RAGE ACROSS THE AMAZON — PARTE 1

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão
10 min readOct 21, 2019

NOTA: O Trecho abaixo foi extraído e traduzido do infame suplemento da primeiríssima Edição de Lobisomem: O Apocalipse, Rage Across The Amazon, de 1993 (Páginas. 13–16). É interessante, notar que apesar das controvérsias, o texto demonstra o esforço dos autores em pesquisar a história da região evidenciando elementos que costumam ser esquecidos por seus próprios habitantes, como a relevância da conquista do Novo Mundo para o imaginário e a história da humanidade. Este é o primeiro de uma série de traduções de trechos deste livro, esperamos que eles ajudem os fãs de Lobisomem que não estão suficientemente familiarizados com o inglês a entender o que tornou esse um dos suplementos mais controversos do jogo e como a Amazônia, cuja maior parte está contida em território brasileiro, foi apresentada através dele aos fãs de lobisomem em todo o mundo. Leia e tire suas próprias conclusões.

HÁ MUITO TEMPO

A terra envelhece. As montanhas crescem e diminuem, o mar recua e flui e a vida é criada e destruída. A Amazônia permanece. Há quanto tempo esse rio se formou é desconhecido, mas ele permanece.

Aqueles com memórias antigas o suficiente para saber dizem que sempre houve uma Amazônia e sempre haverá. Os Mokolé sonham com o passado. Eles falam do rio como o coração desta terra pura, a corrente sanguínea da terra. Os crocodilos metamorfos sonham… e sonham… e sonham… e o rio começa a desacelerar, a perder o fluxo quando a Wyrm drena a água avidamente do mundo. Os crocodilos metamorfos dormem enquanto os tempos modernos alcançam o rio. Os tempos modernos não são gentis com essa maravilha antiga.

MIGRAÇÕES INICIAIS

Quando os Puros chegaram pela ponte terrestre do Estreito de Bering, eles rapidamente se espalharam pelo continente. Os Garou os observaram enquanto eles partiram. Os Wendigo mantiveram principalmente as regiões do norte e as planícies, os Croatan moveram-se para a costa oriental e pântanos do sul e os Uktena moveram-se ao longo da costa ocidental e dos desertos.

Quando as outras tribos se estabeleceram, contentes em suas novas terras, apenas os Uktena continuaram se movendo, estimulados por sua curiosidade. Nos últimos anos, os Uktena finalmente chegaram à Amazônia. Nenhum deles permaneceu por muito tempo. Enquanto as selvas eram imponentes e impressionantes, elas simplesmente não eram o que esses lobos queriam. Muitos retornaram do jeito que vieram, de volta à América Central. Eles deixaram para trás sementes: os Parentes dos Puros. Os Parentes amavam estas novas terra e não quiseram deixá-las.

OS PUROS NATIVOS

Os Uktena também encontraram um mistério à sua espera nas selvas: a existência de Puros que nunca tinham visto antes. Eles acreditavam que todos os Puros já haviam cruzado com eles. Os Garou pensaram que eram os primeiros a chegar. Aqui, nas florestas tropicais e rios, os humanos viviam em harmonia e alegria com a natureza. O Uktena agradeceu a Gaia por outro sinal de sua sabedoria e não pensou mais sobre o assunto.

Mais tarde, souberam dos Balam e dos Mokolé, os jaguares e crocodilos, os residentes mais antigos das selvas. Os nativos tinham vindo com eles muito antes para a terra como os metamorfos que fugiram da perseguição da Guerra da Fúria. Suas lendas falam de grandes travessias pelo mar e pelo mundo dos espíritos, semelhantes às lendas do Garou de sua jornada às Terras Puras. Gaia guiou seus próprios filhos para a segurança. Ela levou esses mesmos filhos para longe do perigo da Wyrm.

NOVOS FILHOTES

Muitos anos após os Uktena terem deixado a Amazônia, seus Parentes indígenas deram à luz três Garou. Os Garou que os haviam conduzido a esta terra agora eram lendas em seus contos, seres há muito desaparecidos. Essas crianças tiveram vidas tranquilas até a mudança. Quando assumiam a forma de lobos, não sabiam o que havia acontecido com eles. Ninguém em sua tribo havia visto um lobo antes. Os xamãs ficaram perplexos. Obviamente, essas crianças eram os metamorfos escolhidos por um espírito novo e estranho, mas ninguém podia dizer se esse espírito era bom ou ruim.

