Reflexões sobre a noção de Humanidade em Vampiro: A Máscara.

Brasil In The Darkness
Brasil na escuridão
6 min readOct 13, 2020

Você considera um pichador mais “monstruoso” do que alguém disposto a ferir deliberadamente outra pessoa? Até o advento do V5 costumava ser assim em VaM. Entenda o porquê.

Por Porakê Martins

“A humanidade não se divide em heróis e tiranos. As suas paixões, boas e más, foram-lhe dadas pela sociedade, não pela natureza”

— Charles Chaplin.

A Humanidade é, provavelmente, o parâmetro de sistema e o elemento narrativo mais importante da proposta de “Horror Pessoal” presente em Vampiro A Máscara, o jogo de RPG de Mesa lançado originalmente em 1991, pela mítica editora estadunidense, White Wolf. Arrisco dizer que a negligência com este aspecto essencial do jogo é o principal responsável por disseminar entre seus jogadores o estilo de jogo, tão comum quanto infame, que reduz o famoso mote de “Horror Pessoal” de Vampiro a uma fantasia urbana de alta magia “trevosa”, sem muito compromisso com nada além da mera diversão escapista.

Nada contra quem deseja customizar o jogo a seu próprio gosto particular, mas precisamos convir que a luta dos vampiros para manter, ou recuperar, sua Humanidade e escapar do controle de sua Besta interior é uma parte essencial da proposta original de Vampiro A Máscara; do seu apelo, de seu impacto e da originalidade que este jogo teve na cena mundial de RPG do início dos anos 90; bem como, do equilíbrio exigido para a manutenção da coerência, coesão e verossimilhança do cenário apresentado nele.

A Humanidade é o “freio de mão puxado” que tenta impedir que a narrativa, construída colaborativamente entre narradores e jogadores, descambe para uma sucessão de ações hediondas de seus personagens e uma carnificina generalizada que não serviria a nada além de alimentar fantasias de poder potencialmente danosas. O que não apenas significaria ignorar a essência da proposta do jogo, mas sua subversão, convertendo-a em seu exato oposto.

Mas será que a Humanidade, como apresentada pelo jogo, realmente representa um parâmetro moral universal, construtivo e legitimamente capaz de contrapor a sedução de tais fantasias de poder para aqueles ousados o suficiente para aceitar o desafio de “calçar os sapatos” de monstros que parasitam a humanidade?

Deixando inicialmente de lado às regras sobre “Trilhas de Iluminação” alternativas, que quase invariavelmente têm por objetivo legitimar a postura de jogadores interessados em escapar das amarras morais da Humanidade apresentado no livro Core do Jogo, é interessante notar como, ao longo de quatro das cinco encarnações que o jogo teve até o lançamento da quinta edição, quase nada foi alterado em relação a mecânica sobre a Humanidade.

Desde a primeira a primeira versão do jogo até sua afamada Edição de Aniversário de 20 anos, a Humanidade foi uma característica que variava de zero a dez, conferindo ao personagem uma maior facilidade na interação com os mortais e que podia ser reduzida por ações que contrariam certos princípios morais, pretensamente universais, descritos em uma tabela de “Hierarquia de Pecados”, de tal maneira que, a insistência do jogador em cometer tais infrações, poderia levar o personagem zerar sua Humanidade, o que representaria a vitória final da Besta interior que assola todos os Vampiros, tornando o personagem um monstro irracional movido apenas pelo desejo pelo sangue. Ou seja, GAME OVER.

Na tabela da Hierarquia de Pecados proposta pelo jogo, e que se manteve constante ao longo destas primeiras quatro edições, é curioso notar as referências óbvias a dois paradigmas morais: os princípios morais comuns às religiões de matriz abraâmica, fundamentada nos dez mandamentos recebidos por Moisés no Monte Sinai; e o que chamaremos, na falta de um termo melhor, de “American Way of Life”, uma perspectiva sobre o mundo que busca naturalizar ideologias muito mais contemporâneas, como: a meritocracia, o individualismo e a valorização das coisas acima das pessoas, do ter acima do ser. Senão, vejamos…

Na tradição católica, que hegemoniza o cristianismo há mais de um milênio, o quinto mandamento, em ordem de importância, costuma ser enunciados como “Não matarás”, embora, segundo o registro bíblico dos ensinamentos de Cristo (Mateus 5:21-25), também implique em não ferir ou desejar o mal a outras pessoas. Enquanto o mandamento sobre o respeito à propriedade é apenas o sétimo, que costuma ser enunciado como “Não furtarás, nem roubarás” (Mateus 19:18).

