocalipse, Mago: A Ascensão, etc.), quando surgiu no inicio dos anos 90, foi um dos primeiros exemplos de jogos com essa abordagem, a isso que devemos a famosa “Regra de Ouro”, a expressa diretriz de se colocar andamento da narrativa acima de qualquer regra que possa limitar a fluidez da história que está sendo contada. Com os avanços da tecnologia de game design e surgimento de novas mecânicas, essa premissa foi, mais tarde, incorporada de forma mais “orgânica” em sistemas posteriores, como o sistema FATE. E embora o Mundo das Trevas tenha permanecido por décadas preso à “regra de ouro” como muleta diante das confessas limitações do sistema, sob essa perspectiva estrita, pelo menos no aspecto mecânico, visando adequar melhor o sistema de regras a essa abordagem de jogo, não há dúvidas de que as coisas melhoraram bastante com o advento da quinta edição de Vampiro: A Máscara, ainda sem tradução oficial para o português.

Por fim, a Abordagem Simulacionista é focada na verossimilhança, ou seja, em simular com a maior precisão possível a realidade, na tentativa de aumentar o grau de imersão dos jogadores no universo ficcional proposto, pois, embora o RPG sempre envolva maior ou menor grau de fantasia, é fundamental para a manutenção do interesse dos jogadores que o cenário proposto possua pontos de contato com a realidade que ofereçam aos jogadores o mínimo de familiaridade e segurança diante das incertezas da ficção e da arbitrariedade do narrador. Afinal, mesmo em um mundo onde dragões são uma realidade, as coisas ainda costumam cair para baixo e os camponeses ainda precisam se alimentar para sobreviver. De longe, pelo menos para quem foi introduzido nesse universo nos anos 90 e inicio dos anos 2000, o melhor exemplo de um sistema de RPG focado em uma abordagem simulacionista é o famoso GURPS (acrônimo de Generic and Universal Role Playing System, que poderia ser traduzido como “Sistema Genérico e Universal de Interpretação de Personagens”).

Contudo, vale ressaltar, que nenhuma dessas abordagens costuma ser encontrada em sua forma pura em um jogo de RPG, como já foi dito, todos esses elementos tendem a se fazerem presentes, em diferentes graduações, mesmo que uma dada abordagem tenda a ser a predominante.

No fim das contas, qual a melhor abordagem?

Não há uma forma “correta” para se jogar RPG, sistemas são ferramentas a serviço dos objetivos de cada grupo de jogadores. Cabe ao Narrador, nos jogos em que essa figura está presente, conversar com seus jogadores para deixar clara sua proposta e buscar o sistema que melhor se adéque a ela, só assim é possível evitar que aquilo que deveria ser diversão não se converta em pura frustração.

Entender as distintas abordagens, suas respectivas potencialidades e limitações, e buscar identificar qual é o aspecto (ou aspectos) predominantes em cada sistema de jogo que você tem disponível, pode ser fundamental para o sucesso na empreitada de harmonizar o sistema escolhido com o interesse de seus companheiros de grupo. Claro, sempre é possível fazer adaptações em qualquer sistema para atender seus próprios gostos e necessidades. Sim, você sempre poderá lançar mão de uma faca de mesa para apertar um parafuso, mas o ideal continua sendo usar a ferramenta adequada para cada trabalho.

O RPG é sempre uma construção coletiva, em meio a um mundo cada vez mais individualista e fragmentado. No muno atual, onde as relações humanas tendem a se tornar cada vez mais competitivas e menos presenciais, o mérito de poder reunir pessoas para cooperar e se divertir é algo especialmente valioso e que devemos cultivar. Boas sessões de jogo a todos nós!

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Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.