Eles decidiram chamar o Jaguar para se aconselharem, e seus filhos vieram. Quando os Balam chegaram à aldeia de seus Parentes e descobriram Garou, ficaram enfurecidos. Percebeu-se que os três Garou pareciam ignorantes sobre sua natureza. Um homem-gato, não importa o quão bravo, ainda é um homem-gato, e a curiosidade logo conquistou. O Balam prometeu ensinar às crianças os caminhos de sua herança como um experimento. Eles queriam descobrir por si mesmos se os Garou eram egoístas, mesquinhos e arrogantes por natureza ou simplesmente por criação.

OS UKTENAS AMAZÔNICOS

Os Balam, depois de anos lidando com o jovem Garou, finalmente decidiram que, enquanto um deles mostrava os traços Garou repugnantes típicos, os outros dois mostravam valores admiráveis. O mau se chamava Cacu. Os bons eram Inki e Huatope. Depois de um acalorado taghairm, ou assembleias de gatos metamorfos, eles decidiram que era hora desses jovens Garou conhecerem sua própria espécie.

Colecionador-de-Trovões foi escolhido entre os que estavam no taghairm para conduzi-los das selvas para sua própria espécie nas terras maias. Foi uma longa jornada, cheia de muitas aventuras e lendas antes de chegarem ao seu destino. Os Uktena maias se maravilharam com esses novos Garou, tão puros e estranhos que pareciam possuir a sabedoria dos gatos. Os Garou perdidos foram convidados a permanecer e aprender seus modos. Colecionador-de-Trovões sorriu de seu esconderijo nas árvores e partiu para sua jornada de volta para casa.

Os amazônidas ficaram por um tempo entre os seus, mas logo sentiram saudades da floresta tropical. Eventualmente, eles tiveram que retornar. Em sua jornada de volta para casa, eles se juntaram a alguns dos Uktena maias que também ansiavam pela grande floresta. Assim foi criada a tribo Uktena da Amazônia.

Ao longo dos anos, a tribo se enfraqueceu devido ao seu sangue restrito. Não haviam lobos para criar e reforçar sua linhagem. A Amazônia era um lugar puro, uma terra de Gaia, e esses lobisomens ainda descobriram maneiras de viver como um só com a terra. Eles prosperaram, mesmo como seu legado, e nunca perderam a habilidade de andar com duas peles.

O DESCOBRIMENTO

A Amazônia não foi sempre como é hoje. As florestas tropicais da Bacia Amazônica já foram intocadas pela civilização humana. Como descobridores estrangeiros vieram em busca de novas terras, a vastidão inexplorada do interior do continente sul-americano tornou-se um lugar para a sobrevivência dos sonhos. A selva era um lugar onde as maravilhas da vida esperavam ser descobertas para a edificação dos cidadãos europeus e o estudo da ciência.

OS CONQUISTADORES

Os primeiros a explorar esta terra para os interesses europeus foram os conquistadores espanhóis. Francisco Pizarro derrubou o Império Inca para a Espanha em 1532. Logo, os nativos da região estavam sendo explorados como mão-de-obra escrava, construindo cidades para os espanhóis.

Mais tarde, Gonzalo Pizarro liderou a primeira expedição de conquista através dos Andes em direção à floresta tropical em busca de canela. A expedição foi um fracasso. Ele foi forçado a recuar, mas não antes de matar muitos de seus guias nativos por pura frustração e raiva. Pouco depois, Francisco de Orellana partiu, acompanhado por Gaspar de Carvajal, que documentou sua longa jornada. Eles foram os primeiros europeus a encontrar muitos dos índios. O relato de Carvajal agitou a imaginação de outros. Logo os exploradores estavam correndo para a Amazônia, desesperados para descobrir suas muitas lendas e maravilhas.

