Um pouco sobre a História do RPG…

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
11 min readFeb 15, 2019

Nas brumas do passado, as origens de nosso hobby…

Com alguma presunção, pode-se alegar que as origens do RPG de mesa remontem à Commedia dell’arte, uma forma de manifestação artística da Europa do século XVI, onde atores itinerantes apresentavam espetáculos nas ruas, sem roteiro e sempre com base no improviso, satirizando escândalos locais, eventos atuais, ou manias regionais, temperando-as com piadas e bordões, voltados ao público que não tinha condições de frequentar os teatros formais, ainda mais elitistas naquela época do que costumam ser hoje.

Alguém ainda mais pretensioso poderia ver no RPG um reflexo de nossa ânsia primordial por compartilhar histórias, ecoando pelo tempo desde que nossos ancestrais se reuniram pela primeira vez em torno de uma fogueira sob a luz das estrelas.

O que a história oficial registra, entretanto, é que no, não tão distante, ano de 1969, o jovem norte-americano, militar da reserva, formado em física e aspirante à designer de jogos, Dave Wesely, em um encontro de entusiastas de jogos de estratégia (wargames) na universidade de Minesota, “narrou” a primeira sessão pública de sua mais nova criação, um jogo caseiro chamado Braunstein, onde cada jogador representava um único oficial ou revolucionário em uma cidade fictícia.

Entre os participantes dessa sessão pioneira estava Dave Arneson que, em 1971, certamente influenciado pela experiência, usaria a ideia de incorporar a interpretação de personagens individuais ao seu próprio jogo de estratégia chamado Blackmoor. Foi também em 1971 que um desempregado Gary Gygax, já veterano no meio estadunidense de wargames e aficionado por ficção científica e fantasia, finalmente publica o seu Chainmail, um jogo de estratégia com miniaturas que simulava combates táticos na Era Medieval, originalmente pensado como um cenário histórico, mas que logo incorporou também elementos de fantasia.

Foi graças à parceria entre Dave Arneson e Gary Gygax que surgiria, em 1974, o primeiro jogo de RPG a ser publicado e disponibilizado comercialmente, o emblemático Dungeons & Dragons, nosso famoso D&D, que uniria ideias presentes anteriormente tanto em Blackmoor como em Chainmail.

A empresa responsável por essa iniciativa pioneira foi a lendária TSR, empresa fundada um ano antes por Gygax e seu amigo Don Kaye com o objetivo de lançar D&D como um produto para um nicho muito especifico de consumidores. Gygax não espera vender mais do que mil exemplares de seu jogo, mas precisou incorporar à parceria, um investidor chamado Brian Blema, apenas para obter recursos suficientes para seu primeiro lançamento. Nenhum deles àquela altura poderia imaginar o sucesso a influência que teria seu despretensioso trabalho.

O início foi promissor, as primeiras mil caixas de D&D esgotaram em menos de um ano e o jogo logo se popularizou nas convenções de fãs de jogos de guerra e estratégia, até passar a ser também distribuído em redes de lojas de jogos e livros nos EUA.

A primeira edição Livro do Mestre, publicada em 1979, incluiu uma lista de leitura recomendada de vinte e cinco autores e marcou o início de uma relação estreita e duradoura entre RPG e literatura. As referências literárias e mitológicas do primeiro Livro do Mestre de D&D ajudaram a atrair novos fãs e a moldar toda uma geração inspirada por obras de autores como J. R.R. Tolkien, Jack Vance, Poul Anderson, Robert E. Howard, Edgar Rice Burroughs e H. P. Lovecraft.

Anos 80: D&D se populariza e desembarca extraoficialmente no Brasil abrindo caminho para outros jogos.

Em 1980 D&D já era uma grande febre, quando em 1982 a estreia do filme Labirintos e Monstros (Mazes and Monsters, no original), apresentando uma critica incisiva ao RPG, é estreado por um jovem e desconhecido Tom Hanks, tornando pública uma grande controvérsia sobre a suposta capacidade do jogo de influenciar negativamente a juventude nos EUA, o que repercutiria negativamente na imagem pública do hobby.