Porém, na Hierarquia de Pecados contra a Humanidade, no âmbito de Vampiro a Máscara, de maneira curiosa, senão bizarra, a proibição contra danos a propriedade privada aparece como algo mais fundamental do que a proibição contra ferir outra pessoa, visto que “Ferimentos infligidos a outros (intencionais ou não)” só é encarado como uma infração sujeita a perda de níveis de Humanidade em personagens com Humanidade 8 ou mais, já “Furto ou Roubo” deixa personagens com Humanidade 7 sujeitos a tal perda, enquanto o mero “Dano intencional à propriedade”, é considerada uma falta moral mesmo para personagens com Humanidade 5!

Como explicar tal arranjo de preceitos morais que levam um hipotético membro de “Black Block” ou pichador de rua a ser considerado “menos humano” ou simplesmente “mais monstruoso” do que alguém capaz ferir deliberadamente outra pessoa? Ou ainda, como explicar que tal arranjo de preceitos morais seja considerado universalmente válido por desenvolvedores do jogo, narradores e jogadores por todo o mundo?

Acredito que a explicação está em três fatores centrais:

1. A forma como tal arranjo se fundamenta e propaga a perspectiva do American Way of Life, onde a invasão de uma propriedade é automaticamente considerada uma justificativa legítima para o homicídio e cada cidadão é incentivado a se armar e praticar o justiçamento ao melhor estilo “John Wayne”, reforçada pela onipresente indústria cultural estadunidense, na qual a maioria dos RPGs disponível no mercado ainda se baseiam;

2. A passividade com a qual somos adestrados desde muito cedo para aceitar esse tipo de direcionamento ideológico sem questionamentos;

3. O fato de que o RPG de Mesa ainda ser uma forma de lazer muito pouco acessível para a grande maioria da população mundial e de que as camadas que costumam ter acesso a ele ainda são as mais privilegiadas, que mais facilmente aceitam e assimilam esse tipo de discurso com mais “naturalidade”, a partir de sua própria perspectiva privilegiada.

Assim, a Humanidade, como apresentada na maior parte das edições de Vampiro A Máscara, embora aparentemente bem intencionada e , sobe certo sentido essencial para manter a proposta proposta original do jogo, traz seus próprios problemas, o que não deveria ser ignorado.

Sim, é verdade, que desde a segunda edição de Vampiro, com o advento do primeiro Guia do Sabá, permitiu-se uma maior flexibilização e customização dos parâmetros morais do jogo, com a introdução do conceito de ‘Trilhas de Sabedoria” alternativas a Humanidade.

Contudo, creio que tal flexibilização se deu no sentido oposto ao desejável e na contramão da proposta original do próprio jogo, uma vez que, na maioria absoluta dos casos, visavam tornar disponíveis aos jogadores personagens que, por definição, abraçaram sua Besta interior e abriram mão de sua Humanidade para se tornarem monstros autodeclarados. Assim, tal flexibilidade de parâmetros morais acaba sendo colocada à serviço da desumanização dos personagens-jogadores, dando “sinal verde” para a fantasia urbana “trevosa” e inconsequente, o Hack’n’ slash e as fantasias de poder sem limites como uma variante legítima e chancelada de jogo.

Felizmente, a Quinta Edição de Vampiro: A Máscara (V5), disponível agora em português pela Galápagos Jogos, parece, por um lado, representar um grande salto na direção correta, ao propor resgatar a essência da primeira edição, onde a preservação da própria Humanidade passa a ser o parâmetro moral de todos os personagens-jogadores, e, acertadamente, relegando aos Membros desumanos do Sabá, o papel de antagonistas. Porém, ela deixa inteiramente à cargo de narradores e jogadores a definição dos princípios que devem reger este aspecto do jogo em suas crônicas, uma postura potencialmente temerária.

Se por um lado parece ser um acerto do V5 este reconhecimento da necessidade de uma maior flexibilidade da compreensão histórica e cultural do que significa ser Humano, assim como a aposta dos desenvolvedores em não subestimar seu público, delegando-o maior autonomia. Por outro lado, a época em que vivemos demonstra o quanto todos ainda precisamos avançar do ponto de vista da maturidade e da empatia para tratar de temas tão delicados como moralidade e condição humana.

Assim, me vejo forçado a admitir que estipular princípios morais elementares para crônicas no universo da Quinta Edição de Vampiro A Máscara, como “Não ferir e não matar deliberadamente outros vampiros ou mortais”, além de dedicar mais espaço no livro básico sobre o papel da moralidade no jogo e técnicas para a promoção de Ambientes Seguros e Saudáveis para jogadores, seriam formas de assegurar muito menos controvérsias e sessões de jogo muito mais seguras para todos os fãs, novos e veteranos, do Clássico Mundo das Trevas.

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Fanpage brasileira do universo clássico de RPG de Mesa, Mundo das Trevas (World of Darkness).