OS EXPLORADORES

Nas décadas seguintes, os exploradores entraram nas selvas com sonhos do que encontrariam. Era realmente essa a terra lendária das amazonas de Homero? Este era realmente a casa dos Ewaipanoma, uma raça de pessoas com cabeças no peito? Esta era a terra onde o maior dos sonhos vivia — o rei dourado, El Dorado e sua cidade de ouro?

Desesperados pelas riquezas de El Dorado, exploradores como Sir Walter Raleigh mergulharam na floresta tropical, seguindo pistas, rumores e lendas. Raleigh nunca encontrou suas riquezas. Isso nunca impediu a vinda de uma enxurrada de outros. A Amazônia era um lugar que agitava a alma e fazia os corajosos e os loucos acreditarem que poderiam se tornar reis. Lope de Aguirre, o oficial subordinado de um conquistador, assumiu a expedição na qual estava e se declarou Rei da Amazônia. Ele foi derrotado pelas tropas venezuelanas e executado. Isso ainda não atenuou a coragem dos outros. O que essa nova terra detinha para esses europeus ousados e curiosos? As florestas tropicais continham nada menos que a esperança dos sonhos.

Esses exploradores mataram o espírito da terra à medida que a descobriam. Com cada mapa feito, com cada cientista declarando novas descobertas, com cada linha escrita em um livro, as maravilhas da terra foram sendo banidas para a inexistência. Que magia poderia viver ante aos ataques da ciência? O que poderia resistir diante da racionalidade e da lógica?

OS TECNOMANTES

O simples descobrimento não foi a fonte da morte lenta da terra. Os verdadeiros inimigos eram os mastros dos Tecnomantes, poderosos magos que procuravam fazer o mundo se curvar à sua vontade, à sua visão única e mecanicista da existência. A Amazônia era perfeita para eles. Aqui havia uma chance de provar a inerente “verdade” de suas novas teorias científicas ao mundo em geral.

Suas teorias, no entanto, não foram baseadas na verdade, mas na negação. Eles tentaram provar sua própria posição, através da negação da própria existência daqueles que se opunham à sua visão. Qualquer ser ou criatura de origem sobrenatural não tinha lugar no seu mundo preciso como um relógio e, portanto, tinha que ser removido dele. Então começou a campanha de descobrimento na Amazônia.

Expedições foram enviadas, financiadas por universidades e fundações sob o controle dos Tecnomantes. Seu trunfo foi banir as lendas selvagens desta terra distante e fazer brilhar a “verdadeira” luz da ciência e da razão para todo o mundo ver. Apenas um ser era forte o suficiente para desafiar a “Era dos Descobrimentos”: El Dorado, um mago nativo dos Oradores dos Sonhos.

O REI DOURADO: EL DORADO

El Dorado foi um rei em suas próprias terras, governando o povo nativo com uma mão justa. Ele tinha sido um dos mais promissores discípulos dos xamãs e crescera além de seus poderes. Suas viagens para outros mundos lhe deram poderosa magia e uma sábia compreensão dos caminhos deste mundo. Ele reconheceu os exploradores pelo que eles eram. Viu os mestres do Tecnomantes puxando suas cordas, embora os exploradores ignorassem qualquer coisa errada. Não eram meramente representantes de suas respectivas coroas e universidades? El Dorado já havia visto coisas semelhantes sob o disfarce do Império Inca. Gananciosos e dominadores, eles queriam segurar todo o mundo em suas mãos.

Uma guerra mágica secreta começou. El Dorado reuniu as antigas forças da terra. Ele resistiu aos esforços dos Tecmomantes para limpá-los da terra. De sua cidade de ouro, ele comandou seus aliados para afastar os exploradores. Os Mokolé se juntaram à luta, despertando de seus covis. Os Balam entraram na briga, trazendo uma fúria que instigou terror nos corações dos magos mais ferozes. Como sempre, os Garou também estavam lá.

AS FÚRIAS NEGRAS AMAZONAS

O maior de todos os aliados na guerra foram as Amazonas, Garou Fúrias Negras cuja lenda vivia forte no mundo. Os exploradores chegaram a nomear o grande rio depois delas. Das terras distantes de Cítia elas vieram, fugindo da perseguição dos homens. Eles tomaram sua posição nas selvas da Bacia Amazônica, jurando nunca deixar os homens de qualquer raça movê-las novamente.