Seria só com a estreia do desenho animado Caverna do Dragão (Dungeons e Dragons, no original) que o jogo passaria a usufruir de uma representação positiva na grande mídia e confirmaria seu sucesso com o lançamento do AD&D (Advanced Dungeons & Dragons), em 1987, e o surgimento da concorrência com gêneros alternativos como: Super-Heróis, com o sistema Champions; além de cenários de Ficção Científica, como Cyberpunk.

No Brasil, D&D desembarcou nos anos 80 com alguns poucos exemplares que imigraram dos Estados Unidos para alimentar sectos seletos de entusiastas, grupos que ficariam conhecidos como “A Geração Xerox”. Jogadores sem domínio da língua inglesa só iriam usufruir de uma edição do jogo em português em 92, quando a primeira Edição brasileira de D&D foi lançada pela Grow no consagrado box HeroQuest.

Anos 90: Surge o Mundo das Trevas e o RPG explora novas fronteiras.

Ao longo dos anos 90 outros títulos surgiriam, oferecendo diversas opções de mecânicas e cenários. Mas o que marcou mesmo a cena mundial de RPG daquele período foi o lançamento, nos EUA, da primeira edição de Vampiro: A Máscara, também em 1991, que inaugurava a linha Storyteller, do clássico Mundo das Trevas (World of Darkness), voltada para um público que já tinha crescido jogando AD&D, mais pedia por uma temática mais dramática e sombria, que levasse o jogo para além dos limites da necessária e sempre bem vinda diversão, o mais próximo disso que tínhamos tido até então era o cenário de horror gótico de Ravenloft, publicado originalmente em 1983 como suplemento para AD&D.

Com a linha Storyteller, a White Wolf fazia o caminho inverso trilhado por TSR, oferecendo ao público, jogos produzidos por escritores que migravam da literatura para o designer de jogos, com a proposta de sobressair os aspectos narrativos à mecânica e usar a fantasia para tentar evocar reflexões sobre a realidade contemporânea e a natureza humana.

Os jogos desse universo eram ambientados em um cenário que emulava, sob muitos aspectos, nosso mundo real, ressaltando suas contradições e aspectos mais sombrios. Embora nem todos tenham abraçado ou compreendido a proposta ousada e pretensiosa de Mark Rein-Hagen e sua trupe e as limitações de mecânica e sistema tenham se tornado mais e mais evidentes e limitadoras para concretização dessa proposta com o passar dos anos, esta linha de jogos foi um sucesso mundial, sendo, talvez, a que chegou mais perto de tentar ameaçar a hegemonia de D&D.

O Mundo das Trevas também é creditado por fomentar e consolidar a presença feminina em um meio desde sempre hegemonizado pela presença masculina. Os jogos dessa linha abriram caminho para que muitas garotas fossem introduzidas ao universo do RPG, não apenas como jogadoras, mas também como narradoras, designers e autoras de cenários e jogos.

Vampiro: A Máscara recebeu uma edição brasileira ainda em 1994, uma tradução da segunda edição norte-americana. A esteira do sucesso de Vampiros, vieram também Lobisomem: O Apocalipse, Mago: A Ascensão, Changeling: O Sonhar e Wraith: The Oblivion, que demonstraram ser capazes de cativar um publico tão fiel que manteve vivo os títulos do Mundo das Trevas clássico entre os rpgistas brasileiros, mesmo após o encerramento oficial da linha em 2002. Adições tardias ao Mundo das Trevas clássico, elevadas ao status de jogos autônomos ou apenas introduzidas na terceira edição, Múmia: A Ressurreição e Demônio: A Queda, até chegaram a receber edições nacionais, contudo, sem obter o mesmo sucesso dos títulos anteriores, já Hunter: The Reckoning (Caçador: A Revanche), nem mesmo chegou a ter a chance de uma edição em português.

