Dia Nacional do Livro: História, Literatura e RPG.

Glailson dos Santos
Brasil na escuridão
4 min readOct 28, 2020

No dia 29 de Outubro próximo às celebrações de Halloween, do Día de Los Muertos e do Dia de Finados, é comemorado o Dia Nacional do Livro, em referência à criação da Biblioteca Nacional, em 1810. Tal conjunção de datas nos parece bastante apropriada, uma vez que, tanto os livros como as celebrações remetem ao vínculo entre as pessoas através do espaço, do tempo e das gerações. Como escreveu Carl Sagan, em seu livro Cosmos:

"Que coisa incrível é um livro. É um objeto achatado feito de árvore com partes flexíveis nas quais nós imprimimos uma porção de rabiscos escuros e esquisitos. Mas basta olhar para ele e você está dentro da mente da pessoa, talvez de alguém morto há milhares de anos.
Através dos milênios, um autor está falando claramente e silenciosamente dentro da sua cabeça, diretamente a você. A escrita talvez seja a maior das invenções humanas, unindo pessoas que nunca conheceram umas às outras, cidadãos de épocas distantes.
Os livros rompem os grilhões do tempo. Um livro é a prova de que os humanos são capazes de realizar magia."

Aliás, a história da Biblioteca Nacional, criada a partir do acervo da Real Biblioteca Portuguesa, trazido ao Brasil pela Corte de Lisboa, assim como o fato de que apenas com a chegada da Família Real Portuguesa, em 1808, o Brasil foi autorizado a sediar sua primeira universidade e imprimir seus próprios livros e jornais, é bastante reveladora dos vínculos entre o presente e o passado, e entre vivos e mortos, além de nos oferecer pistas importantes para as inquietações e reflexões que nos levam a escrever o presente artigo, sobretudo, quando se considera que universidades e imprensa eram algo presente nas colônias espanholas, nossas vizinhas, pelo menos desde o século XVI.

Mas o que a data comemorada em 29 de outubro tem a ver com RPG?

Ora, tudo! O RPG de Mesa, o original, que inspirou os “jogos digitais de RPG”, bem poderia ser compreendido como um gênero literário, além de se constituir em uma categoria dos jogos de estratégia, afinal, livros são sua principal mídia, tanto em formado físico como em PDF. Dados podem ser substituído por cartas, disputas de “pedra papel e tesoura” ou até mesmo estarem completamente ausentes, mas os livros continuam associados à essência dos jogos de RPG.

Já é praticamente um consenso entre profissionais da área de educação a relevância do RPG de Mesa como uma forma de lazer que promove o hábito da leitura e o consumo de outros gêneros literários, sobretudo romances históricos e ficção. E como gênero literário, o RPG também padece com os revezes do mercado editorial brasileiro e com todas as mazelas de nossa tradição nacional elitista, iletrada, ressentida e cheia de preconceitos (maiores detalhes sobre o mercado brasileiro de RPG, recomendamos o excelente artigo de Thiago Rosa, que você confere AQUI).

Na última década, o Mercado de Livros no Brasil tem amargado sucessivas retrações e vivido uma crise que tem sua faceta mais óbvia revelada no fato de que mesmo grandes redes, como as das Livrarias Saraiva e Cultural, estão há anos lutando para sobreviver enquanto demitem centenas de pessoas.

Para piorar, recentemente, o governo federal anunciou sua intenção de acabar com as isenções fiscais do setor, o que felizmente gerou grande comoção pública e poderia ter representado um “tiro de misericórdia” neste ramo da indústria nacional, já bastante combalido pela chegada no país, da maior gigante mundial do setor, a Amazon, que ameaça, ainda mais, com seu monopólio e onipresença, a sobrevivência de livrarias e editoras nacionais.

Mas não é como se antes disso as coisas estivessem indo “de vento em popa”. Além de tardia, a indústria de livros no Brasil sempre foi bastante incipiente e elitizada, dominada por livros de autoajuda, pouco acessível a amplas camadas da população e forçada a conviver com um índice altíssimo de analfabetismo funcional, pois, segundo o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), medido em 2018, cerca de 30% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais, ou seja, três em cada dez brasileiros são incapazes de ler e interpretar mesmo os textos mais simples.

A produção nacional que consegue escapar do nicho de autoajuda ou de livros religiosos é quase completamente dependente de editais públicos e financiamento coletivo, o que na maioria das vezes se reflete em informalidade, precariedade e precarização, um cenário que também repercute no mercado de RPG, como não poderia deixar de ser.

A recente desvalorização galopante o real frente ao dólar, poderia ser uma oportunidade de crescimento da produção nacional de livros, em especial o de livros de RPG, um mercado ainda bastante dependente de produção estrangeira (vide as quintas edições de D&D e Vampiro A Máscara), porém, a crise econômica desencadeada pela COVID-19 e a desastrosa política econômica do atual governo trouxe de volta as ameaças da recessão econômica e da inflação descontrolada. Se está cada dia mais difícil para o brasileiro colocar arroz com feijão no prato, que dirá preencher a estante com livros?

Saudamos todas aqueles e aquelas que se dispõem a promover a inclusão e representatividade na cena de RPG e reafirmamos nosso compromisso com essas importantes pautas, porém, não podemos esquecer, ser consequente neste campo exige também o compromisso com o acesso de toda a população aos livros e à educação de qualidade, que permita ao público em geral condições mínimas para usufruir de nosso hobby, o que só poderá ser conseguido com políticas públicas realmente comprometidas com a educação, a cultura e o lazer, para além do mínimo necessário à sobrevivência, como saúde pública, alimentação garantida e condições de vida dignas.

Viva a produção literária brasileira! Viva o RPG! Feliz Halloween, pra quem é de Halloween, Amém, Namastê, Axé e Saravá! Honremos todos nossa ancestralidade. Boas leituras! E sorte e consciência, no jogo e na vida!

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