Eles viram a ameaça dos exploradores e se juntaram a El Dorado para combatê-los. Embora El Dorado fosse um homem, ele era diferente dos homens europeus que as Fúrias Negras odiavam. Ele vivia perto de Gaia, testemunhando os sonhos da Mãe Terra, e andando em equilíbrio sobre a terra. Finalmente, aqui estava um homem digno que elas poderiam apoiar.

A CIDADE DO OURO PERDIDA

Talvez fosse inevitável, considerando o poder que os Tecnomantes tinham sobre a própria realidade, mas ninguém poderia prever o resultado. Em uma obra-prima da magia, os Tecnomantes finalmente destruíram a cidade do ouro mapeando-a para fora da existência.

Grandes quantidades de energia foram necessárias. Um dos Tecnomantes foi devorado pelo Paradoxo da mudança de realidade, mas a cidade foi desviada para seu próprio reino, separada da Terra. A própria magia de El Dorado caiu, separada de sua conexão valiosa com Gaia. Seu significado foi destituído da ajuda de Gaia.

A cidade desapareceu da Terra e reapareceu na Umbra, completa com sua floresta, montanha e lago. Todos os caminhos para a Terra e até mesmo acessos pela umbra foram perdidos. El Dorado era uma terra isolada agora, um reino em si, sem entrada e sem saída.

A magia dos próprios Tecnomantes foi poderosa demais para eles. Eles não conseguiam entrar no novo reino para terminar o trabalho de destruição, nem podiam perscrutar isso. Era como se não existisse na realidade. Logo os Tecnomantes anunciaram a vitória e transferiram seus esforços para outras áreas.

El Dorado foi esquecido nas mentes conscientes dos homens. Em seus sonhos, ela vive. El Dorado tinha uma última conexão invisível com a terra: os sonhos da cidade perdida de ouro. Com o passar dos anos, os sonhos se tornaram lendas. Lendas alimentaram a ganância dos humanos. No início do século 20, o arqueólogo Joseph Herlich iniciou uma expedição para encontrar a cidade perdida, estimulada por seus sonhos de ouro. Os sonhos não eram verdadeiramente seus, mas eram as sutis sugestões do próprio El Dorado, falando com o homem durante o sono. Os Tecnomantes não deram atenção. Eles estavam ocupados com outros assuntos. Assim, o caminho de volta à Terra foi refeito.

Quando Joseph Herlich finalmente descobriu o vale de El Dorado, ele não percebeu que estava em um caminho que ele mesmo havia forjado. A magia de El Dorado levou Herlich à redescoberta do vale, quebrando o feitiço que apartava a cidade do mundo. Um único e árduo caminho agora existia. Ele permaneceu escondido nas profundezas da selva amazônica.

El Dorado foi um ótimo anfitrião para Herlich, mas Herlich nunca mais deixaria a cidade. Os Tecnomantes não podiam saber que seu inimigo havia retornado. A cidade ainda é desconhecida por muitos moradores da selva. Os cidadãos de El Dorado sabem o perigo de se mostrarem.

Com a guerra entre a Pentex e os Garou sendo travada, El Dorado não tem certeza de qual curso tomar. Se alguém soubesse de sua cidade, estaria novamente em perigo. Ele deve protegê-la a todo custo.

___________________________________

Curtiu esse artigo?

Confira também:

RAGE ACROSS THE AMAZON — PARTE 2

AMÉRICA DO SUL: AS SELVAS DO CORAÇÃO — Trecho traduzido do suplemento oficial “A World of Rage”.

A América do Sul ao longo das Edições de Lobisomem O Apocalipse

E leia estes e outros artigos, com dicas e sugestões para criação de seu próprio cenário nacional de Lobisomem, baixando gratuitamente (através da opção PAY WHAT WANT) nosso suplemento, via Storytellers Vault, clicando AQUI.

--

--

Porakê Munduruku
Brasil na escuridão

Mombeu’sara, griô amazônida e escritor. Administrador da Página Brasil in the Darkness e integrante da Kabiadip-Articulação Munduruku no Contexto Urbano.