Nos anos 90, também foram a década de maior disseminação do RPG pelo país, antes mesmo da edição nacional de AD&D, que só viria pela editora Abril em 1995, tivemos Tagmar, o primeiro RPG nacional publicado ainda em 1991 pela GSA, um jogo concebido e produzido por uma equipe 100% brazuca, que, embora emulasse muito da experiência de D&D, trazia suas próprias regras e mecânicas inovadoras. Outro marco para o RPG tupiniquim, com o lançamento de Desafio dos Bandeirantes, também pela GSA, este foi o primeiro RPG de Mesa a abordar temáticas genuinamente brasileiras, um RPG de fantasia histórica, passado numa versão mítica do Brasil colonial onde os jogadores eram convidados a interpretar personagens como pajés, jesuítas, babalorixás e bandeirantes, além de interagir com personagens do folclore nacional.

Apesar de usufruir de status Cult e ter sido utilizado como material de apoio por professores de história em todo o país, Desafio dos Bandeirantes acabou sendo vitima das dificuldades no mercado nacional de RPG, como a falta de incentivos, a má distribuição e a síndrome de vira-latas que ainda leva muitos jogadores e narradores a torcer o nariz para a produção nacional, sobretudo quando ela se atreve a abordar temáticas tipicamente BR, o que levou Desafio dos Bandeirantes a sair de catálogo desde o fechamento da GSA em 1996. Apesar disso, é claramente o antecessor espiritual de jogos de sucesso da atualidade como A Bandeira do Elefante e da Arara, do autor inglês Christopher Kastensmidt e Jaguareté: O Encontro, produzido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná.

Ainda em 1994, no frisson do lançamento eminente de AD&D no mercado nacional, foi lançada pela editora Trama (Mais tarde renomeada como Editora Talismã até, por fim, assumir o nome de Melody), a memorável revista Dragão Brasil, em torno da qual surgiram ou foram divulgados títulos icônicos do RPG nacional como: Defensores de Tóquio (atualmente disponível em sua 6ª versão, de forma extremamente confusa, chamada de 3D&T Alpha Revisada); E todos os títulos do sistema nacional Daemon: Trevas, Arkanun, Anjos-A cidade de Prata, Demônios- A Divina Comédia, Anime RPG, Invasão, Hi-Brazil, Tormenta e NeoKosmos.

No final dos anos 90, buscando manter lucrativo um mercado que sempre sobreviveu como um hobby alternativo, o então responsável pelos títulos de D&D, Ryan Dancey, no inicio dos anos dois mil, introduziu uma política na qual outras empresas poderiam publicar material compatível com o sistema sob um padrão conhecido como Licença Aberta. Isso deveria dispersar o custo de desenvolvimento de suplementos e aumentar as vendas dos livros básicos, que só poderiam ser publicados pela própria Wizards of the Coast (WotC), então detentora dos direitos de D&D. A estratégia obteve sucesso em gerar um grande volume de material compatível, que, desde então, tem sido publicado por todos os cantos do planeta, atraiu muitos novos jogadores, mas deixou de ter no mesmo destaque na controversa quarta edição do jogo, lançada em 2009.

Anos 2000: Jogos Indie e Licenças Abertas garantem uma retomada do crescimento do mercado de RPG.

Em 2004 a ideia de uma política de licenças abertas para fomentar o RPG seria seguida, de maneira ainda mais radical, pelos criadores do pioneiro Tagmar, que decidiram liberar totalmente e gratuitamente os direitos comerciais do jogo, desde que não fosse para fins lucrativos, o que permitiu o desenvolvimento de Tagmar 2, que segue sendo disponibilizado gratuitamente para qualquer interessado através de um site oficial que você pode acessar AQUI.

Enquanto isso, no outro grande filão do mercado, explorado pela White Wolf, a opção dos executivos responsáveis pelo Mundo das Trevas havia sido de encerrar a linha de jogos em 2004, abrindo espaço para uma nova linha conhecida atualmente como Chronicles of Darkness (Crônicas das Trevas), encabeçada por Vampiro: o Réquiem, que buscava atender as exigências de um novo público, que atingia a maturidade já no século XXI e era, mais do que nunca, ferozmente disputada pela cultura gamer. A nova linha, infelizmente, não conseguiu obter o mesmo sucesso que um dia teve a linha clássica, embora conte com seu próprio secto fiel de fãs e entusiastas, bastante ativos na cena nacional.

A partir de 2012, a mobilização de autores e fãs fez ressurgir os títulos originais do Mundo das Trevas em sua versão clássica, com o lançamento das edições comemorativas de 20 anos, que causaram um verdadeiro frisson entre os fãs de RPG em todo o planeta e consolidaram uma nova tendência de financiamentos coletivos para fomentar a produção profissional de RPGs de Mesa. Assim, foram bem sucedidos os lançamentos do V20 (Edição comemorativa de aniversário de 20 anos de Vampire: The Masquerade), W20 (Werewolf: The Apocalypse) e M20 (Mage: The Ascension) e das edições comemorativas de Wraith: The Oblivion e Changeling: The Dreaming, ambos bem sucedidos em atingir suas respectivas metas de arrecadação embora tivessem sido cancelados bem antes do encerramento do restante da linha em 2002. O que abriu caminho para novas edições e possíveis reboots desses jogos tradicionais, embora, infelizmente nenhuma dessas edições comemorativas esteja disponível ou tenha previsão de lançamento para o mercado brasileiro.

Em 2014, a Wizards of the Coast, agora sob controle da Hasbro, lançaria a 5ª edição de D&D, retomando e consolidando de vez a tendência de licenças abertas no mercado mundial de RPG. Recentemente, a Galápagos Jogos anunciou, ainda para 2019, o lançamento da edição brasileira dessa mais recente edição do mais clássico dos jogos de RPG.

Aproveitando-se das prerrogativas das licenças abertas, o Pathfinder, da pequena e audaciosa Editora Paizo, ousou enfrentar a gigante Hasbro para revisar e ampliar o sistema da 3ª edição de D&D e obteve sucesso em atrair as atenções muitos fãs frustrados com a 4ª edição, embora só tenha sido lançado em português pela Devir em 2015, o jogo rapidamente teve sua tiragem completamente esgotada, superando todas as expectativas.

Enquanto todas essas reviravoltas agitavam o maistream da cena mundial de RPG, no lado mais underground desse universo, ainda no final dos anos 90 e inicio dos anos 2000, a comunidade rpgística testemunhava a consolidação da auto definida “comunidade de RPGs Indies” surgida na internet, buscando explorar novas possibilidades para o velho RPG de mesa e usufruindo de toda a comodidade e flexibilidade que trouxeram os adventos da impressão sob demanda e da publicação em PDF, o que tornou possível a produção de jogos com designs bem focados e experimentais, driblando as tendências dominantes da indústria.

Indie é uma expressão que, na prática, define o que chamaríamos de “alternativo”. Assim, o RPG, um passatempo alternativo por excelência, tem nos jogos “indies” formas ainda menos convencionais de se jogar e contar histórias, onde se prioriza enormemente a interpretação, algumas vezes abrindo mão dos dados e, em alguns casos, até mesmo da tradicional figura do narrador, curiosamente expressando uma tendência à retomada do mítico vinculo entre o jogo e a reflexão critica e subjetiva da Commedia dell’arte. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa nova forma de pensar e jogar RPG é o aclamado, Abismo Infinito, do Escritor e Game Designer paraense, John Bógea.

Apesar de todas as inovações e os desafios que sempre marcaram a história do surgimento e desenvolvimento dos jogos de RPG, a adoção, pela White Wolf, de uma variante da política de Licença Aberta para a produção de novos suplementos para o Mundo das Trevas clássico através do Storytellers Vault, onde já pode inclusive ser encontrado material disponível em português. Você pode acessar essa plataforma através de sua conta no Facebook AQUI.

O recente lançamento da 5ª edição de Vampiro: A Máscara, e a prometida e esperada edição em português para o jogo, o sucesso de Pathfinder, Savage Worlds e In Nomine no mercado nacional, além do estrondoso sucesso de uma nova leva de jogos de desenvolvedores BR como Old Dragon e do trabalho de editoras nacionais como New Order, RetroPunk e Aster, nos fazem acreditar que as tardes de diversão em torno das mesas bagunçadas rolando todo tipo de poliedros exóticos ainda se estenderão por muitos e muitos anos. Assim esperamos.

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Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.